Grécia

E que nos diz hoje a História acerca da antiguidade da Grécia? Aponta, com clareza deslumbrante, primeiro, para o mundo micénico, depois, para o mundo minóico, e, por fim, para o de uma koiné cultural, neolítica e mediterrânea, cujo centro de irradiação deve estar situado na Anatólia. Tudo isto, porém, é História; e, enquanto História, presença do presente, só presença do presente. Mas o peculiar, nesta distante presença, são os vestígios instantes da presença do passado, ou melhor, como a presença do passado não pode comunicar-se directamente com a presença do presente, os tais vestígios são [345] apenas os do confronto de uma presença com a outra. Até agora, por conseguinte, só afastamos para mais longe esse «lugar» em que se defrontam as duas presenças. Preferível, talvez, seria o dizer que na actualidade da Grécia clássica subsistem alguns vestígios das três épocas anteriores, mas que esses vestígios não são integráveis naquela presença grega do presente. Temos, algures, um resíduo irracionalizável — irracionalizável só neste sentido: quanto para mais longe recuamos, na antiguidade da Grécia, tanto mais se turva a sua imagem, por tão numerosas que são as estilhas provenientes de uma verdadeira explosão da presença do passado. Também, na mais extremada e atenuada presença do presente, que foi o da Grécia e ainda é o nosso, espelha-se, como numa superfície rugosa, a turbulência provocada pela explosão. A imagem do passado, seja ele qual for, é bastante difusa e confusa. Mas, agora, responderíamos à pergunta acerca do passado, se fôssemos capazes de acertar naquilo que explodiu, sabendo, se o soubermos, o de que as tais estilhas são estilhas. Neste ponto também nos socorre algo que já dissemos acerca do presente, se é certo que ao presente se opõe o passado. E ainda, em primeiro lugar, se bem diante dos nossos olhos se mostrar o que sempre se recusou a entrar em qualquer história que da História faz parte.

Também podemos encarar a questão de outro modo. Uma vez concedido que a expressão adequada à presença do presente é História, qual seria a expressão mais própria da presença do passado? Pergunta esta que ainda permite a posição de uma «transformada»: do que é o que, da Grécia, ainda ninguém pôde contar ou escrever uma história? Decerto que desta palavra se abusa, tanto quanto dela se usa. Mas se, por «história», se entende um corpo de doutrinas, em que se determina, com a certeza permitida pelo método, o que veio antes e o que virá depois, e se a sucessão empírica pode servir de base a uma teoria da transformação do que se transforma sem deixar de ser o mesmo, segundo este delineamento, nãodúvida de que não se tenham desperdiçado tempo e esforços em escrever e publicar histórias da filosofia, da ciência, da arte (com algumas restrições), da política, do direito, da economia, do trabalho escravo e do trabalho livre, e muitas outras mais. Não sem lacunas da tradição, que, aliás, no campo dessas disciplinas, não são difíceis de preencher. Tudo isto é uso, e bom uso, da história. Mas quando se aborda o tema em que se acham, unidas ou separadas, a religião e a mitologia, o caso muda de figura. Quanto à mitologia, dou por bem empregados todos os esforços e o não pouco tempo que se dediquem à redacção [346] de dicionários de nomes próprios de deuses e de heróis, mas não à história dos mitos gregos e helenizados (e romanizados), pois, aqui, a lacunaridade da tradição é insuperável. O «antes» e o «depois» ficam geralmente indeterminados, porque a cronologia só pode obedecer a critérios externos, como é, por exemplo mais notável, o da maior ou menor antiguidade das fontes de que os mitos foram hauridos. Estou bem longe de pensar que os mitos referidos pelos poemas homéricos (os mais antigos testemunhos da tradição) venham necessariamente antes de todos ou alguns dos mencionados por Calímaco, cujos poemas foram redigidos alguns séculos depois da mais baixa das datas em que se supõe ter vivido Homero. E o mesmo se diria, quanto à religião. Aqui, o mais que se pode fazer é distinguir uma religião popular de uma ou mais religiões elitistas, e verificar, no fim da antiguidade, a existência desse verdadeiro uróboro, ou a reunião do fim com o início, na circunferência de um círculo. Efectivamente, nas chamadas religiões «mistéricas» (que não vejo como negar-lhes o qualificativo de gregas ou latinas, pelo facto de terem sua origem no Oriente Próximo; para ser lógico até às últimas consequências, teria de afirmar que o cristianismo não pode ser uma religião do Brasil, pelo facto de sua proveniência palestina), nas chamadas religiões «mistéricas», dizia eu, fecha-se um ciclo, do qual só uma pequena parte é ocupada por qualquer arremedo de nacionalidade grega, historiável ou historiada.

De modo que estamos diante de uma alternativa: 1) da Grécia, religião e mitologia não participam da História; 2) participam, mas não lhes foi dado o poder de alterá-la. Preferível é, certamente, o primeiro membro da alternativa, pois despede uma fulguranda que ilumina subitamente os nossos primeiros passos, numa vereda que conduz ao desvelamento do próprio ser da presença do passado. Com efeito, se a religião e a mitologia correntes entre os Gregos são insusceptíveis de entrar na História, isso significa, no mínimo, que elas não estão presentes à presença do presente, e, no máximo, que estão bem presentes à presença do passado. No término desta linha de considerandos, chegamos a uma primeira conclusão: se expressão adequada à presença do presente é História, expressão não menos adequada à presença do passado é Mito. Todavia, esta palavra é de uma multivocidade exasperadora para todo aquele que, de cada vez, se proponha falar de uma coisa só. Tenho de excluir, por decisão que pode parecer arbitrária (e não me sobra tempo para justificá-la), aqueles relatos, poéticos ou prosaicos, das ações em que os protagonistas são os conhecidos [347] personagens da lenda heroica, e dos contos populares que referem à astúcia prodigiosa com que se leva de vencida trabalhos que parecem exceder todas as capacidades e habilidades humanas. Que resta, então, para o Mito? Narrativas, o maior número de vezes, encenadas por um drama ritual, em que se representa a co-pertinência simbólica de um homem e seu mundo, e o fator simbolizante, que é um deus morrendo para dar a vida sua, que se reparte por esse homem e esse mundo. Mais claramente não poderíamos aludir ao impulso mítico, criador dos mitos que viviam nas religiões «mistéricas» da antiguidade, e que ainda vive no cristianismo, ainda que transposto para uma forma sui generis. A esse mito me refiro quando falo de Mito. Então, insistamos: o Mito é expressão da presença do passado, como História é expressão da presença do presente. Só resta averiguar o que deva entender-se por «passado», não perdendo de vista que expressão de sua presença é o Mito.

Tendo em vista que a expressão da presença do passado é mítica, então não há como fugir à ideia de que o passado se faz presença só mediante a sensibilidade humana, aberta para a natureza sensível, que, por seu turno, se abre toda para a sensibilidade humana. Isto não acontece, nem pode acontecer, na presença do presente. Esta presença, desde que despontou no horizonte histórico, encantou o mito, e o encantamento do mito é a alegoria. […]

E agora, para terminar, volto à pergunta inicial: que posso eu esperar da História, quanto ao conhecimento do que foi a Grécia? A resposta atravessa duas etapas. Na primeira, vemos, em toda a sua glória, uma forma, que talvez não tenha par, da presença do presente, aquela que a atualidade, ou uma multissecular sucessão de atualidades epocais, descobriu, por força retroativa, na sua ou nas suas antiguidades contrapolares. Na segunda, há que demorar-nos um pouco mais. Quer-nos parecer que nem assim tão gloriosa se nos afiguraria a antiguidade clássica, em seu componente grego, se, mesmo enquanto presença do presente, em sua aurora e em seu crepúsculo, não cintilassem essas imagens da presença do passado, que são fragmentos do Mito. A Grécia presente tinha de resistir à violência da explosão do passado, ou nunca viria a ser presente. E se nunca tivesse vindo à presença do presente, não haveria História, nem mesmo aquela, tão confrangedora, que descreve todos os atos da grande recusa da natureza e da sensibilidade. Mas, para falar, é preciso um mínimo de racionalidade. Intelecção do que se diz e vontade de dizê-lo compõem a razão, sem a qual nada diríamos. E a razão vem-se acrescendo de «razões», desde que a Grécia foi Grécia. Não estou fazendo um encómio do racionalismo; só estou dizendo que, sem razão, nem contra a razão, se pode falar. Mais uma palavra, já que «razão» é um dos possíveis significados de logos, e o logos é um dos mais secretos segredos do tão secreto pensamento heraclítico. Do fragmento 30, que se refere à «viragem» do Fogo em Mundo, já houve quem escrevesse: «Do deus, a nostalgia da morteorigem ao Mundo» (Walter Bröker, Die Philosophie vor Sokrates, Frankfurt am Main, 1965, p. 89: «Die Todessehnsucht des Gottes lässt die Welt werden»). É sumamente notável o ver como o «obscuro» filósofo de Éfeso, que, em outros fragmentos (14 e 15), mostra claramente a sua abominação pelos contemporâneos celebrantes dos «mistérios», pôde aludir ao grande mistério da presença do passado, que não se fez presente à presença do presente. [EudoroMito:345-349]