Quantidade de bens possuídos por uma pessoa física ou moral. O conceito é essencialmente intuitivo. Em economia, fala-se essencialmente de bens e de valor. Opõe-se à vezes uma riqueza quantitativa a uma riqueza qualitativa. O aspecto qualitativo porta então sobre o objeto da riqueza, não sobre o fato da riqueza, que é sempre quantitativo. Da mesma maneira opõe-se a riqueza como posse dos bens materiais à riqueza interior do homem que possui múltiplas qualidades morais, a segunda sendo moralmente preferível à primeira. [Notions Philosophiques]
De origem inteiramente diferente e mais recente na história é a significação política da riqueza privada, da qual o indivíduo retira os meios de sua subsistência. Já mencionamos a antiga identificação da necessidade com o domínio privado do lar, onde cada um tinha de dominar, por si mesmo, as necessidades da vida. O homem livre, que podia dispor de sua privatividade e não estava, como o escravo, à disposição de um amo, podia ainda ser “forçado” pela pobreza. A pobreza força o homem livre a agir como escravo. A riqueza privada, portanto, tornou-se condição para admissão à vida pública não pelo fato do seu dono estar empenhado em acumulá-la, mas, ao contrário, porque garantia com razoável certeza que ele não teria de se dedicar a prover para si mesmo os meios do uso e do consumo, e estava livre para a atividade pública. [Essa condição para a admissão no domínio público ainda existia no início da Idade Média. Os “Livros dos Costumes” ingleses ainda traziam uma “nítida distinção entre o artífice e o cidadão livre, o franke homme da cidade. (…) Se um artífice se tornasse tão rico que desejasse vir a ser um homem livre, devia renegar a sua arte e desfazer-se de todos os seus instrumentos” (W. J. Ashley, An introduction to English economic history and theory, p. 83). Foi somente sob o governo de Eduardo III que o artífice se tornou tão rico que, “ao invés de ser o artífice inabilitado para a cidadania, esta passou a ser vinculada à participação em uma das companhias” (p. 89).] Obviamente, a vida pública somente era possível depois de atendidas as muito mais urgentes necessidades da vida. O meio de atendê-las era o trabalho e, portanto, a riqueza de uma pessoa era muitas vezes computada em termos do número de trabalhadores, isto é, de escravos, que ela possuía. [Ao contrário de outros autores, Coulanges ressalta as atividades consumidoras de tempo e de força que eram exigidas de um cidadão na Antiguidade, mais que seu “ócio”, e percebe, corretamente, que a afirmação de Aristóteles – de que nenhum homem que tivesse de labutar para seu sustento podia ser um cidadão – era a mera afirmação de um fato, e não a expressão de um preconceito (A cidade antiga, Anchor, 1956, p. 335 ss.). É característico da transformação moderna que as riquezas, por si, independentemente da ocupação de seu proprietário, viessem a ser uma qualificação para a cidadania: só agora ser cidadão era um mero privilégio, desvinculado de quaisquer atividades especificamente políticas.] Nesse contexto, a posse de propriedade significava dominar as próprias necessidades vitais e, portanto, ser potencialmente uma pessoa livre, livre para transcender a sua vida e ingressar no mundo que todos têm em comum.
Somente com o aparecimento desse mundo comum em uma tangibilidade concreta, isto é, com o surgimento da cidade–Estado, pôde esse tipo de propriedade privada [a riqueza] adquirir sua eminente significação política; e é, portanto, um tanto natural que o famoso “desdém pelas ocupações servis” não seja ainda encontrado no mundo homérico. Caso o dono de uma propriedade preferisse ampliá-la ao invés de utilizá-la para viver uma vida política, era como se ele sacrificasse prontamente a sua liberdade e voluntariamente se tornasse aquilo que o escravo era contra sua vontade, ou seja, um servo da necessidade. [Essa me parece ser a solução do “conhecido enigma com que se depara no estudo da história econômica do mundo antigo, o fato de ter a indústria se desenvolvido até certo ponto, mas tenha estancado inesperadamente de realizar o progresso que se podia esperar (…), [considerando-se o fato de que] os romanos demonstravam eficiência e capacidade de organização em larga escala em outros setores, nos serviços públicos e no exército” (Barrow, Slavery in the Roman Empire, p. 109-110). Esperar a mesma capacidade de organização em questões privadas como em “serviços públicos” parece ser um preconceito devido às condições modernas. Max Weber, em seu notável ensaio (“Agrarverhältnisse im Altertum”, Gesammelte Aufsätze zur Sozialund Wirtschaftsgeschichte [1924]), já havia insistido sobre o fato de que as cidades antigas eram mais “centros de consumo que de produção”, e que o antigo proprietário de escravos era um “rentier e não um capitalista (Unternehmer)” (p. 13, 22 ss. e 144). A indiferença dos autores antigos no tocante a questões econômicas, aliada à falta de documentos a esse respeito, aumenta o peso do argumento de Weber.]
Até o início da era moderna, esse tipo de propriedade nunca foi visto como sagrado, e somente quando a riqueza como fonte de renda coincidia com o pedaço de terra no qual se radicava uma família, isto é, em uma sociedade essencialmente agrícola, esses dois tipos de propriedade podiam coincidir a tal ponto que toda propriedade adquiria um caráter de sacralidade. De qualquer forma, os modernos defensores da propriedade privada, que unanimemente a veem como riqueza privada e nada mais, pouco motivo têm para apelar a uma tradição segundo a qual não podia existir um domínio público livre sem o devido estabelecimento e a devida proteção da privatividade. Pois o enorme acúmulo de riqueza ainda em curso na sociedade moderna, que teve início com a expropriação – o esbulho das classes camponesas que, por sua vez, foi consequência quase acidental da expropriação de bens monásticos e da Igreja após a Reforma [v. classe operária] –, jamais demonstrou grande consideração pela propriedade privada; ao contrário, sacrificava-a sempre que ela entrava em conflito com o acúmulo de riqueza. O dito de Proudhon – que a propriedade é um roubo – tem sólida base de verdade nas origens do moderno capitalismo; e é tanto mais significativo que mesmo Proudhon tenha hesitado em aceitar o duvidoso remédio da expropriação geral, por saber muito bem que a abolição da propriedade privada, ainda que pudesse curar o mal da pobreza, muito provavelmente provocaria o mal ainda maior da tirania. [Conferir o engenhoso comentário sobre a frase “a propriedade é um roubo” que ocorre na Théorie de la propriété, p. 209-210, de Proudhon, publicada postumamente, na qual ele apresenta a propriedade em sua “natureza egoísta e satânica” como o “meio mais eficaz de resistir ao despotismo sem derrubar o Estado”.] Uma vez que ele não via diferença entre propriedade e riqueza, essas duas compreensões parecem contraditórias em sua obra, o que, de fato, não são. A longo prazo, a apropriação individual de riqueza não terá maior respeito pela propriedade privada do que a socialização do processo de acumulação. Não é uma invenção de Karl Marx, mas algo da natureza dessa mesma sociedade que a privatividade, em qualquer sentido, possa apenas estorvar a evolução da “produtividade” social e, portanto, que quaisquer considerações em torno da posse privada devam ser rejeitadas em benefício do processo sempre crescente da riqueza social. [Devo confessar que não vejo em que se baseiam os economistas liberais da sociedade atual (que hoje se chamam de conservadores) para justificar seu otimismo, quando afirmam que a apropriação privada de riqueza será bastante para proteger as liberdades individuais – ou seja, que desempenhará o mesmo papel da propriedade privada. Em uma sociedade de detentores de empregos, essas liberdades só estão seguras na medida em que são garantidas pelo Estado, e ainda hoje são constantemente ameaçadas, não pelo Estado, mas pela sociedade, que distribui os empregos e determina a parcela de apropriação individual.] [ArendtCH, 8]
O que chamamos anteriormente de advento do social coincidiu historicamente com a transformação do interesse privado pela propriedade privada em uma preocupação pública. Logo que ingressou no domínio público, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários [property-owners], que, ao invés de requererem o acesso ao domínio público em virtude de sua riqueza, exigiram dele proteção para o acúmulo de mais riqueza. Nas palavras de Bodin, o governo pertencia aos reis e a propriedade aos súditos, de sorte que era dever do rei governar no interesse da propriedade de seus súbitos. “ comunidade [commonwealth]” como se disse recentemente, “existia principalmente em benefício da riqueza comum [common wealth]” [R. W. K. Hinton, “Was Charles I a tyrant?”, Review of Politics, v. XVIII (jan. 1956).].
Quando se permitiu que essa riqueza comum, resultado de atividades anteriormente relegadas à privatividade dos lares, conquistasse o domínio público, as posses privadas – essencialmente muito menos permanentes e muito mais vulneráveis à mortalidade de seus proprietários que o mundo comum, que sempre resulta do passado e se destina a continuar a existir para as gerações futuras – passaram a minar a durabilidade do mundo. É verdade que a riqueza pode ser acumulada a tal ponto que nenhuma vida individual será capaz de consumi-la, de sorte que a família, mais que o indivíduo, vem a ser sua proprietária. No entanto, a riqueza não deixa de ser algo destinado ao uso e ao consumo, não importa quantas vidas individuais ela possa sustentar. Somente quando a riqueza se transformou em capital, cuja função principal era gerar mais capital, é que a propriedade privada igualou ou avizinhou a permanência inerente ao mundo partilhado em comum. Essa permanência, contudo, é de outra natureza: é a permanência de um processo, mais que a permanência de uma estrutura estável. Sem o processo de acumulação, a riqueza recairia imediatamente no processo oposto de desintegração por meio do uso e do consumo.
A riqueza comum, portanto, jamais pode tornar-se comum no sentido que atribuímos a um mundo comum; permaneceu – ou, antes, destinava-se a permanecer – estritamente privada. Comum era somente o governo, nomeado para proteger uns dos outros os proprietários privados na luta competitiva por mais riqueza. A contradição óbvia desse moderno conceito de governo, em que a única coisa que as pessoas têm em comum são os seus interesses privados, já não deve nos incomodar como ainda incomodava Marx, pois sabemos que a contradição entre o privado e o público, típica dos estágios iniciais da era moderna, foi um fenômeno temporário que trouxe a completa extinção da diferença entre os domínios privado e público, a submersão de ambos na esfera do social. Pela mesma razão, estamos em posição bem melhor para compreender as consequências, para a existência humana, do desaparecimento de ambas essas esferas da vida – a esfera pública, porque se tornou uma função da esfera privada, e a esfera privada, porque se tornou a única preocupação comum que restou. [ArendtCH, 9]