quantidade e substância

Se confiássemos na percepção dos sentidos, seríamos levados a confundir a substância e sua extensão quantitativa: esta massa que se acha diante de mim mostra-se indistintamente como substância e quantidade. Assim não se pode ficar muito surpreso ao ver certos filósofos, como Descartes, afirmar que entre essas duas coisas não há praticamente senão uma distinção de razão: de modo que poder-se-á dizer que a substância mesma dos corpos há de ser quantidade e extensão.

No aristotelismo, e, geralmente, mais na filosofia cristã, sustenta-se, ao contrário, que há entre substância e extensão concreta uma distinção real.

A justificação desta tese, em face da posição cartesiana, depende em última análise da metafísica e da crítica do conhecimento; aqui ela não pode, portanto, ser convenientemente levada a termo. Em suma, podemos dizer que o efeito formal próprio de uma e de outra dessas, modalidades de ser parecem irredutíveis. De si a substância dá ao corpo o existir e de maneira autônoma e lhe confere a unidade, enquanto que a quantidade, como acabamos de ver, o ordena em partes e o torna divisível. Estas duas funções opostas parecem dever levantar princípios efetivamente distintos e dos quais o primeiro é pressuposto pelo segundo. Aliás, a quantidade de um corpo pode mudar, sem que sua substância tenha sido modificada. Pode-se dizer igualmente que a quantidade é da ordem dos objetos perceptíveis aos sentidos, enquanto que a substância como tal só é alcançada pela inteligência.

Se a quantidade é realmente distinta da substância corporal, entretanto com ela encontra-se em um estado de proximidade particularmente estreito; pois é sua disposição fundamental. Por outro lado goza de certa anterioridade com relação aos outros acidentes, sendo que estes, a supõem sob o título de acidente primeiro, representando em face dêles como que um papel de segundo sujeito. Finalmente a solidariedade mais acentuada da substância e das dimensões espaciais serão postas em maior evidência na metafísica, na importante questão da individuação da substância, onde a quantidade dimensível intervirá como determinante necessário da matéria.

Tais observações não são supérfluas porque, de tanto se repetir que em oposição à física moderna, que será quantitativa, a física de Aristóteles é essencialmente qualitativa, acabou-se por esquecer que, para o Estagirita, a quantidade dimensível tem, no universo corporal, lugar tão importante que deve ser considerada como a disposição mais profunda do ser da natureza. Aqui Aristóteles encontra-se menos longe de Descartes. [Gardeil]