As relações da fenomenologia e da psicanálise são ambíguas. Sartre, nas páginas de O Ser e o Nada, onde define sua psicanálise existencial (págs. 655-663) faz à psicanálise freudiana essencialmente duas críticas: ela é objetivista e causalista, ela utiliza o conceito incompreensível de inconsciente. Como objetivista, Freud postula, na base do acontecimento traumático, e portanto de toda a história das neuroses, uma “natureza”, a “libido”; como causalista; admite uma ação mecânica do meio social sobre o sujeito, a partir da qual elabora por exemplo uma simbólica geral que permite revelar o sentido latente de um sonho sob seu sentido manifesto e isso independentemente do sujeito (do “conjunto significante”, diz Sartre). Enfim, de que modo o sentido de uma neurose, se ele é inconsciente, pode ser reconhecido no momento em que o drente auxiliado pelo psicanalista compreende por que está doente? E ainda mais radicalmente, como alguma coisa de inconsciente poderia ter um sentido uma vez que a fonte de todo o sentido é a consciência? Na realidade há uma consciência das tendências profundas, “mas tais tendências não se distinguem da consciência” (662). As noções psicanalíticas de resistência, de recalcamento, etc., implicam que o isto não é na verdade uma coisa, uma natureza (libido) mas o próprio sujeito na sua totalidade. A consciência discerne a tendência a recalcar da tendência neutra, ela deseja pois não ser consciência daquela, ela é má-fé: uma “arte de formar conceitos contraditórios, isto é, que unam em si uma ideia e a negação dessa ideia” (95).
Se Merleau-Ponty não retoma essa última crítica em Fenomenologia da Percepção (o corpo como ser sexuado, págs. 180-198) não é por acaso. Ter-se-á notado que a descrição sartriana da má-fé faz intervir uma consciência conceitual com Sartre permanecemos sempre no nível de uma consciência transcendental pura. Merleau-Ponty, ao contrário procura revelar as sínteses passivas onde a consciência vai buscar suas significações. “A psicanálise existencial — escreve o autor — não deve servir de pretexto para uma restauração do espiritualismo. E prossegue mais adiante (436): A ideia de uma consciência que seria transparente a si mesma e cuja existência se reduziria à consciência que ela tem de existir não difere muito da noção de inconsciente: há, de ambos os lados, a mesma ilusão retrospectiva, introduz-se no eu, a título de objeto explícito, tudo aquilo que eu poderia em seguida aprender sobre mim mesmo”.
O dilema do “isto” e da consciência clara é portanto um falso dilema. Não existe inconsciente pois a consciência está sempre presente àquilo de que é consciência; o sonho não é a imageria de um “isto” que desenvolveria, em prol do sono de minha consciência, seu próprio drama travestido. É de fato o mesmo eu que sonha e que se lembra de haver sonhado. O sonho é então uma permissão que concedo a meus impulsos, com toda a má-fé, pois eu sou o que eu sonho? Também não. Quando sonho eu me instalo na sexualidade, “a sexualidade é a atmosfera geral do sonho”, de modo que a significação sexual do sonho não pode ser “tematizada” na falta de uma referência não sexual a que eu possa relacioná-la: o simbolismo do sonho só é simbolismo para o homem acordado, que compreende a incoerência da narração do sonho e procura fazê-lo simbolizar com um sentido latente; mas quando ele sonhava, a situação onírica era imediatamente significativa, não incoerente, mas também não identificada como situação sexual. Dizer como Freud que a “lógica” do sonho obedece ao princípio de prazer é dizer que, quando não está ancorada no real, a consciência vive o sexual sem situá-lo, sem poder colocá-lo à distância nem identificá-lo — assim como “para o apaixonado, o amor não tem nome, não é algo que se possa designar, não é o mesmo amor de que falam os livros e os jornais, é uma significação existencial” (437). Aquilo que Freud chamava inconsciente é enfim uma consciência que não consegue apreender-se a si mesma como especificada, eu estou “enredado” numa situação e só me compreendo como tal quando já’ saí dela, quando estou numa outra situação. Essa transplantação da consciência é a única coisa que permite compreender particularmente a cura psicanalítica, pois é apoiando-se na situação presente e sobretudo na minha relação vivencial com o analista (transferência) que posso identificar a situação traumática passada, dar-lhe um nome e finalmente livrar-me dela.
Essa revisão da noção de inconsciente supõe evidentemente que se abandone uma concepção determinista do comportamento e em especial do comportamento sexual. É impossível isolar no âmago do sujeito impulsos sexuais que habitariam e impeliriam sua conduta como causas. E o próprio Freud, generalizando o sexual muito além do genital, sabia que não é possível separar num comportamento determinado as motivações “sexuais” e as “não sexuais”. O sexual não existe em si, ele é um sentido que eu dou à minha vida e “se a história sexual de um homem dá a chave de sua vida é porque na sexualidade do homem se projeta sua maneira de ser em relação ao mundo, isto é, em relação aos outros homens” (185). Não há, portanto, causação do comportamento pelo sexual, mas “osmose” entre a sexualidade e a existência porque a sexualidade está constantemente presente na vida humana como uma “atmosfera ambígua” (197).
No Prefácio que Merleau-Ponty escreveu para a obra do Dr. Hesnard, L’oeuvre de Freud, Payot, 1960, encontrar-se-á uma nova tematização da “consciência” entre psicanálise e fenomenologia: sua ideia diretriz é de que a fenomenologia “não é uma “filosofia da consciência” clara, mas uma revelação contínua e impossível de um “Ser onírico, por definição oculto”; enquanto que a psicanálise, graças especialmente aos trabalhos do Dr. Lacan, deixa de ser incompreendida na qualidade de psicologia do inconsciente: ela tenta articular: esse intemporal, esse indestrutível em nós que é, diz Freud, o próprio inconsciente”. [Lyotard]