Esta convicção moral e profunda e esta ideia do conceito, Platão as toma de Sócrates. Mas imediatamente estende, amplifica o uso do conceito, já não somente para a geometria, não somente para as virtudes, como Sócrates, mas, em geral, para a coisa em geral. Converte, pois, Platão, o conceito no instrumento para a determinação do qualquer coisa em geral, e imediatamente põe em relação essa contribuição socrática com os ensinamentos recebidos de Parmênides; une a ideia de conceito, de logos, com a ideia de “ser” e com os atributos do ser parmenídico, e daí resulta exatamente a solução peculiar de Platão ao problema metafísico, sua teoria das ideias. Veja-se uma passagem de Aristóteles em que explica como Platão chegou à sua filosofia, como Platão chegou ao seu próprio sistema. Diz Aristóteles: “A ocupação de Sócrates com os objetos éticos e não com a natureza em geral, procurando naqueles objetos éticos o que tem de geral e encaminhando sua reflexão principalmente às definições, induziu a Platão, que o seguia, a opinar que a definição tinha como objeto algo distinto do sensível.” Eis aqui a união entre o método socrático de buscar o logos, com a ideia parmenídica de que o ser não é o sensível; e esta união dá por resultado a metafísica de Platão, que culmina na sua famosa teoria das ideias, que vou expor agora em poucas palavras.
Também Platão, como Parmênides e como todo metafísico em geral, de Qualquer época que for, parte da pergunta: quem existe? quem é o ser? Mas Platão já está de sobreaviso. Já descobriu o erro que tinha cometido Parmênides ao confundir o “que existe?” com aquilo que o que existe é, ao confundir a existência com a essência. E como está de sobreaviso, não comete o mesmo erro, mas antes, pelo contrário, distingue já claramente entre a metafísica como teoria da existência e a metafísica como teoria da objetividade em geral. Já existe em Platão, por conseguinte, embora muito Intimamente unidas e não fáceis de separar — uma teoria da existência e uma teoria da objetividade, uma teoria do objeto, uma verdadeira ontologia, além da metafísica.
A ontologia de Platão está muito clara. Relembremos o logos de Sócrates, a definição do conceito que abrange uma porção da realidade, da mesma forma que a figura “triângulo” abrange uma porção de formas que se dão na realidade visível e tangível. Que é, pois, este logos? Platão o analisa e encontra que esse logos é uma unidade sintética, uma união na qual estão reunidos, atados, formando uma síntese indissolúvel, uma porção de entes ou de caracteres.
Pois bem: essa união, essa unidade dos caracteres que definem um objeto recortado na realidade, a essência desse objeto, ou, se se quiser, a consistência, unida numa unidade indissolúvel, se a contemplamos agora com uma intuição direta do espírito e logo conferimos a essa unidade a realidade existencial, essa é a ideia, segundo Platão.
Agora vamos explicar, um por um, os elementos dessa ideia.
Em primeiro lugar a palavra “ideia” é um neologismo de Platão. A situação dos filósofos, que começavam a filosofar há vinte e cinco séculos, era difícil, porque não tinham a seu dispor terminologia nenhuma. Para nós é muito simples: puxamos a gaveta da história, e desde Platão até aqui temos uma enormidade de termos para dizer o que queremos dizer. Mas então não havia mais que os termos do idioma usual. Daí, os filósofos lançarem mão de dois recursos: um, tomar do idioma usual um termo e dar-lhe sentido filosófico; o outro recurso consiste em forjar um termo novo. Isto fez Platão ao forjar a palavra “ideia”: formou-a com uma raiz de um verbo grego que significa “ver”. De modo que “ideia”, realmente, significa visão, intuição intelectual. Isso é exatamente o que significa ideia.
Mas a ideia é uma intuição intelectual do ponto de vista do sujeito que a intui. Deixemos agora o sujeito que a intui e tomemos a ideia em si mesma, ela, a intuída nessa visão, o objeto da visão, e então a ideia é duas coisas. Em primeiro lugar, unidade, reunião indissolúvel, amálgama de todos os caracteres de uma coisa, definição dos seus caracteres, a essência deles, o que eu denomino a consistência. E em segundo lugar Platão confere a isto existência real. De modo que as ideias são as essências existentes das coisas do mundo sensível. Cada coisa no mundo sensível tem sua ideia no mundo inteligível, e então aplica Platão sem rodeios a cada uma dessas unidades que chama “ideia” os caracteres que Parmênides aplica ao ser em geral. Quer dizer: uma ideia é sempre uma. Há muitas ideias. O mundo das ideias está cheio de ideias, porém cada ideia é uma unidade absolutamente indestrutível, imóvel, imutável, intemporal, eterna.
Essa ideia é, ademais, o paradigma (é palavra platônica), o modelo exemplar ao qual as coisas que vemos, ouvimos e tocamos, se ajustam imperfeitamente. A melhor maneira de explicar essa relação de semelhança imperfeita entre as coisas e as ideias consiste em relembrar que uma das origens de tudo isto está na geometria. As coisas forçosamente têm que ter uma figura geométrica, mas a têm imperfeita. As coisas são quadrados, quadriláteros. Mas é um quadrilátero perfeito esta lousa? De modo algum. Não é preciso mais que aproximar-se para ver que os lados não são retos; está muito torto. Se está muito bem feito e à primeira vista não parece torto, aproxime-se mais e se verão os defeitos. Não há nenhuma coisa que seja na sua figura perfeitamente ajustada à figura geométrica que pensa o geômetra. Pois, do mesmo modo, não há nenhum homem realmente que seja absolutamente ajustado à ideia do homem. Não há nenhuma estátua realmente que seja absolutamente ajustada à ideia de beleza. Não há nenhum ser na natureza que seja absolutamente ajustado à sua ideia no mundo supra-sensível. A relação entre as coisas e as ideias é uma relação em que as coisas participam das essências ideais; porém não são mais que uma sombra, uma imperfeição dessas essências ideais.
Num de seus diálogos, em A República, Platão compara os dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível, ou, como ele o chama, o céu, topos uranos, o lugar celeste; compara-os às sombras que se projetariam no fundo de uma caverna escura se por diante da entrada dessa caverna passassem objetos iluminados pelo sol. Do mesmo modo que entre as sombras projetadas por esses objetos e os objetos mesmos há um abismo de diferença, e, sem embargo, as sombras são em certo modo partícipes da realidade dos objetos que passam, desse mesmo modo os seres que contemplamos na nossa existência sensível, no mundo sensível, não são mais que sombras efêmeras, transitórias, imperfeitas, passageiras, reproduções ínfimas, inferiores, dessas ideias puras, perfeitas, eternas, imperecíveis, indissolúveis, imutáveis, sempre iguais a si mesmas, cujo conjunto forma o mundo das ideias. [Morente]