morte de Deus

A crítica ao idealismo, ao evolucionismo, ao positivismo e ao romantismo não cessa. Essas teorias são coisas “humanas, muito humanas”, que se apresentam como verdades eternas e absolutas que é preciso desmascarar. Mas as coisas não ficam nisso, já que Nietzsche, precisamente em nome do instinto dionisíaco, em nome daquele sadio homem grego do século VI a.C, que “ama a vida” e que é totalmente terreno, por um lado anuncia a “morte de Deus” e por outro realiza profundo ataque contra o cristianismo, cuja vitória sobre o mundo antigo e sobre a concepção grega do homem envenenou a humanidade. E, por outro lado ainda, vai às raízes da moral tradicional, examina a sua genealogia e descobre que ela é a moral dos escravos, dos fracos e dos vencidos ressentidos contra tudo o que é nobre, belo e aristocrático.

Na Gaia ciência, o homem louco anuncia aos homens que Deus está morto: “O que houve com Deus? Eu vos direi. Nós o matamos — eu e vós. Nós somos os seus assassinos!” Pouco a pouco, por diversas razões, a sociedade ocidental foi se afastando de Deus: foi assim que o matou. Mas, “matando” Deus, eliminam-se todos os valores que serviram de fundamento para a nossa vida e, consequentemente, perde-se qualquer ponto de referência: “O que fazemos separando a terra do seu sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós, longe de qualquer sol? Não continuaremos a nos precipitar para trás, para os lados e para a frente? Ainda existem um alto e um baixo? Não estaremos talvez vagando por um nada infinito? (…) Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos!”

Para Nietzsche, nós eliminamos o mundo do sobrenatural, mas, assim fazendo, infringimos também o quadro dos valores e ideais a ele ligados. E, assim, nos encontramos sem ponto de referência: nós matamos Deus e com ele desapareceu o homem velho, mas o homem novo ainda não apareceu. Diz o louco em Gaia ciência: “Venho cedo demais, ainda não é o meu tempo. Esse acontecimento monstruoso ainda está em curso e não chegou aos ouvidos dos homens.”

A morte de Deus é fato que não tem paralelos. E acontecimento que divide a história da humanidade. Não é o nascimento de Cristo, e sim a morte de Deus, que divide a história da humanidade: “Quem quer que nascer depois de nós, por isso mesmo, pertencerá a uma história mais elevada do que qualquer outra transcorrida”. E esse acontecimento, a morte de Deus, anuncia antes de mais nada Zaratustra, que, depois, sobre as cinzas de Deus, erguerá a ideia do super-homem, do homem novo, impregnado do ideal dionisíaco, que “ama a vida” e, voltando as costas para as quimeras do “céu”, voltará à “sanidade da terra”.

Proclama, portanto, Zaratustra: “Oh, meus irmãos, aquele Deus que eu criei era a obra louca de um homem, como são todos os deuses (…), o cansaço, que de um só salto — com salto mortal — pretendia alcançar o cume, esse pobre e ignorante cansaço, que ademais não sabe sequer querer: ele criou todos os deuses e o sobrenatural”. E aqueles que pregam mundos sobrenaturais são “pregadores da morte”, porque “todos os deuses estão mortos”. [Reale]


(in. Death of God; fr. Mort de Dieu; al. Gottertod; it. Morte di Dió).

O anúncio de que “Deus morreu” foi feito por Nietzsche, no sentido de que “a no Deus cristão tornou-se inaceitável” (A Gaia Ciência, 1882, § 108, 125, 343), mas hoje é considerado símbolo da renovação do cristianismo, que precisava libertar-se das estruturas mitológicas e sobrenaturalistas de que se revestira nos séculos anteriores, reencontrando a pureza de sua mensagem. Essa “nova teologia” inspira-se substancialmente na obra de Bultman (v. desmitificação) e de Bonhoeffer (v. Deus, 2, b): contrapõe a à religião, nega a transcendência de Deus (sendo, pois, quase um panteísmo) e transfere para o mundo histórico a esperança escatológica dos primórdios do cristianismo ao afirmar que “Deus não é, mas será”, no sentido de que se realizará como amor no seio de uma comunidade humana ajustada ao exemplo de Cristo (G. Vartanian, Death ofGod, 1961; T. Altizer, The Gospel of Christian Atheism, 1967). [Abbagnano]


A «Morte de Deus» não parece situar-se no contexto da morte dos deuses, criadora de vida cósmica, mas certamente dá forma ao ritual da nossa vida presente, da vida que é humana por [50] excesso, da vida demasiado humana; e, como tal, é mito que, como todos os mitos, explica, não se explica, não é explicado, não tem explicação. Julgo que, na sequência, se torna evidente para o leitor que o Deicídio por Nietzsche denunciado só significa para nós confirmação da perenidade de um mito, ou, melhor, de um impulso mítico, criador de mitos. Não me proponho, de modo nenhum, extrair dele as consequências conhecidas pela leitura de toda a obra do filósofo. Excitante e incitante é só que na mente privilegiada de um homem tivesse surgido essa ideia de que a «morte de Deus» desfecha uma rajada de motivos para dar razão suficiente a uma forma de vida humana, tão «demasiado humana», que ratificou e promoveu todas as consequências implicadas na grande Recusa Adâmica. A morte dos deuses desoculta mundos em que eles se ocultam. A morte de Deus não desoculta mundo, dá forma, que parece definitiva, ao Homem, que já tinha começado a construir o seu Mundo, com os destroços do mundo em que se recusara a viver; mas quando chegou a aperceber-se de que a vida de Deus se ia aproximando do fim, sabendo que, daí por diante, só podia contar consigo, da forçada renúncia faz grande triunfo («Se não fizermos da morte de Deus uma grandiosa renúncia e uma contínua vitória sobre nós, temos de suportar a perda»): acabaria, não por regressar ao Paraíso por Deus plantado, mas por ingressar no paraíso que estava em vias de edificar. A morte de Deus também se faz mundo, mas só através da operosidade humana. Morte de Deus é vida do Homem, e este é que morre para dar vida ao Mundo. Do Deicídio, passa-se ao Homicídio. Vale para este mito o que dissemos da ilusão de que a mitologia é «biografia dos deuses»: a história não é tanto biografia do Homem quanto a do mortificante trabalho de construir o Mundo, em que ele efetivamente não vive. O Homem não vive no Mundo, mas diante dele, fora dele. Nenhum artífice vive dentro da sua obra, enquanto obra. Pelo menos, esta, a construção do Mundo, é das que nunca se darão por terminadas. Homem não habita Mundo que é sempre um «afazer». Em lugar nenhum o homem habita, enquanto faz o que tem de fazer, desde o momento em que se recusou a aceitar, por habitação sua, aquela que Deus ou um deus fizera sem nada ter que fazer: habitação do homem que ainda não é Homem, já estava pronta no corpo visível de um deus invisível, num mundo que ainda não é o Mundo. O Deus que morreu, sepultou-o o Homem sob a pedra fundamental do Mundo a fazer, e o afazer que o Mundo é exige que o Deus não ressuscite («Toda a Igreja é pedra sepulcral de um [51] HomemDeus: quer absolutamente que ele não ressuscite.» Aqui o Zaratustra de Nietzsche encontra-se com o Inquisidor-Mor de Dostoiewski.) O Mundo que o homem faz, em seu infindável afazer, assegurará que o Deus não volte mais. Ilusório triunfo! O Homem sofrerá pior destino se quiser ocupar o lugar que Deus deixou vazio: terá de morrer vezes sem conta, excedendo-se de cada vez que morre, porque Deus é Excessividade Caótica, o Excesso que vem subindo do abismo sem fundo [v. excessividade]. [EudoroMito:50-52]