(in. Mysticism; fr. Mysticisme, al. Mysticismus; it. Misticismo).
Toda doutrina que admita a comunicação direta entre o homem e Deus. A palavra mística começou a ser usada nesse sentido nas obras de Dionísio o Aeropagita, pertencentes à segunda metade do séc. V e inspiradas no neoplatônico Proclo. Em tais obras é acentuado o caráter místico do neoplatonismo original, que é a doutrina de Plotino. Para isso, insiste-se na impossibilidade de chegar até Deus ou de realizar qualquer comunicação com ele através dos procedimentos comuns do saber humano, de cujo ponto de vista só se pode definir Deus negativamente (teologia negativa). Por outro lado, insiste-se também numa relação originária, íntima e pessoal entre o homem e Deus, em virtude da qual o homem pode retornar a Deus e unir-se finalmente a ele num ato supremo. Este é o êxtase, que Dionísio considera a deificação do homem.
Esse é o esquema de toda doutrina mística, e foi extraído pelo pseudo-Dionísio dos textos neoplatônicos; contém muitos vestígios das crenças orientais, às quais deviam boa parte de sua inspiração. O misticismo medieval colocou-se algumas vezes como alternativa que excluía o caminho da busca racional: esse foi o caso de Bernardo de Clairvaux (séc. XII), em quem a defesa da via mística é acompanhada pela polêmica contra a filosofia e, em geral, o uso da razão. Outras vezes a via mística e a da especulação escolástica são admitidas e reconhecidas, como fizeram Hugo e Ricardo de S. Vítor, também no séc. XII. O misticismo conserva os mesmos caracteres em S. Boaventura, que cultiva igualmente a especulação filosófica e a mística. Por outro lado, a grande corrente do misticismo especulativo alemão do séc. XIV (Mestre Eckhart, Tauler, Suso e outros) opõe-se também a qualquer tentativa de empregar a razão no campo da religião, mas sua característica é ser uma especulação sobre a fé, considerada como via de comunicação direta entre o homem e Deus. Não pertencem ao domínio da filosofia, mas sim ao domínio do misticismo, os místicos práticos do Cristianismo, como Santa Teresa, Santa Catarina de Siena, S. Francisco, Joana D’Arc e outros (cf. H. Delacroix, Étude d’histoire et de psychologie du mysticisme, Paris, 1908; J. H. Leuba, The Psychology of Religious Mysticism, 1925).
A prática mística consiste essencialmente em definir os graus progressivos da ascensão do homem até Deus, em ilustrar com metáforas o estado de êxtase e em procurar promover essa ascensão com discursos edificantes. Os graus da ascensão mística são habitualmente três: pensamento (cogitatió), que tem por objeto as imagens provenientes do exterior e destina-se a considerar as marcas de Deus nas coisas; a meditação (meditatió), que é o recolhimento da alma em si mesma e que tem por objeto a imagem de Deus; e a contemplação (contemplatió), que visa a Deus mesmo. Esses graus estão ilustrados e subdivididos de vários modos pelos místicos, que habitualmente dividem cada um desses graus em outros dois, enumerando assim, no êxtase, sete graus de ascensão, P. ex., segundo Boaventura, o pensamento pode considerar as coisas em sua ordem objetiva (I grau) ou na apreensão que a alma humana tem delas (II grau). A meditação pode contemplar a imagem de Deus nos pode-res naturais da alma (memória, intelecto e vontade [III grau]) ou ainda nos poderes que a alma conquista graças às três virtudes teologais (IV grau). A contemplação pode considerar Deus em seu primeiro atributo, ou seja, em seu ser (V grau), ou ainda em sua máxima potência, que é o bem (VI grau) (Itinerarium mentis in Deum, 1259). Para todos os místicos, acima de todos os graus está o êxtase’, ou excessus mentis, definido às vezes como “douta ignorância” e, em todos os caso, considerado como a “deificação do homem”, ou seja, a sua união com Deus.
Do ponto de vista filosófico-religioso, é importante a apreciação de Kierkegaard sobre o misticismo: o místico é “aquele que se escolhe em isolamento completo”, ou seja, isolado do mundo e dos contatos humanos (Aut Aut, em Werke, II, p. 215), mas, assim agindo, comete certa indiscrição em relação a Deus. Isso porque, em primeiro lugar, desdenha a existência, a realidade na qual Deus o colocou, e, em segundo lugar, degrada Deus e a si mesmo. “Degrada-se porque é sempre degradação ser essencialmente diferente dos outros graças a simples acidentalidade, e degrada Deus porque faz dele um ídolo e de si mesmo um favorito em sua corte” (Ibid., Werke, II, p. 219).
Na filosofia contemporânea o misticismo foi defendido por Bergson, que nele viu a “religião dinâmica”, a religião que continua o elã criador da vida e tende a criar formas de vida mais perfeitas para o homem. “O amor místico” — diz Bergson — “identifica-se com o amor de Deus por sua obra, amor que criou todas as coisas e é capaz de revelar a quem souber interrogá-lo o mistério da criação. É composto de essência mais metafísica que moral. Com a ajuda de Deus, ele gostaria de aperfeiçoar a criação da espécie humana e fazer da humanidade o que logo teria sido possível, se tivesse podido constituir-se definitivamente sem a ajuda do homem.” Em outras palavras, é ao elã místico que se pode atribuir o restabelecimento da “função essencial do universo, que é uma máquina destinada a criar divindades” (Deux sources; trad. it., pp. 256, 349). Essa interpretação do misticismo, feita por Bergson, não se diferencia do panteísmo comum. (Abbagnano)
Mystos era o iniciado nos mistérios (mysterion) da antiga Grécia; mystagogo (gogia, significa condução) era o que conduzia o aprendiz aos mistérios, também mystodotes.
a) O termo tomou o sentido da crença na possibilidade de uma união (fusão) intima e direta do espírito humano ao princípio fundamental do ser, ao conhecimento supernatural da divindade. b) Toda atitude religiosa que busca a união com a divindade.
c) É a doutrina que afirma que a realidade última é revelada por meios cognoscitivos distintos do perceptivo e do idealismo e superior a estes.
d) O misticismo popular se caracteriza por considerar sobrenaturais certos fatos naturais que parecem violar as leis da natureza ou são produzidos por poderes que ultrapassam as coisas, os quais determinam que se dêem de determinado modo. [MFSDIC]
Esta incompatibilidade (misticismo e iniciação) não resulta, por outra, do que originalmente concerne o termo “misticismo”, que está inclusive manifestamente aparentado com a antiga designação dos “mistérios”, ou seja, com algo pertencente, pelo contrário, à ordem iniciática; mas este termo é daqueles pelos quais, longe de se poder referir unicamente à etimologia, está-se rigorosamente obrigado, se alguém quer se fazer compreender, a ter em conta o sentido que lhe foi imposto pelo uso, e que é, de fato, o único ao qual atualmente lhe vincula. Então, é sabido o que se entende por “misticismo”, há já vários séculos, de maneira que não é possível empregar este termo para designar algo distinto; e é isto o que, como dissemos, não tem e não pode ter nada em comum com a iniciação, em primeiro lugar porque este misticismo compete exclusivamente ao domínio religioso, quer dizer, exotérico, e depois porque a via mística difere da via iniciática em todos seus caracteres essenciais, e esta diferença é tal que dela se deriva uma verdadeira incompatibilidade. Observemos, além disso, que se trata mais de uma incompatibilidade de fato do que de princípio, no sentido em que não se busca absolutamente negar o valor, ainda que relativo, do misticismo, nem pôr em dúvida o lugar que legitimamente lhe pertence em certas formas tradicionais; a via iniciática e a via mística podem perfeitamente coexistir, mas o que queremos indicar é que é impossível que alguém siga ambas ao mesmo tempo, inclusive sem julgar de antemão o fim ao qual podem conduzir, embora que de qualquer forma se possa já pressentir, em razão da profunda diferença entre os domínios aos quais se referem, que este fim não poderia ser na realidade o mesmo. (Guénon AI)
Filosofia espiritual que defende a fé como sua própria justificação e afirma a validade suprema da experiência íntima, tentando apreender a essência divina ou realidade última das coisas e, por conseguinte, consumar a comunhão com o Altíssimo.
O misticismo não estava limitado ao Catolicismo, ingressando na tradição muçulmana através de Algazel (c. 1058-1111) e contribuindo para o Quietismo, mas seu desenvolvimento medieval estava predominantemente associado à doutrina cristã. Embora elementos místicos ocorram nas primeiras obras (Pseudo-Dionísio, Santo Agostinho), São Bernardo de Claraval (1091-1153) é considerado o fundador do misticismo medieval. O crescimento do misticismo a partir do século XII foi, em grande parte, uma resposta ao crescimento da razão (racionalização da fé por meios objetivos, como a dialética). O misticismo tentou cada vez mais utilizar a razão para os fins específicos da fé, e não evitá-la. No século XII, o misticismo tinha dois centros: as abadias cistercienses e a abadia escolástica de Saint-Victor, em Paris. Os principais místicos foram São Bernardo de Claraval, Guilherme de Saint-Thierry (m. 1148) e Isaac de Stella (1147-69). A filosofia de São Bernardo era “conhecer Jesus e Jesus crucificado”. Pela graça, uma pessoa ia da humildade ao êxtase (contato imediato com Deus), passando pela compaixão (caridade), abominação dos próprios pecados e contemplação. A teologia mística de São Bernardo (a prática e teoria da vida mística) era intensamente pessoal; expoentes subsequentes ocuparam-se mais do misticismo especulativo (reflexões sobre a vida mística e suas implicações filosóficas).
Os vitorinos, especialmente Hugo de São-Vitor (1096-1141) e Ricardo de São-Vitor (m. 1173), tentaram incorporar a razão num processo que a transcende. Hugo elaborou uma exposição lógica do misticismo na qual tudo o que está acessível à experiência é pertinente para o conhecimento de Deus através da contemplação. São Boaventura e Santa Gertrudes deram continuidade a essa tradição durante o século XIII.
O florescimento da literatura mística (séculos XIV-XV) foi, por sua vez, uma resposta parcial ao nominalismo. Embora ela fosse geralmente especulativa, tratava da intensificação prática da vida religiosa, refletida no uso do vernáculo. Os principais místicos desse período foram Eckhart, Tauler, Suso, Ruysbroeck, Santa Catarina de Siena, Ricardo Rolle, Gerson, Dinis, o Cartuxo (1402-71), e Santa Catarina de Bolonha (1413-63). As contribuições deles consistiram na racionalização especulativa da experiência religiosa e numa concepção da relação da alma e da Criação com Deus. Ver Gerhard Groote; João Escoto Erígena