lucidez

ψυχή (psyche): lucidez humana, alma

Terá também a lucidez humana (ψυχή [psyche]) um trabalho (ἔργον [ergon]) específico que lhe assiste e que nenhum outro ente poderia realizar? Se de alguma forma compreendemos o sentido geral da análise, quando se trata da tematização de entes como artefatos, utensílios, o corpo humano, ou da manifestação da vida em geral, percebemos que subsiste uma grande dificuldade à partida ao tratar a tematização da existência humana. Mas, se não sabemos o que fazer quando tematizamos a alma humana [Cf. Schadewaldt, p. 78], não é por isso que deixamos de lhe reconhecer uma eficácia resultante da sua ação específica. «O preocupar-se, o dominar, o deliberar e coisas deste gênero e também viver» [Rep., 353d] são funções específicas da existência, o próprio (ἴδιον [idion]) da lucidez humana (ψυχή). Quando a lucidez humana (ψυχή) está privada da sua excelência peculiar [República, 353e2], também se torna impossível [Rep., 353e3] que ela execute bem as suas funções [Rep., 353e1]. A especificidade desse impedimento e dessa perversão, aquilo que desvirtua a lucidez humana (ψυχή) e que a torna uma alma pervertida (ψυχὴ κακή [psyche kake]) é experimentado num passar por uma situação (πράττειν [prattein]) qualificada como uma má situação (κακῶς [kakos]) [Para a ψυχή, no entanto, que realiza a outra possibilidade extrema.].

O viver (tὸ ζῆν [to zen]) pode continuar a verificar-se em ambas as possibilidades [Dorothee Hellwig, ADIKIA in Platons «Politeia». Interpretationen zu den Biichern VIII und IX, B. R. Grüner Verlag, Amsterdam, 1980. «Die menschliche Natur ist ambivalent», quer dizer, «sie hat die Möglichkeit zum Guten und zum Schlechten» (p. 115).]. O modo como essa continuação se processa é que é completa e radicalmente diferente, quando a lucidez humana (ψυχή) [38] cumpre um destino e quando ela cumpre o outro. Quer dizer, pode verificar-se sempre uma continuação da vida, quer a lucidez humana (ψυχή) se torne naquilo em que ela se pode tornar, realizando maximamente a sua possibilidade extrema, quer se destrua, desfazendo para sempre toda e qualquer possibilidade. O efeito da queda numa possibilidade ou da constituição da outra é experimentado a um outro nível para além do simplesmente vivido. Esse outro nível a tematizar é o da dimensão em que se decide se cada um passa bem ou mal pelas situações da existência. Passa por um acompanhamento das autênticas possibilidades da existência humana.

Para tal temos de nos circunscrever ao horizonte de acontecimento da situação específica humana (πρᾶξις [praxis]) [Cf. M. Heidegger, «Phänomenologische Interpretation zu Aristoteles», Dilthey-Jahrbuch für Philosophie und Geschichte der Geisteswissenschaften, editado por Frithjof Rodi, vol. 6/1968, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen: «Dieser Umgang [sc., des Umgangs menschlichen Lebens mit ihm selbst] ist die πρᾶξις: das sich selbst Behandeln im Wie des […] handeln den Umgehens» (p. 259). Cf. também Franco Volpi, «Dasein comme praxis: l’assimilation et la radicalisation heideggerienne de la philosophie pratique d’Aristote», in Phaenomenologica, vol. 108, 1987, pp. 1-43. Jacques Taminiaux, «poiesis et praxis dans l’articulation de l’ontologie fondamental» (ibid., pp. 107-127), e Manfred Riedl, «Heidegger und der hermeneutische Weg zur praktischen Philosophie», in Für eine zweite Philosophie Vortrdge und Abhandlungen, pp. 171-196.]. O apuramento das modalidades mal (κακῶς) e bem (εὖ [eû]) do agir e passar por situações especificamente humanas (πράττειν) requer a tematização de acontecimentos que concebem a lucidez humana (ψυχή) para além da mera subsistência num corpo, para além da duração da vida. A situação especificamente humana (πρᾶξις) é o horizonte em que se dá, no seu sentido autêntico, uma relação com os limites extremos da perversão (κακία [kakia]) e da excelência (ἀρετή [arete]), sendo o trabalho (ἔργον) do humano determinado a partir do modo como se passa pelas mais diversas situações da existência. Viver com os olhos postos na possibilidade, enquanto possibilidade, de convocar a presença da excelência (ἀρετή) e a ação eficaz da perversão (κακία) extravasa para fora das meras possibilidades de estar vivo ou de morrer. É dependendo das presenças da justiça justificadora (δικαιοσύνη [dikaiosyne]) ou da injustiça (άδικία [adikia]) na lucidez humana (ψυχή) que podemos saber do modo como passamos pela vida, se bem ou se mal [Rep., 353e10]. A qualificação do viver (ζῆν [zen]) e da lucidez humana (ψυχή) na dimensão situação especificamente humana (πρᾶξις) anula o caráter mais ou menos neutro com que se manifestam [Rep., 354a]. Verifica-se, assim, uma constituição da [39] estrutura possibilidadeimpossibilidade na manifestação excelência-perversão (εἶδος-ἀρετή-κακία [eidosaretekakia]). Por estas análises preliminares percebemos numa mesma entidade três possibilidades de desdobramento. Uma que, embora não desfaça a sua natureza (φύσις [physis]), também não a realiza plenamente; outra que destrói a possibilidade de qualquer ente se manter na sua natureza; e, por último, que realiza de uma forma excelente uma qualquer natureza pela presença da excelência (ἀρετή). [CaeiroArete:38-40]


A lucidez humana (ψυχή) é um plano de sentido ao qual assiste a dupla possibilidade de se tornar autenticamente naquilo que ela é, fazendo-se assim excelente; ou a de se destruir, pervertendo todas [47] as suas capacidades de desenvolvimento. Assim como uma casa, o corpo humano, um ente vivo, não deixam de ser reconhecidos como tais apenas por estarem em desordem, assim também a lucidez humana (ψυχή) não deixa de ser reconhecida como tal, mesmo que destruída [v. desalmado]. De alguma forma temos uma indicação daquilo que podia ter sido e não foi, do que ainda não veio a ser e poderá vir a ser, ou do que já não é, tendo alguma vez sido. [CaeiroArete:47-48]