78. Disponível, sempre disponível, por muito possesso pelo que se apossessa como quem se apossessa do que sempre lhe pertenceu, é, em primeiro lugar, aquele que mais propriamente se chama de religioso. O drama ritual, que se desenrola na trans-objetividade, é precisamente o drama da possessão por um deus que se oculta no homem, esperando que, pela muda linguagem do gesto hierático, se desoculte o mundo que é corpo seu. É o possessor que, mediante o possuído, desenha os contornos do mundo, do único mundo em que ambos podem viver como em mundo se vive o convívio de homens e deuses. A mensagem cifrada da Divindade [divindade] transmite-se primeiro como indecifrado aspecto do mundo. O primeiro drama ritual é mundo desumano, porque divino, em algum de seus possíveis aspectos. A objetividade processou-se ao invés; o possuído, na trans-objetividade, é o possessor na objetividade: e o sacrilégio cumpre-se sem arrependimento nem remorso; o servidor do Diabo [diabo] divide o mundo que fora corpo de um deus, em pedaços que nem se deixam reconhecer como o que são, mas só deixam prever o que virão a ser: pedaços de um mundo que consente na própria submissão a uma vontade só humana, talvez para que o só-humano se perca em sua habitação solitária. Da terra dos «homens humanos», os deuses tinham de desertar. Os deuses são dóceis, perante a vontade de quem decidiu perder-se. E agora, reconsiderando: na trans-objetividade, a religião, o drama ritual, desenha (sem o saber) aspectos do mundo, como mensagens cifradas da Divindade (ainda não reconhecidas como tais) e os mensageiros (como tais, ainda não reconhecidos) são deuses que se apossam dos homens e neles se ocultam, para mover-lhes o gesto que os desocultará como mensageiros. As mensagens da Divindade ainda são apenas mundos-corpos dos deuses acenantes das mensagens. O drama ritual é mistério cuja cifra é aspecto do mundo, enquanto mito, e mito, enquanto aspecto do mundo. O mito é simbolizante: um «objeto» ou «coisa», acrescido do ser–origem da coisa ou do objeto. Por isso, embora do ponto de vista gramatical a etimologia seja falsa, [166] a religião simbolizante é «religação» do originado à origem. O deus que, mais tarde, se reconhecerá como mensageiro da Origem apossa-se do homem, para que ele gesticule a mensagem cifrada. Nisto se cumpre a missão dos deuses: cada um se faz gesto humano, ou trans-humano, que, em um só movimento, descobre o ser do homem e de seu mundo próprio, ou o ser do mundo que abriga o ser do homem, ambos afeiçoados ao ser do deus-possessor. Isto é pensar de trans-objetividade: que, simultaneamente, o homem se descobre no mundo e o mundo se descobre no homem: que um ao outro se afeiçoaram enquanto se afeiçoavam ao mesmo deus; que qualquer um possa ser o dentro e o fora, do fora e o dentro que o outro é. O que também é princípio de simpatia e sinergia, de paixão e ação mágicas, que nada têm a ver com a magia como técnica que falha o alvo da técnica. [EudoroMito:166-167]