O homem por sua alma pertence, portanto, ao mundo dos espíritos. Pode-se pensar que sua natureza profunda não tenha nada de comum com a dos seres superiores?
Tomás de Aquino, já pudemos disso nos aperceber estudando o conhecimento da alma por si mesma, não pensa assim. Devemos retomar aqui esta questão em toda a sua amplitude. (Cf. A. Gardeil, Structure de L’âme. Ire. Partie t. I, págs. 47-152)
A estrutura intelectiva da “mens”. Para designar a alma espiritual do homem, nosso Doutor possui um termo técnico: “mens”. Algumas vezes aplica esse termo aos espíritos puros que serão chamados “totaliter mens”, mas normalmente o reserva para o espírito encarnado que é nossa alma. Pode-se perguntar se esta expressão “mens” corresponde à potência intelectiva, ou à essência mesma da alma. De fato, como o termo “intellectus”, que às vezes significa a potência e às vezes a própria alma intelectiva, “mens” pode ser aplicado a uma e outra coisas. De maneira sintética dir-se-á que a “mens” designa a alma espiritual enquanto é princípio de nossas operações superiores.
Qual é, pois, a estrutura da “mens”? Para compreendê-la, voltamo-nos para os mais perfeitos espíritos criados, os anjos, e perguntemos como se constituem. Sabemos que todo ser elevado a um grau de imaterialidade conveniente, torna-se apto a receber, além de sua forma própria, a dos outros seres: é um sujeito cognoscente. Mas, além disso, se for totalmente liberto da matéria corporal, o que é o caso dos anjos, torna-se imediatamente inteligível. O espírito puro, o anjo, do ponto de vista de sua atividade superior, caracteriza-se por isto: é ao mesmo tempo inteligência e inteligível em ato e, além disso, o inteligível que constitui sua essência é imediatamente presente à sua potência. Nada falta, pois, para que se produza o ato de conhecimento: o anjo se conhece a si mesmo por sua essência, “per essentiam”, e é esta essência que constitui o objeto próprio de sua faculdade cognoscitiva.
Dá-se o mesmo com o homem? No estado de alma separada o homem pensa – muito imperfeitamente, aliás – conforme o modo angélico. É porque já nesta vida deve o homem possuir em estado latente, ou no nível de hábito, a possibilidade de se conhecer a si mesmo: é o que Tomás de Aquino queria significar com seu conhecimento habitual da alma por si mesma. Em sua estrutura profunda de espírito a alma humana, a “mens”, caracteriza-se, pois, pela imediação ou pela presença de um objeto inteligível e de um sujeito inteligente. Só a necessidade preliminar do conhecimento abstrativo suspende, para esta vida, a atuação correspondente a este estado interior da alma. Todas estas coisas exprimiu-as perfeitamente João de Santo Tomás neste belo texto:
“Em nosso estado atual, a união objetiva da alma inteligível com a alma sujeito e raiz da inteligência é já realizada, mas virtualmente, pois o estado de separação da alma e do corpo aqui é virtual. Entretanto, esta união não se manifesta atualmente, por causa da necessidade em que se encontra a alma de se dirigir às coisas sensíveis para conhecer: o que a impede de se conhecer a si mesma imaterialmente, puramente, por si mesma. Isto porque a potência intelectiva emanando da alma, emana dela como de uma raiz inteligente e como de um objeto inteligível, mas que, de si, não manifesta ainda sua inteligibilidade puramente, espiritualmente e imediatamente, enquanto está no estado presente. Sua inteligibilidade permanece amarrada em razão da necessidade de recorrer às coisas sensíveis para se atualizar. E isto porque esta união íntima da inteligência e da alma inteligível não se revela, nem de um lado, nem de outro, até que a alma esteja separada”. Curs. Theol., in Iam Part., q. 55, disp. 21, a. 2, n. 131
Afinal, se compete à natureza da alma humana informar um corpo e agir segundo essa condição, há igualmente nela, em estado latente, o que é preciso para viver à maneira dos espíritos: dualismo do encarnado e do espiritual que encontramos em todas as camadas do psiquismo e que não poderia deixar de se encontrar no fundo mesmo do homem. [Gardeil]