G. Friedmann escreveu sobre Leibniz e Spinoza um livro precioso em que se esforça por demonstrar que Leibniz quis aproximar-se de Spinoza e conhecê-lo, sobretudo para bem determinar em que diferia dele. E é verdade que a aproximação destes dois filósofos, como também o fato de pô-los em contraste, permite conhecer melhor tanto um como o outro.
Friedmann define a filosofia de Leibniz como “urna filosofia para a qual a substância, longe de ser uma abstração, possui qualidades, uma energia sempre pronta a impelir ao ato, e encerra em si todos os seus desenvolvimentos”.
Esta definição não se aplica apenas à filosofia de Leibniz, pois não há verdadeiros pensadores que, sendo exclusivamente lógicos, tenham feito da substância uma pura abstração — nem sequer os escolásticos. Em nenhum deles é a substância o que resta de uma coisa depois que tudo foi eliminado desta, mas aquilo que faz com que essa coisa seja essa coisa e não outra, isto é, o elemento primeiro, plasmador e formador, em última análise divino, única realidade permanente sob as aparências suscitadas. Tais eram os Inteligíveis de Platão, tais são as mônades leibnizianas e o Todo de Spinoza, potências de ordem espiritual, não apenas subsistentes por si mesmas ou por um princípio da mesma ordem, mas ainda geradoras e criadoras.
Tanto para Leibniz como para Spinoza, tudo se resume à substância pensante, com a única diferença de que um a divide — se é possível falar em divisão onde não há quantidade — enquanto o outro a conserva una e contínua. É o que permite ao primeiro afastar o perigo em que incorre o segundo e escapar ao panteísmo. Ou pelo menos, se o acusarem de cair nele, poder-se-á responder que o seu panteísmo já não é “imanentista” como o de Spinoza, mas causal. Ora, é evidente que um panteísmo causal introduz a dualidade de causa e efeito, deixando portanto de ser um panteísmo. Com Spinoza, podemos dizer, talvez forçando um pouco, Deus não é a causa do mundo, ele é o Mundo.
Nota Friedmann entre os dois filósofos uma outra diferença que bem poderia ser fundamental e decisiva. Em Leibniz, diz ele, Deus está submetido ou se submete, na criação, à ideia ou à razão do bem — ratio boni; em Spinoza, à ideia de perfeição — ratio perfecti. É digno de admiração, acrescentemos de nossa parte, o fato de tornarmos a encontrar aqui a oposição entre Santo Tomás e Duns Escoto, tanto é verdade que os escolásticos já haviam dito tudo.
Numa destas concepções uma coisa é verdadeira, bela e boa em si mesma, senão por si mesma, e conserva o seu valor mesmo fora da soberana Potência que a produziu; na outra, ela não assume esse valor senão porque foi produzida por essa mesma Potência, e como que em virtude de uma espécie de decreto. A coisa, aqui, não é verdadeira porque é verdadeira, mas porque vem de Deus, de um Deus perfeito. O falso poderia ter sido verdadeiro, se Deus assim o quisesse.
Percebe-se logo o excesso ou o sofisma que a concepção mais sábia ou mais prudente de Leibniz permite evitar. Do mesmo modo, e por um raciocínio semelhante, quanto à ideia de causa. Um panteísmo integral a enfraquece singularmente, quando não a suprime de vez, e tende a substituir a relação causal por puras engrenagens mecânicas. Se Deus é o mundo e se o mundo é Deus, poderemos descobrir nele certas entrosagens ou uma corta sucessão, mas esta sucessão não passará de uma concepção do espírito e, como tudo se passa na eternidade, é em vão que a fragmentamos e a encadeamos por meio de elos ligados uns aos outros. Num tal sistema toda ideia de finalidade será logicamente suprimida, visto que já temos aí essa finalidade, ativa e presente; da mesma forma toda ideia de meio, isto é, de construção por sucessão, comportando uma causa e um efeito. Depreende-se daí que o mecanicismo dos modernos, repudiando toda finalidade, reduzindo toda atualidade a um determinismo sem consciência necessária e, como diziam eles, a um “comportamento”, deriva antes de Spinoza que de Leibniz. Este mantém tanto as causas eficientes como as causas finais, inclusive a causa última, até mesmo onde parece que a inteligência deva suspender a sua atividade: “O irracional afigura-se por vezes em Leibniz”, escreve Friedmann, “uma expressão secreta e superior do racional, da mesma forma que para ele o racional sobreleva e prolonga as leis naturais sem contradizê-las.”
Enfim, conforme o mesmo crítico — e a observação é tão engenhosa quanto profunda — Leibniz permanece humano em sua filosofia, isto é, atento às consequências que o seu pensamento poderia acarretar para a espécie humana, ao passo que Spinoza se mantém puramente, serenamente e, se for preciso, cruelmente especulativo. “Ele não pensa para o homem…”, conclui Friedmann; “pensa, nada maisls.” Isto quer dizer que Spinoza conduz o seu pensamento sem se preocupar no mínimo com os frutos desse pensamento, zeloso apenas de levá-lo ao seu termo lógico e de colocar neste termo a soberana realidade, seja ela qual for e por mais misteriosa, obscura e dura que nos possa parecer. Dá, numa palavra, a impressão de consentir que o seu Deus apareça, a certos respeitos e na ordem dos sentimentos, como um Deus inumano. Leibniz fica mais perto de nós e pensa também em nós; destaca mais em seu sistema a noção de qualidade. Embora não descambe absolutamente para um otimismo beato, cumpre reconhecer que manifesta o que se pode chamar um otimismo superior. O mundo criado pelo seu Deus é o melhor dos mundos possíveis, e isto decorre da própria perfeição de Deus; decorre também do seu amor, e quiçá o cristão se revele aqui mais uma vez. Resumindo: Spinoza deduz de Deus a criação, enquanto Leibniz, cartesiano mais fiel pelo método, remonta até Deus pela criação. Daí, além da diferença fundamental, uma singular diversidade de tom entre os dois sistemas.
Perguntamos de onde pôde vir a Leibniz a ideia desse pluralismo idealista e acode-nos logo ao espírito a lembrança de que: ele foi matemático e inventor do cálculo infinitesimal. Mas antes dele se havia falado em mônades e mesmo em mônades espirituais, como no caso de Giordano Bruno. Friedmann assim se expressa a respeito: “Quando a mônade voita para o exterior a sua lôrça de expansão essencial, manifesta-se sob a forma de corporeidade. Quando essa força se dobra sobre si e se reflete, então a mônade é pensamento”Eis um texto bem sugestivo para o estudo de Leibniz.
Conduziu-nos bem longe e, embora houvesse partido de Descartes e trilhasse caminhos análogos aos de Descartes, pretendeu superar ou contornar o impasse a que haviam chegado estes e restituir a unidade ao mundo restabelecendo-o na unidade ou realidade exclusiva do espírito. A espécie de altura a que se elevou assim, com audácia genial, era capaz de amedrontar inteligências comuns. Com o seu grande contemporâneo de que trataremos agora, essa altura vai se tornar simplesmente vertiginosa. [Truc]