outro

(theteron; in. Other; fr. Autre; al. Andere; it. Altró).

Um dos cinco gêneros supremos do ser, enunciados por Platão em Sofista, e que são: o ser, o repouso, o movimento, o idêntico e o outro O motivo para admitir o outro como um gênero à parte é o seguinte: o repouso e o movimento são-, portanto, sob o aspecto do ser, são idênticos. Mas também são diferentes um do outro, e essa diversidade é exatamente como é a sua identidade (devida ao fato de que ambos são). O outro (o diferente) é, portanto, um gênero igualmente originário e irredutível aos outros quatro (Sof, 254 ss.). O reconhecimento do outro como gênero supremo é muito importante, pois permite que Platão resolva a antinomia (típica da sofistica e da erística), segundo a qual é impossível dizer o falso porque o falso é o que não é, e dizer o que não é significa dizer nada, ou seja, não dizer. Desse ponto de vista, o erro deveria ser declarado inexistente, e não haveria sequer diferença possível entre o filósofo, que se preocupa em estabelecer a distinção entre verdade e erro, e o sofista, que não se preocupa com isso. Admitido, porém, o outro como gênero supremo, o não-ser poderá ser interpretado: não como o nada, mas como o outro do ser, mais precisamente do ser de que se fala; p. ex., dizer que algo é não grande ou não belo significa dizer que é outro, diferente do grande e do belo, mas nem por isso é o oposto do ser, o nada (Ibid., 257 b ss.). Essa afirmação da realidade do não-ser, enquanto outro ou diferente, é apresentada pelo Estrangeiro eleata, principal protagonista do Sofista, como uma espécie de “parricídio” em relação a Parmênides, que afirmara que só o ser é, e que o não ser não é (Ibid., 242 d). Essas observações de Platão, sobretudo sobre a categoria do outro, depois foram empregadas com frequência para esclarecer a noção de nada . (Abbagnano)


Heidegger caracterizou nossa existência quotidiana como sendo uma “existência entre os outros”. O “outro” é igual a nós, mas também é alguém que está, irremediavelmente, separado de nós (v. análise existencial da comunicação). A distância pode ser abreviada quando o “outro” se torna a segunda pessoa, o “você”. A análise existencial da comunicação mostra como a relação ao “você” singular é ontologicamente diversa da relação ao “você” plural, ou ao “eles”; enquanto aquela pode se dar “de imediato”, à flor de nossa pele, o relacionamento ao “vocês” pluralizando só se faz através da persona ou do espaço pessoal. Para o “você”, para a pessoa íntima e querida, “abrimos nossa alma” — nossas qualidades e defeitos. No relacionamento com o “você”, a linguagem é reveladora, criativa, apofântica; no relacionamento ao “vocês” — que é o relacionamento “para uso externo” — a linguagem é repetitiva, fundada numa lógica impessoal, a lógica do “senso comum”, e sua inteligibilidade só é possível dentro desta lógica.

A noção de “outro” conjugada à noção de “espaço pessoal” permite-nos compreender o “crime original”, o roubo. A comunicação externa à persona, a comunicação social, se faz através de ideologemas, através da linguagem do “senso comum”. Existem, no entanto, conteúdos incomunicáveis através de ideologemas: e este se acumularão em nosso espaço pessoal, tornando-o um espaço de culpa. Relacionados a esta transformação estão os casos em que, por exemplo, a mulher queixosa diz, “depois do casamento meu marido mostrou o que ele era na verdade”. Antes do casamento, o relacionamento entre o noivo e a noiva se fazia através da persona; o noivo tratava a futura mulher não como uma segunda pessoa, como o “você”, mas sim como um espectador individual que dentre os outros espectadores da família dela, assistisse à sua representação. O casamento permitiu a “revelação da verdade”: transformou a mulher no “você” e abriu para ela espaço pessoal culposo do marido.

O crime admitido pelo senso comum, o “crime comum” é o roubo. O arquétipo do roubo é o roubo de dinheiro; e dinheiro é aquilo que nos permite acesso a todos os valores ideológicos, objetificados, do “mundo exterior”. O roubo é o gesto que, num curto-circuito, põe disponíveis a nós os valores que o quotidiano mantém inacessíveis a nós, mas que dominam e orientam a nossa vida quotidiana como a cenoura na ponta da vara serve para guiar o cavalo com antolhos. O roubo é todo crime que preserva o espaço pessoal transformado num espaço da culpa, e que impede o extravasamento dos conteúdos culposos e perturbadores para o mundo “objetivo” do senso comum. E, por outro lado, qualquer atitude que possa destruir o espaço da culpa é uma atitude essencialmente “subversiva”. (Francisco Doria – DCC).


IDENTIDADE — OUTRO

VIDE: EVA; QUEDA; MESMO-OUTRO


BÍBLIA DAS ORIGENS
Paul Nothomb: Ça ou l’histoire de la pomme racontée aux adultes

“Não é bom que o ser humano esteja só para ele” (Gn 2,18). A fórmula “o ser humano” (em hebreu heyot haadam) não aparece em nenhuma parte da Bíblia, e me parece significar aqui que reúne todas as facetas possíveis do homem, desde o Adão original até o indivíduo da condição humana para afirmar que o “eu” não pode se passar do “tu” (v. Martin Buber). Que o “tu” ou o “ele” ou o “ela” são essenciais ao ser do homem, qualquer que seja. É evidente em nossa condição mortal, onde a solidariedade é vital, mas é menos no Éden, onde Adão — cada um dos Adão — não tem necessidade de ninguém para sua subsistência, sua felicidade, sua alegria, posto que tudo lhe é dado por seu ambiente e por sua multi-sexualidade, No entanto Esta frase é dada por Deus ele mesmo e visa então o Adão original, sem dúvida para lhe fazer tomar consciência desta dimensão dele mesmo que, cativada pela abundância do jardim (v. Árvores do Paraíso), negligencie ou ainda não tenha descoberto.

Retomando o início da frase: “Não é bom”. Em hebreu “lo tov”. “Tov” é um adjetivo muito rico. Antes de significar “conforme” quer dizer “bom” assim como “belo”. No Relato dos Seis Dias espécie de introdução ao nosso relato, Deus repete seis vezes “é bom” para marcar sua satisfação de sua obra quando a contempla. Talvez isto signifique “conforme a seu projeto” mas também “bom” ou mesmo “belo”. No relato, aquele do Éden (palavra que quer dizer “prazer” em hebreu) a conotação estética ver erótica é a mais provável. Deus concebe Adão para a felicidade e a beleza. Sem dúvida um não vai sem o outro. E a solidão, não física, mas moral do Adão, no início no jardim, onde é muito solicitado pela riqueza da vegetação que o cerca, não corresponde à abertura de sua “Consciência de Existir” que o caracteriza (Gen 2,7). Esta supõe a linguagem e o altruísmo em um ser livre. Logo é “bom” ser livre. E não é bom nem belo para Adão ser só para ele.

O conhecimento da verdade, logo, se cultiva no secreto. E instintivamente do lado onde se supõe que se encontram suas raízes, no lugar que relembra, que se saiba ou não, o Jardim do Éden. Freud se engana confundindo esse conhecimento com a evidência para o qualificar de triste, pois cada um aspira à felicidade, à alegria e ao amor sem fim, eis a verdade. Cegante e desconhecido. Mais que tudo, o Adão original deve descobri-lo nele. É o paradoxo da verdade como liberdade. Quanto mais dele se desfruta, mais se o vê, menos dele se tem consciência.

E é sem dúvida a explicação do sono profundo que Deus mergulha Adão, tomado pelas delícias “comestíveis” que o cercam. Privado momentaneamente de sua liberdade, reentrado nele mesmo, será confrontado a seu verdadeiro “eu” que não se dá sem um verdadeiro “tu” (v. Martin Buber). A linguagem, esta “ajuda em face dele” que bastou para fazer existir para ele os animais, não lhe permite um verdadeiro contato com um outro Adão, muito idêntico a ele talvez, mas sem uma espécie de comunhão que lhe faça sentir sua alteridade e sua complementaridade. O “lado” (costela em muitas traduções) retirado do primeiro para ser oferecido ao segundo, não sem ter sido inflamado de passagem, é uma metáfora do “dom de sivivido como um prazer e não como um sacrifício, e nada tem a ver com a pretendida “criação da Mulher”. É o Adão, o segundo dos dois, aqui posto em cena, que constata nas primeiras palavras (e as únicas) que o texto lhe faz pronunciar, o fracasso da tentativa divina. Ela não alcançou a uma comunhão, a um conhecimento mútuo, mas a uma anexação, de um dos Adão pelo Outro. Aquele que fala e se vangloria não diz jamais “tu” mas sempre “eu” designando seu parceiro do mesmo termo menosprezante que seu experiência, Zoot, “Isto”.

Pois é uma experiência a sua maneira que crê ter alcançado Adão em contrapondo a intervenção de Deus em seu favor. Mas este se revela aqui verdadeiramente o Deus da liberdade. Não somente respeita aquela da criatura a sua semelhança, mas longe de dela se desinteressar lhe oferece uma segunda chance. E mesmo uma terceira esperando sem dúvida fazer mudar de opinião o novo casal animal que Adão efetivamente se tronou em se nomeando fraudulosamente assim.

Nas únicas palavras que o texto lhe faz pronunciar antes de sua auto-degradação, Adão ainda Um e múltiplo se proclama com efeito iysh, e o outro isha, duas palavras com consonâncias semelhantes mas sem raiz comum, a primeira designando um indivíduo qualquer e a segunda o fogo que Deus pôs no famoso “lado” (“costela”) de um dos dois Adão para o aportar ao outro, e os inflamar todos os dois em uma espécie de êxtase de fusão, provisório mas evocador. O Adão que se nomeia iysh se autodegrada, e anexa o outro em o nomeando isha como se “isha” derivasse de “iysh”. Pode-se pensar ao contrário que este iysh deriva aqui de isha, anterior no texto. Isto tem ar de um jogo de palavras mas faz bem o papel da linguagem no “Isto”, este evento misterioso na origem da condição humana que é em realidade o episódio da Costela de Adão, sempre interpretado como a “criação da mulher”.

Não é a mulher (em sentido literal) que “comendo da maçã” (v. Eva Serpente Maçã) que precipitou a perdição da humanidade. É o Adão Um e múltiplo que de alguma maneira “masculinizou-se” em se separando de sua componente “feminina”, e em anexando-a sob forma ou não de um substituto. Operação inimaginável, se passando em outras dimensões que as nossas, e da qual não conhecemos senão o resultado. Mas que é marcada no texto do Gênesis 2, depois dos três Zoot pela substituição de dois nomes ish e isha pelo seu nome de origem (Adão) que ele partilhava com sua parceira.

Todavia esse nome retorna no versículo Gen 2,25 mas com uma conotação muito diferente. A frase é “eventual” e não circunstancial como nas traduções de nossas bíblias, quer dizer que ela anuncia um fato novo na narração e não um simples desenvolvimento como se pode crer erradamente em sua formulação tradicional no imperfeito. Deve-se lê-la: “E eles foram eles dois, a fazer malícias, o Adão e sua mulher, sem experimentar incômodo”. “Eles foram” e não “eles estavam” de nossas bíblias.

O casal “Adão e sua mulher” não faz lembrar o Adão senão pelo Adão citado, depois da separação do elemento “mulher” (Outro, Outro Adão) que o constituía. E não é em lhe ajuntando que se refaz sua unidade. Em adicionando os dois, chega-se ao mesmo desastre que em lhes subtraindo um do outro, quer dizer que eles não encontram o que perderam. 1 + 1 = 2 e 1 — 1 = 0. Só 1 x 1 = 1.

Pode-se dizer que esta fórmula híbrida e não viável marca uma transição, uma situação provisória permitindo um sursis no qual o nome de Adão resta evocado para lhe deixar uma chance de mudar de opinião, de voltar atrás. Quer dizer de permanecer no Éden, enquanto ele mesmo se expulsou em se autodegradando em “ish” e “isha”. A cena do “sono profundo” vai recomeçar em um cenário mais amável, e sobretudo mais representável, mesmo se a pintura lhe dê um aspecto realista ao qual não se deve deixar tomar.