laicismo

(in Laicism; fr. Laicisme; it. Laicismó).

Com este termo entende-se o princípio da autonomia das atividades humanas, ou seja, a exigência de que tais atividades se desenvolvam segundo regras próprias, que não lhes sejam impostas de fora, com fins ou interesses diferentes dos que as inspiram. Esse princípio é universal e pode ser legitimamente invocado em nome de qualquer atividade humana legítima, entendendo-se por “legítima” toda atividade que não obste, destrua ou impossibilite as outras. Portanto, o laicismo não pode ser entendido apenas como reivindicação de autonomia do Estado perante a Igreja, ou melhor, perante o clero, pois, como sua história demonstra, já serviu à defesa da atividade religiosa contra a política e ainda hoje, em muitos países, tem essa finalidade; também tem o fim de subtrair a ciência ou, em geral, a esfera do saber às influências estranhas e deformantes das ideologias políticas, dos preconceitos de classe ou de raça, etc.

O Papa Gelásio I, que, no fim do séc. V, expunha num tratado e em algumas cartas a teoria denominada “duas espadas”, foi provavelmente o primeiro a recorrer explicitamente ao princípio do laicismo, desconhecido na Antiguidade clássica porque esta não conheceu conflitos de princípios entre as várias atividades humanas. A teoria das duas espadas, ou seja, de dois po-deres distintos, ambos derivados de Deus, (o do papa e o do imperador), servia a Gelásio I para reivindicar a autonomia da esfera religiosa em relação à política. Durante muitos séculos foi doutrina oficial da Igreja e ainda no séc. XII o canonista Estêvão de Tournai expressava-a com extrema clareza (Summa decretorum, Intr.). O princípio expresso nesta doutrina continua o mesmo quando os papéis se invertem ou essa doutrina é invocada para defender o poder político contra o eclesiástico, como faz João de Paris em seu tratado Sobre o poder ré-gio e papal (1302-3), como fez Dante alguns anos mais tarde, em De monarchia; e como fizeram Marcílio de Pádua no Defensor pacis (1324) e Guilherme de Ockham em suas obras políticas. Certamente as doutrinas políticas e eclesiásticas desses escritores eram diferentes e vez por outra opostas, mas está claro que a teoria dos dois poderes nada mais é que um apelo à autonomia das respectivas esferas de atividade e que a força do laicismo não está no particularismo das doutrinas, mas no reconhecimento de sua autonomia, que é o princípio do laicismo Esse princípio tornou-se exigência fundamental na vida civil nas comunas italianas, francesas, belgas e alemãs (cf. Salvemini, Studi storici, Florença, 1901; Pirenne, Les villes du Moyen Âge, Bruxelas, 1927; De Lagarde, La naissance de l’esprit laique, ou déclin du Moyen Age. Louvain-Paris, 3a ed., 1956); o Renascimento e o Iluminismo não passam de duas etapas sucessivas de seu predomínio crescente na vida política e civil do Ocidente.

Mas, como se disse, o princípio do laicismo não vale somente nas relações entre a atividade política e a religiosa. Na primeira metade do séc. XIV, Ockham reivindicava com energia a autonomia da atividade filosófica. A propósito da condenação de algumas proposições de Tomás de Aquino pelo Bispo de Paris, em 1277, ele dizia: “As asserções, principalmente filosóficas, que não concernem à teologia não devem ser condenadas ou proibidas, pois nelas qualquer um deve ser livre para dizer livremente o que lhe apraz” (Dialogus inter magistrum et discipulum de imperatorum et pontificum potestate, I, II, 22). Essa foi a primeira e certamente uma das mais enérgicas afirmações do princípio do laicismo em filosofia, e deve-se a um frade franciscano do séc. XIV. No séc. XMI Galilei afirmava o mesmo princípio em relação à ciência, opondo-se aos limites e obstáculos que a autoridade eclesiástica pudesse impor à ciência. A Sagrada Escritura e a natureza — dizia ele — procedem ambas do Verbo Divino, mas, enquanto a palavra de Deus teve de adaptar-se ao limitado entendimento dos homens, a natureza é inexorável e imutável, e nunca transgride os termos das leis que lhe foram impostas, pois pouco lhe importa se as suas razões recônditas são compreendidas ou não pelos homens: por isso, “os efeitos naturais que a sensata experiência nos ponha diante dos olhos ou que as necessárias demonstrações nos levem a concluir não devem por razão alguma ser postos em dúvida nem condenados, em nome de trechos da Escritura cujas palavras tenham aparência diferentes” (Lett. alia Grand. Cristina, em op., V, p. 316). Galilei reivindicava assim a autonomia da ciência, nos mesmos termos em que Ockham reivindicara a autonomia da filosofia. O princípio do laicismo foi fundamento da cultura moderna e é indispensável à vida e ao desenvolvimento de todos os seus aspectos. Os únicos adversários autênticos do laicismo são as correntes políticas totalitárias, que pretendem apoderar-se do poder político e exercê-lo com o único objetivo de conservá-lo para sempre. Tais correntes pretendem de fato assenhorear-se do corpo e da alma do homem, para impedir qualquer crítica ou rebeldia. Embora o Romantismo do séc. XIX haja encorajado sua persistência ou revivescência, hoje essas correntes sofrem a oposição da mesma situação objetiva que exige, em qualquer campo, o desenvolvimento do saber positivo: esse saber, por sua vez, exige a autonomia de suas regras, o que é laicismo Por outro lado, as correntes políticas totalitárias podem ser facilmente reconhecidas exatamente por sua atitude em relação ao princípio do laicismo: quer se apoie numa confissão religiosa, quer se apoie numa ideologia racista, classista ou de qualquer outra espécie, tendem, em primeiro lugar, a diminuir e em última instância a destruir a autonomia das esferas espirituais, assim como tendem a diminuir e a destruir os direitos de liberdade dos cidadãos. No plano das inter-relações das atividades humanas, o laicismo desempenha o mesmo papel da liberdade no plano das inter-relações humanas: é o limite ou a medida que garante a essas atividades a possibilidade de organizar-se e desenvolver-se, assim como a liberdade é o limite e a medida que garante às relações humanas a possibilidade de manter-se e desenvolver-se.

Considerado em sua estrutura conceitual e histórica, o princípio do laicismo não tem qualquer caráter de antagonismo a qualquer forma de religiosidade, nem mesmo ao catolicismo. Em primeiro lugar, ele frequentemente foi útil aos católicos na defesa da autonomia de sua atividade, constituindo ainda hoje a política oficial do catolicismo nos países em que ele não tem partido político à disposição, como p. ex. nos países anglo-saxões. Em segundo lugar, é interesse dos católicos, como de todos, que a administração do Estado, as ciências, a cultura, a educação e, em geral, as esferas da atividade humana sejam organizadas e regidas por princípios que possam ser reconhecidos por todos, que sejam independentes da inevitável disparidade de crenças e ideologias e que, por isso, tornem eficazes e fecundas as atividades que neles se fundem. É bastante óbvio que as administrações políticas que favorecem certos grupos de cidadãos em prejuízo de outros, em vista de suas crenças religiosas, são simplesmente ineficientes e corruptas, não podendo reivindicar méritos “religiosos”. Da mesma forma, os poderes judiciários que não aplicam com escrúpulo e equidade a lei vigente do Estado, não oferecem garantias a ninguém, porque também são ineficientes e corruptos. A ciência que serve a interesses de partidos, crenças e ideologias não pode ter méritos de nenhum tipo, não é uma ciência. Poderia ser comparada a uma medicina que tomasse como critério de diagnóstico, prognóstico e cura os desejos do paciente ou de outras pessoas; uma medicina assim estruturada seria um caso de ciêncianão laica”, clerical ou partidária. O laicismo não atende ao interesse deste ou daquele grupo político, religioso ou ideológico, mas ao interesse de todos. Contanto que o interesse de todos seja o desenvolvimento harmônico das atividades que asseguram a sobrevivência do homem no mundo. [Abbagnano]