pathos: acontecimento, experiência, sofrimento, emoção, atributo
1. A história da palavra pathos está obscurecida por uma multiplicidade de conotações. A sua acepção mais geral significa «algo que acontece», quer em referência ao próprio evento (assim Heródoto V, 4; Sófocles, O. T., 732) quer à pessoa afetada (assim Platão, Fédon 96a: «as minhas experiências»), o último tipo de uso consideravelmente alargado em sentidos éticos, como, por exemplo, no «sofrimento instrutivo» dos trágicos (ver Esquilo, Aga. 177). A especulação filosófica bifurca-se a partir desta altura em. dois sentidos diferentes, investigando o pathos tanto como «o que acontece aos corpos» como «o que acontece às almas», o primeiro sob a rubrica geral de qualidades, o segundo sob a de emoções. A ponte é fornecida pelas teorias materialistas da sensação que reduzem o conhecimento sensorial a um pathos dos sentidos que, por sua vez, é capaz de disparar os pathe da alma.
2. Mas discutir os pathe como «o que acontece aos corpos» é apresentar o caso de uma maneira que não foi conhecida até ao tempo de Platão. Ele era com certeza capaz de distinguir entre um corpo (ou sujeito) e o que lhe acontece (ver Timeu 49a-50a), mas há poucas provas de que os pré-socráticos fossem capazes de tais distinções e da implícita separação de uma «qualidade»; o antecedente pré-socrático da qualidade, a dynamis, era visto como uma «coisa». Isto é perfeitamente claro no tratamento que Anaxágoras faz das «sementes» (ver stoicheion 11-12). Primeiro há apenas uma mistura (meigma) que contém «todas as coisas (chremata) juntamente» (frg. 1) e estas últimas apagam-se para serem, não apenas os stoicheia convencionais de Emipédocles, mas também os pathe/dynameis: o húmido e o seco, o quente e o frio, o claro e o escuro (frg. 4). Nenhum destes é perceptível, porque estão fundidos no meigma.
3. Pela instigação de um movimento rotativo por intermédio do noûs separam-se (apokrisis) várias «sementes» e estas também contêm uma porção de tudo mas são qualitativamente distintas (ver frg. 4, init.), provavelmente devido à predominância de um ou outro dos pathe. Porque não são então perceptíveis? Não são percebidas por causa do seu tamanho diminuto e é só quando se associam (synkrisis) a grandes compostos que estes últimos se tornam perceptíveis e sensivelmente diferentes devido à predominância de um tipo de constituinte (Aristóteles, Physica I, 187a).
4. No atomismo os pathe têm um papel mais restrito. Para esta corrente existem apenas átomos (atoma) e o vazio (kenon) e aqueles têm apenas duas qualidades, o tamanho e a forma (Diels 68A37; talvez também peso, ver Aristóteles, De gen. et corr. I, 326a, embora isto pareça um acrescento posterior ao atomismo; ver kinesis). Isto leva à posição de que toda a percepção e, de fato, todo o conhecimento sensível podem ser reduzidos ao contacto ou tacto (haphe; Aristóteles, De sensu 442a; sobre o problema do conhecimento intelectual, ver noesis 6). Temos conhecimento de outros tipos de experiências dos sentidos, evidentemente, mas eles são meramente subjetivos e convencionais (nomos), impressões passivas (pathe) dos sentidos às quais concedemos um certo tipo de realidade (Teofrasto, De sens. 61, 63).
5. O que está aqui nitidamente em causa e a distinção entre as forças (dynameis) ativas inerentes às coisas e que têm a capacidade de agir (poiein) e as ativações passivas (pathe) do corpo agido (paschein). Demócrito delimitara severamente as qualidades ativas (poion) rejeitando todo o mecanicismo pré-socrático de «os opostos» (enantia) e reduzindo toda a «atividade» ao tacto. Daí que a ênfase que põe na qualidade subjetiva do conhecimento sensorial pareça ser o resultado de considerações puramente teóricas, embora concordasse com os processos mais éticos do relativismo (que tinham corolários epistemológicos) promulgados pelos sofistas (ver nomos).
6. Em Platão os pathe éticos aparecem, pelo menos algumas vezes, como função da materialidade: aparecem nas partes morais e corpóreas da alma e estão lá presentes como resultado da conjunção da alma com o corpo (Timeu 42a-b, 69c). Segue a posição atomista tanto ao fazer dos pathe uma espécie de percepção como ao tentar reduzir a sensação (aisthesis) ao contacto (ibid. 61c-63e). Onde se afasta dela é ao notar que quando os contactos são excessivos há, como resultado, o prazer e a dor (ibid. 64a-65b). Esta explicação algo materialista não é unicamente de Platão ou a última palavra sobre o assunto (ver hedone 2-3), mas é interessante pelo fato de fornecer o elo entre o pathos como qualidade física e o pathos como fenômeno ético.
7. O aspecto ético dos pathe é revelado por outras considerações. Platão sustenta ainda, em certos passos, a alma como tripartida (ver psyche 15). São os pathe características de todas as partes da alma ou apenas das duas partes inferiores e corpóreas? Platão não é de modo algum claro sobre isto. No Timeu (loc. cit. e 69c-d) parecem ser excluídos do logistikon, enquanto nas Leis (897a) e no Fedro (245c) isto não sucede. De fato, toda a doutrina da alma tripartida parece basear-se no reconhecimento da existência dos pathe em conflito, e somos informados com toda a clareza na República (580d, 581a) de que cada parte da alma tem os seus próprios pathe adequados. Segundo tudo indica, Platão nunca reconciliou por completo o logistikon incorpóreo, separado e algo remoto, talvez derivado do pitagorismo e necessário à sua teoria da palingenesia e a um conhecimento dos eide, com a alma mais «comprometida» da sua análise ética do comportamento.
8. Na Metafísica 1022b Aristóteles resume sucintamente o uso que os seus predecessores fazem dos pathe como experiências de um corpo. Visto que já distinguiu a dynamis nos seus dois significados de poder e potencialidade, o pathos pode ser usado em ambos os sentidos ou, para o localizar dentro da categoria de substância e acidente, ele é uma capacidade para a mudança num sujeito (hypokeimenon) ou então a própria mudança em si, e mudança particularmente qualitativa. Esta mudança na categoria da qualidade (alloiosis, alteração) é definida como «mudança (metabole) em relação ao pathos» (Metafísica 1069b; para a sua diferença de genesis, mudança em relação a ousia, ver stoicheion 15).
9. Na Ética Aristóteles dedica toda a sua atenção aos pathe da alma. No Fedro (245c) Platão já descrevera a alma como sujeito das experiências (pathe) e fonte das atividades (erga), e Aristóteles faz destas a principal matéria da moral (Ethica Nichomacos n, 1106b; ver praxis; o terceiro estado da alma, hexis, é apenas a nossa disposição em relação aos outros dois). A virtude consiste no homem alcançar uma posição média (nieson) em relação a elas; ver arete.
10. A natureza verdadeiramente psíquica dos pathe é ilustrada pelo fato de eles serem acompanhados de prazer ou dor (ibid. II, 1105b). Mas isto não se pode interpretar como indicação de que são completamente imateriais embora sejam os afectos da alma incorpórea. Os pathe são sempre acompanhados de certas mudanças puramente físicas e é por esta razão que a psyche não pode ser considerada uma substância separada, mas antes a entelecheia de um corpo (De anima I, 403a). E quando o mesmo critério é aplicado ao noûs, a sua própria falta de pathe sugere que ele é imortal (ibid. I, 408b); ver noûs.
11. Na altura em que o atomismo aparece na sua versão epicurista, podem notar-se os aperfeiçoamentos platônicos e aristotélicos acerca dos pathe. O elemento subjetivo, predominante em Demócrito, foi mitigado (ver holon), e enquanto os pathe são ainda sensações essencialmente tácteis, são agora distinguidos pela presença concomitante de prazer ou dor. São estes que se tornam agora o centro da atenção pelo fato de refletirem a adequação (oikeion) ou a não–adequação (allotrion) do objeto percebido e assim fornecerem critérios para a escolha do bem ou do mal (D. L. X, 34, 129; ver hedone. Para o papel recentemente expandido da «adequação» no estoicismo, ver oikeiosis).
12. Ao que parece Zenão sustentou que todos os pathe, que eram definidos como «impulsos excessivos» (hurrnai; essencialmente a mesma ideia é expressa no Timeu 42a-b), eram movimentos irracionais da alma (D. L. VII, 110), enquanto Crisipo preferiu a posição mais intelectualista de os considerar um estado da faculdade racional (hegemonikon; SVF III, 459, n, 823; ver aisthesis 5, noesis 17). Para o estoico a vida virtuosa não consiste em encontrar um meio para os pathe, como em Aristóteles, mas sim em extirpá-los totalmente. O sábio, então, é alguém que alcançou o estádio de apatheia. Os quatro pathe principais são: a dor, o medo, o desejo e o prazer (D. L. VII, 110; são definidos SVF III, 391; confrontar as listas platônicas e aristotélicas no Timeu 42a-b e na Ethica Nichomacos II, 1105b; ver também noesis 17).
Para os pathe da matéria, ver paschein, dynamis, poion, ononia; para a cura dos pathe éticos, sobre o princípio homeopático, katharsis; para a sua extirpação, apaíheia; para a sua ligação com a percepção, aisthesis.
páthos (tó): paixão. Latim: passio, affeetio, perturbatio. Plural: páthe (tá) / pathe (ta).
– Metafísico. É o contrário de ação ou, mais precisamente, não o sujeito que pratica a ação, mas o objeto que a recebe.
– Psicológico. É o fato de sofrer, de ser coagido e movido por uma força interior que escapa à vontade. Por isso, páthos é também sofrimento, dor, tristeza; o termo páthe / pathe (aqui fem. sing.) tem exclusivamente esse sentido.
A raiz grega path- encontra-se em latim, onde assume o mesmo significado; o infinitivo pati quer dizer sofrer, nos dois sentidos: ter sofrimento e permitir/receber. Passio (tardio) abrange, por um lado, um sentimento intenso e penoso e, por outro, um longo sofrimento físico: paixão pelo jogo, Paixão de Cristo ou dos mártires. Derivam do grego o termo moderno patético e os termos científicos patologia, patógeno, neurópata etc.; do latim,padecer, paciente, passivo, passional.
Composto: apathés / apathes, impassível, que não é capaz de sofrer.
Aristóteles opõe ação e paixão desde o tratado Das categorias. Mas ele as designa com os infinitivos substantivados: tò poiein / to poiein e tò páskhein / to paskhein, agir e sofrer (IX e X). Na Metafísica (A, 21), páthos costuma ser traduzido por afeição, ou seja, qualidade, estado que afeta uma substância.
Foram os estoicos que mais estudaram a psicologia da paixão: esta é má influência da sensibilidade sobre a razão. Crisipo a define como “movimento irracional da alma” (Arnim, Fragmenta veterum Stoicorum, III, 113); Zenão, como “um movimento irracional (álogos / alogos) e contrário à natureza” (para physin). Esse fato de ser um movimento (kínesis / kinesis) a diferencia de outros estados de alma, como a doença e o vício, que são afeições contínuas, enquanto a paixão é ocasional (Zenão, in D.L.,VII, 110; Cícero, Tusc, IV, XIII, 30).
Dois problemas apresentados pela paixão.
– Classificação. No Timeu (69d), Platão enumera incidentemente cinco paixões principais: prazer, tristeza, ousadia, medo, esperança. Em sua Retórica, Aristóteles dedica doze capítulos do livro II a esse tema: um às paixões em geral, onze às principais: cólera, brandura, amor e ódio, medo, vergonha, beneficência, piedade, indignação, inveja, emulação. Os estoicos esmeraram-se na racionalização desse exercício, em seus múltiplos tratados Das paixões, em especial de autoria de Zenão, Crisipo, Aristão, Esferos, Hecatâo, Herilo. A lista clássica parece ser a de Zenão e Hecatão (DL.,VII, 110), e provavelmente de Aristão, que lhe dava o nome de tetracórdio (Clemente de Alexandria, Stromata, II, XX, 108): tristeza (lype), medo (phóbos / phobos), prazer (hedoné / hedone), desejo (epithymía / epithymia).
– Valor moral. Como o homem é definido pela razão, e como a paixão é contrária à razão, ela se mostra contranatural e, de direito, é imoral. Foram especialmente os estoicos que mais se estenderam sobre esse fato. Mas as paixões vêm do exterior, do mundo sensível, uma vez que não estão em meu poder; só se tornam condenáveis quando lhes dou meu assentimento (Epicteto, Leituras, III, XXIV, 20-24; IV, I, 82, 85 etc; Cícero, Tusc, II, XXV, 61; III, XXIX, 72; etc). [Gobry]