personalidade

(in. Personality; fr. Personnalité; al. Persönlichkeit; it. Personalità).

1. Condição ou modo de ser da pessoa. Neste sentido esse termo já foi usado por Tomás de Aquino (S. Th., I, q. 39, a. 3, ad 4a) e é geralmente usado pelos filósofos (que muitas vezes o empregam como sinônimo de pessoa).

2. No significado técnico da psicologia contemporânea, personalidade é a organização que a pessoa imprime à multiplicidade de relações que a constituem. É neste sentido que Nietzsche falava de pessoa, observando que “alguns homens compõem-se de várias pessoas e a maioria não é pessoa. Onde predominarem as qualidades medianas importantes para que um tipo se perpetue, ser pessoa será luxo. (…) trata-se de representantes ou de instrumentos de transmissão” (Wille Zur Macht, ed. 1901, § 394). Estes conceitos de Nietzsche são semelhantes aos da psicologia contemporânea. H. J. Eysenck diz: “personalidade é a organização mais ou menos estável e duradoura do caráter, do temperamento, do intelecto e do físico de uma pessoa: organização que determina sua adaptação total ao ambiente. Caráter designa o sistema de comportamento conativo (vontade) mais ou menos estável e duradouro da pessoa. Temperamento designa seu sistema mais ou menos estável e duradouro de comportamento afetivo (emoção); intelecto, seu sistema mais ou menos estável e duradouro de comportamento cognitivo (inteligência); físico, seu sistema mais ou menos estável e duradouro de configuração corpórea e de dotação neuro-endócrina” (The Structure of Human Personality, 1953, p. 2). Nesta definição, em que entram elementos já fixados por Roback, Allport, McKinnon, o elemento dominante é constituído pelo conceito de organização, estrutura ou sistema, elemento que permite prever o comportamento provável de uma pessoa. Não muito diferente desta é a outra definição, puramente funcional, cuja finalidade é possibilitar as investigações relativas à personalidade: “personalidade é o que permite a previsão do que fará uma pessoa numa dada situação (R. B. Cattel, Personality, 1950, p. 2). Neste sentido, o eu distingue-se da personalidade como a sua parte conhecida ou aberta à pessoa, à qual esta faz referência usando o pronome eu; essa parte pode não coincidir — e geralmente não coincide — com a totalidade da personalidade (v. Eu). (Abbagnano)


Em sentido empíricopsicológico, é a totalidade,, o “sistema estrutural”, das disposições e inclinações psíquicas estáveis de um homem. Na medida em que oferecem a base do modo individual de se portar ante os valores e de dirigir a vontade, os termos personalidade e caráter (caracterologia) usam-se frequentemente quase como sinônimos. Como as funções superiores (p. ex., as intelectuais) são remotamente condicionadas pelas funções inferiores, falamos metaforicamente de estratos da personalidade, por analogia com os estratos geológicos. Contudo, importa não esquecer que não só os estratos superiores (vivências intelectuais) repousam, por assim dizer, sobre os inferiores (sentidos, inconsciente), como também, ao invés, o modo de funcionar destes últimos pode ser influenciado pelas camadas superiores, produzindo-se, por essa forma, um entrosamento dos estratos psíquicos. Não se deve, outrossim, perder de vista que os estratos superiores da vida do espírito, apesar de condicionados pelos inferiores, são ontologicamente distintos deles e possuem suas funções peculiares (espírito, pensamento, vontade). Enquanto normalmente a referência das diversas funções conscientes ao eu é vivida de maneira correta e os distintos estratos vivenciais se combinam para formar um todo estruturado, há certas formas de transtorno mental (doença mental) em que esta “unidade da personalidade” pode ser profundamente quebrada (desdobramento simultâneo ou sucessivo da personalidade, despersonalização de vivências). — Embora seja dificilmente possível um desenvolvimento harmônico, universal e perfeito de todos os aspectos e disposições da personalidade, todavia cabe à dignidade da pessoa a tarefa de se empenhar em desdobrar e modelar integralmente a personalidade psicológica e, sobretudo, em orientá-la para os valores absolutos do bem moral e para as normas da personalidade ética. — WlLLWOLL. (Brugger)


É um fato que o homem se realiza e se desenvolve; a pessoa como noção metafísica é somente uma raiz, um começo, preparado só inicialmente para enrolar-se na problemática que o rodeia e fazer florescer a personalidade. Se se nos permite, e por pura comodidade explicativa, usaremos uma expressão de corte existencialista: o homem pela pessoa, é; pela personalidade, existe.

Pela personalidade, o homem vai aprofundando em sua existência ao ir-se relacionando psicologicamente com o cosmo que o rodeia; como ser sociável, vai metendo-se na sociedade em que vive, não por simples movimento numérico e gregário, senão pela gnosis, quer dizer, pela comunhão espiritual de ideias, formas de vida, atitudes problemáticas religiosas, ideoformas idiomáticas, repugnâncias e simpatias, etc.

Todo este complexo, ao mesmo tempo difícil e harmônico, uno e múltiplo, anímico e somático, é o que nos faz ser assim, o que nos situa na sociedade, o que nos mede em nossa real dimensão humana, o que nos dá a consciência de ser. E isto é o que entendemos por personalidade, como plenitude de autoconhecimento. é como a maturidade da pessoa, que converte ao homem em centro de irradiação e polo de atração de um mundo em torno, sem o que tudo permaneceria sem inteligibilidade possível. Por isso consideramos a personalidade como o primeiro pilar gnoseológico.

Efetivamente; considerada a personalidade como uma realização progressiva da pessoa, que em definitivo leva ao homem, sustentamos que essa realização se efetua a base de estruturas gnoseológicas: o conhecer é nervo vital da personalidade. E portanto é de evidência apodítica o seguinte enunciado: o homem é proporcional a seu conhecimento. Um conhecimento pobre da por resultado uma personalidade obscura, elemental, reduzida quase à fisiologia; por isto o conhecimento animal carece de gnoseologia; se trata de um conhecer alheio à criação da personalidade. O conhecimento pobre nos arrasta às existências inautênticas de que falam alguns filósofos existencialistas.

Pelo contrário, um conhecimento rico cria personalidades brilhantes, quiça equivocadas, mas certamente poderosas, cuja presença se faz sentir na sociedade. São existências autênticas, que têm um conteúdo humano, seja qual for seu signo. O conhecer, pois, está na raiz da personalidade, é um de seus elementos básicos, a condiciona profundamente, a especifica formalmente, é o fermento de sua plenitude e amadurecimento totais. [Alejandro]


Os psicólogos costumam dividir a personalidade em crosta e núcleo, o núcleo podendo ser o que a personalidade realmente é, e a crosta o que a personalidade se torna, adaptando-se e respondendo convenientemente às diferentes situações. E uma noção paralela à da sociologia, a qual, como é lógico, não tem por objeto o indivíduo como tal, inverbalizável e profundo, mas o indivíduo enquanto social, enquanto posto em relação com os demais; o indivíduo está então imerso no social, posto num status e executando um papel correspondente. Mas enquanto a psicologia sabe que a personalidade não se reduz à crosta, e enquanto a sociologia sabe que o indivíduo não se reduz ao papel, o pavlovismo pretende, ao contrário, reduzir o indivíduo à corrente dos reflexos. O pavlovismo só vê na personalidade o posto transmissor e receptor de perguntas e respostas adrede preparadas; só vê na personalidade o seu aspecto reflexológico, que é o que a personalidade não tem de livre, que é o que os psicólogos denominam crosta e os sociólogos papel. E por isso é que o pavlovismo exprime perfeitamente o reino da civilização mecânica, onde a personalidade é cada vez menos núcleo e mais crosta, onde a personalidade se torna ela própria mecânica e onde, efetivamente, a única liberdade que existe é uma certa espontaneidade, que não constitui a liberdade verdadeira. [Barbuy]


René Guénon: DISTINÇÃO ENTRE «SI MESMO» E «EU»

Em lugar dos termos “Si mesmo” e “mim mesmo”, podemos também empregar “personalidade” e “individualidade”, com uma reserva apenas, pois o “Si mesmo”, pode ser ainda alguma coisa a mais que a personalidade. Os teosofistas, que parecem ter tido prazer em embaralhar sua terminologia, tomam a personalidade e a individualidade num sentido que é exatamente inverso daquele onde eles devem ser entendidos corretamente: é a primeira que eles identificam ao “mim mesmo” e a segunda ao “Si mesmo”. Antes deles, ao contrário, e mesmo no Ocidente, todas as vezes que uma distinção qualquer foi feita entre estes dois termos, a personalidade foi sempre vista como superior à individualidade, e é por isso que dizemos que aí está sua relação normal, que tem toda vantagem em manter. A filosofia escolástica, em particular, não ignorou esta distinção, mas parece não ter dado seu pleno valor metafísico, nem que dela tenha tirado todas as consequências profundas que aí estão implicadas; é de resto, o que acontece frequentemente, mesmo nos casos em que ela apresenta similitudes mais notáveis com certas partes das doutrinas orientais. Em todo caso, a personalidade, entendida metafisicamente, nada tem de comum com aquilo que os filósofos chamam de “pessoa humana”, que não é outra coisa que a individualidade pura e simples; de resto, é somente ela, e não a personalidade, que pode ser chamada propriamente de humana. De uma maneira geral, parece que os ocidentais, mesmo quando pretendem ir mais longe em suas concepções do que o fazem a maior parte dentre eles, tomam como personalidade aquilo que não é verdadeiramente senão a parte superior da individualidade, ou uma simples extensão desta; nestas condições, tudo o que é da ordem metafísica pura permanece forçosamente fora de sua compreensão.
[…] O “Si mesmo”, considerado em relação ao ser, como p.ex. o ser humano, é propriamente a personalidade; poderíamos, é verdade, restringir o uso dessa palavra ao “Si mesmo” como princípio dos estados manifestados, assim como a “Personalidade Divina”, Ishwara, é o princípio da manifestação universal; mas podemos também estendê-lo analogamente ao “Si mesmo” como princípio de todos os estados do ser, manifestados e não-manifestados. Esta personalidade é uma determinação imediata, primordial e não particularizada, do princípio que é chamado em sânscrito Atma ou Paramatma, e que podemos, na falta de melhor termo, designar como a “Mente Universal”, mas, bem entendido, com a condição de não ver no emprego da palavramente” nada que possa lembrar as concepções filosóficas ocidentais e, notadamente, e de não tomá-lo como correlativo de “matéria” como acontece muitas vezes entre os modernos, que sofrem a respeito, mesmo inconscientemente, a influência do dualismo cartesiano. A metafísica verdadeira, repetimos, esta muito além de todas as oposições das quais esta entre o “mentalismo” e o “materialismo” nos fornece o tipo, e ela não se preocupa absolutamente com estas questões mais ou menos particulares, e frequentemente artificiais, que fazem surgir semelhantes oposições.
[…] A personalidade, insistimos ainda, é essencialmente da ordem dos princípios no sentido mais estrito desse termo, quer dizer da ordem universal; ela não pode portanto ser visada senão do ponto de vista da metafísica pura, que tem precisamente por domínio o Universal. Os “pseudo-metafísicos” do ocidente têm o hábito de confundir com o Universal coisas que, na verdade, pertencem à ordem individual; ou antes, como eles não concebem de modo algum o Universal, aquilo ao que eles aplicam abusivamente este nome é normalmente o “geral”, que não passa de uma simples extensão do individual. Alguns levam a confusão ainda mais longe: os filósofos “empiristas”, que não podem conceber sequer o geral, assimilam-no ao coletivo, que na verdade não passa do particular; e, por essas degradações sucessivas, chegamos finalmente a rebaixar todas as coisas ao nível do conhecimento sensível, que muitos consideram de fato como o único possível, porque seu horizonte mental não se estende além desse domínio e porque eles pretendem impor a todos as limitações que só resultam de sua própria incapacidade, seja natural, seja adquirida por uma educação especial.


René Guénon — O Homem e seu Devir segundo o Vedanta
Tudo isso que é dito neste capítulo, por Guénon, sobre o Si Mesmo e o «eu», só tem sentido a princípio, segundo o resumo de Jean-Pierre Laurant, do ponto de vista humano e daí resulta que «a individualidade humana é ao mesmo tempo muito mais e muito menos do que creem ordinariamente os ocidentais: muito mais, porque nada conhecem senão a modalidade corporal, que não é senão uma porção ínfima de suas possibilidades; mas também muito menos, porque esta individualidade longe de ser realmente o ser total, não é senão um estado deste ser, entre uma indefinidade de outros estados cuja soma ela mesma ainda não é nada com relação à personalidade, que só é o ser verdadeiro, porque ela só é seu estado permanente e incondicionado, e que não há senão isso que possa ser considerado como absolutamente real».

A verdadeira universalidade do Vedanta escapou aos ocidentais limitados pelas categorias aristotélicas; a noção que dele se aproxima mais é aquela dos «Transcendentais» escolásticos que são coextensivos ao Ser mas não vão além.

A Escolástica permanece ao nível de Ishwara e ignora o Supremo Brama.

A continuidade entre Si Mesmo e «eu» é tornada possível pela adaptação da doutrina do Vedanta à hierarquia dos estados de existência. A descrição de Guénon parece ser o contrário de nosso pensamento fundado sobre as categorias de Aristóteles.

Pode-se se perguntar no entanto se não permaneceu impregnado; a ideia de uma manifestação sutil parece pertencer ao pensamento gnóstico ao invés da Índia.

Ela era amplamente disseminada nos meios ocultistas, por vezes sob formas bizarras.

A origem das almas no domínio sutil fez objeto de desenvolvimentos muito detalhados na «Via perfeita» de A. Kingsford, obra que inspirou a duquesa de Pomar em quem foi criada justamente a Igreja gnóstica de Jules Doinel.

Por outro lado, os Darshanas não foram apresentados por Guénon como vias separadas de realização mas hierarquizadas à maneira do pensamento filosófico ocidental.