objeto da inteligência

Uma potência no aristotelismo é especificada, e portanto definida, pelo seu objeto. Mas como há diversos gêneros de objetos, importa que fixemos de que gênero se vai tratar.

A escolástica anota continuamente uma primeira distinção: a do objeto material (a coisa exterior conhecida em sua realidade total), e a do objeto formal (o aspecto preciso visado nesta coisa pela potência). Tomás de Aquino, por sua vez, não contesta de modo algum a legitimidade desta distinção. De ordinário nada diz a respeito. Para ele o objeto é normalmente o objeto formal.

Se agora nos referirmos ao texto fundamental do De Anima (II, c. 6), convirá distinguir, com respeito às potências, três espécies de objetos:

– o objeto próprio: o que é atingido imediatamente e por si, “primo et per se”, pela potência: a cor, por exemplo, para a vista, o som para o ouvido: diante deste objeto uma potência não pode falhar, encontrando-se em condições normais de percepção.

– o objeto comum: o que é atingido por diferentes potências, pertencendo sempre a um mesmo gênero de objetos; assim, para Aristóteles, o movimento, o repouso, o número, a figura, o tamanho, constituem o grupo dos sensíveis comuns; como há no homem só uma faculdade intelectual, só se pode, neste nível, falar de objeto comum relativamente a inteligências de graus diversos, divina, angélica e humana.

– o objeto acidental: o que apenas indiretamente é atingido pela potência, enquanto associado a seu objeto próprio: é acidental para minha vista que o objeto branco que avança para mim seja o filho de Diares.

– na doutrina da inteligência, ao lado de seu objeto próprio, deve-se ainda tratar de seu objeto adequado ou extensivo: é aquele que corresponde a todas as virtualidades desta faculdade, as quais só incompletamente podem ser determinadas pelo seu objeto próprio; praticamente será o objeto comum, considerado sob o aspecto mediante o qual preenche toda a capacidade de uma inteligência dada.

A teoria do conhecimento apresenta-se no aristotelismo como uma reação contra o intelectualismo da filosofia das ideias: por isso será necessário, antes de tudo, considerar a reação no sentido do empirismo: com isto estaremos em condições de assinalar à inteligência seu objeto próprio, a “quididade” das coisas sensíveis.

Esta volta para um intelectualismo mais concreto, mas também mais limitado, colocará um novo problema. Se a inteligência encontra no mundo corpóreo seu objeto próprio, não será necessário lhe interditar tudo o que está acima deste mundo, os espíritos puros e o próprio Deus? E se admitirmos que estas realidades são também atingidas, resta explicar como isso é possível. Com isso será precisado o que se deve entender por objeto adequado da inteligência humana.

Mas, até onde se estende este poder de nossa inteligência? No cume do mundo dos objetos encontra-se o supremo inteligível, a essência divina. A inteligência criada estará em condições de captar diretamente este objeto? Sendo a resposta afirmativa, como conceber esta capacidade do divino? É o problema especial da visão de Deus, problema que se coloca antes para o teólogo, mas, como filósofos, ser-nos-á proveitoso considerar certos aspectos dele.

Discussão das teorias antecedentes.

Para se pôr a caminho da definição do objeto próprio da inteligência humana, não se pode fazer melhor que seguir a marcha progressiva dos artigos pelos quais, na Summa, Tomás de Aquino chega a esta definição (Ia Pa, q. 84, a. 1-8). “Como a alma unida a um corpo, pergunta ele nesta questão, pode conhecer as realidades corporais que estão abaixo dela?”.

A alma, pela sua inteligência, conhece os corpos (A. 1).

Neste primeiro artigo, Tomás de Aquino institui uma discussão geral da tese platônica. Tendo em vista escapar do materialismo mobilista de Heráclito, que comprometia a verdade de todo o conhecimento, dera Platão, por objeto às ciências, realidades imóveis e separadas; daqui se seguia que o conhecimento intelectual não se referia de modo algum às coisas percebidas pelos sentidos.

Esta doutrina tem um duplo inconveniente: torna vã toda ciência da natureza. Chega a esta consequência absurda que, para se tomar consciência das coisas que nos são manifestas, recorre-se a seres que diferem delas substancialmente. O erro de Platão fundamenta-se no fato de não ter podido compreender que as coisas têm um modo de existir diferente no espírito e na realidade: universal e imaterial no primeiro caso, particular e material no segundo.

A alma não conhece o corpo pela sua própria essência (A.2).

Outras hipóteses podem ser formuladas. Assim, não conheceremos as coisas corporais percebendo-nos a nós mesmos, como Deus conhece todas as coisas na sua essência? Os antigos naturalistas tinham dado uma forma materialista a esta teoria: o semelhante é conhecido pelo semelhante, o fogo exterior pelo fogo que está em nós, etc. Esta explicação evidentemente não se sustenta, pois, entre outras razões, o conhecimento só pode supor na alma uma presença imaterial das coisas. Na realidade, só a inteligência divina conhece as coisas pela sua essência, per essentiam; as inteligências inferiores, humanas ou angélicas, podem captá-las somente por meio de uma semelhança, ou per similitudinem.

A alma não conhece as coisas por idéias infusas ou inatas (A. 3).

Poder-se-ia ainda imaginar que estas semelhanças, de que necessita a alma para conhecer outras coisas, ou foram-lhe originariamente comunicadas, ou as tem por um privilégio da natureza. Não pode ser assim, pois então deveríamos ter um conhecimento sempre atual, o que evidentemente não se dá. Dizer com Platão que esta não-atuação de formas que possuímos deva-se ao impedimento de nosso corpo, só nos lança em outra dificuldade: como se explica que uma união, que é segundo a natureza (a da alma e do corpo), possa impedir o exercício de uma atividade fundada, também ela, na natureza (o conhecimento das “species” naturalmente presentes à alma)?

A alma não pode conhecer por meio de “species” vindo de formas separadas (A.4).

Ainda uma vez nos encontramos diante de uma tese de Platão mas sob a forma que lhe vestiu Avicena. As formas separadas não teriam existência independente, o que é pouco inteligível, mas preexistem em inteligências superiores; estas as comunicam ao intelecto agente de onde, no momento conveniente, informam o intelecto possível. As dificuldades relativas à existência separada das ideias seriam assim resolvidas. Mas com essa teoria permanece não justificada a união da alma e do corpo. Se o corpo não tem por função superior fazer chegar até nós as semelhanças das coisas, ele não tem mais razão de ser.

Em que sentido a alma conhece nas “razões eternas” (A. 5).

Aqui Tomás de Aquino se interroga sobre o valor da adaptação feita por Agostinho às concepções de Platão. este é um ponto sobre o qual só podemos dar razão ao intérprete cristão da teoria das ideias; colocando-as em Deus, corta de um só golpe todas as dificuldades que sua existência separada apresenta. Mas pode-se com ele afirmar que conhecemos as coisas por meio dessas “razões” que eternamente apresentam as coisas ao pensamento criador? Uma feliz distinção permitirá a Tomás de Aquino, sem em nada comprometer sua própria doutrina, entrar em acordo com o doutor de Hipona. Conhecer uma coisa “em outro” pode ser tomado em dois sentidos: como “em um objeto conhecido”, o que é impossível aqui e como “em um princípio de conhecimento”, não sendo nossa luz intelectual mais que a semelhança participada desta luz incriada na qual estão contidas as tais razões. Isto não impede que, para se dar o conhecimento, sejam requeridas, a mais, semelhanças extraídas das coisas sensíveis. Aristóteles e Santo Agostinho encontram-se assim de acordo

Conclusão: nosso conhecimento intelectual procede das coisas sensíveis. (a. 6, 7, 8)

Uma vez que a teoria platônica, como aliás o sensualismo de Demócrito, chocam-se contra toda espécie de incompatibilidades, uma só via permanece aberta, a deste intelectualismo fundado sobre o conhecimento sensível que constitui a “via media” de Aristóteles. Nosso conhecimento intelectual vem inteiramente dos sentidos: o objeto próprio deste conhecimento, concluir-se-á, é a natureza ou a “quididade” das coisas sensíveis.

Seria preciso poder seguir mais de perto as discussões que precedem, como seria bom também analisar os artigos 7 e 8, onde a solidariedade de nossos dois modos de conhecer encontra-se bem ressaltada por observações muito importantes, tais como o efeito das lesões orgânicas sobre o pensamento, a necessidade das imagens para a vida intelectual, para que se possa estar em condições de apreciar todo o cabedal de experiência e de reflexão que fundamenta a solução aqui proposta. Aqui ainda o laconismo das fórmulas e a aridez de certas exposições de nossos mestres não nos devem enganar.

Definição do objeto próprio da inteligência humana. Caráter deste objeto próprio.

Do que precede resulta que o objeto próprio do intelecto humano, que está unido a um corpo, é a quididade ou a natureza existente na coisa corpórea:

“intellectus autem humani qui est conjunctum corpori proprium objectum est quidditas, sive natura, in materia corporali existens” a. 7

Inúmeros textos fazem eco a este: “o objeto próprio da inteligência é a quididade da coisa, a qual não está separada das coisas, como pretenderam os platônicos” (De Anima, III, I. 8, n. 717) ; “o objeto de nossa inteligência em nosso estado presente é a quididade da coisa material” (Ia Pa, q. 85, a. 8) etc . . .

Comparação com o objeto próprio das outras inteligências.

A doutrina precedente se esclarece singularmente se colocada em relação com a doutrina do objeto próprio das outras potências de conhecer, sensíveis ou espirituais; o que Tomás de Aquino fez diversas vezes (cf. Ia Pa, q. 12, a. 4; q. 85, a. 1). Assim:

– No grau mais inferior da escala está o sentido que é uma potência ligada a um órgão corporal; seu objeto próprio é a forma enquanto existente na matéria corporal: “forma prout in materia corporali exsistit”.

– Acima, situa-se a inteligência humana que tem por objeto a forma existente na matéria corporal, mas não enquanto está em tal matéria: “forma, in materia quidem corporali existens, non tamen prout est in tali materia”.

– Vem, a seguir, a inteligência angélica, esta, totalmente desligada da matéria; seu objeto próprio é, paralelamente, a forma subsistente sem matéria: “forma, sine materia subsistens”.

– Enfim, no cume, encontra-se a inteligência divina, que é idêntica ao próprio ser subsistente de Deus, e que só ela tem este ser como objeto próprio: “cognoscere ipsum esse subsistens est connaturale soli intelectui divino”. [Gardeil]