excelência humana

A tematização da lucidez humana (ψυχή [psyche]), tendo em vista a τάξις [taxis], pode não se manter na neutralidade da qualidade da sua subsistência. A desordenação que a desvirtua e perverte é de uma natureza diferente da mera persistência em vida. Alguém em coma mantém-se em vida, não encontrou a morte, e, no entanto, não tem nenhuma relação com essa forma de subsistência. O seu préstimo (χρῆσις [chresis]) só se constitui quando ela atinge uma certa ordenação e uma certa disposição 20. Só que agora a concretização deste sentido geral da manifestação da excelência (ἀρετή [arete]) na lucidez humana (ψυχή) não pode ser determinada a partir da funcionalidade ou não de um determinado objeto de uso, nem do bom ou mau estado do corpo humano, apurado pela presença, respectivamente, da saúde e da doença, nem tão-pouco da sua manutenção em vida. A compreensão do sentido da excelência (ἀρετή) depende da presença da justificação e da justiça (δικαιοσύνη [dikaiosyne]), da consciência tranquila (σωφροσύνη [sophrosyne]), da perseverança viril (ἀνδρεία [andreia]) ou da santidade (ὁσιότης [osiotes]), ou, como veremos do fundamento requerido para a presença da excelência (ἀρετή) no homem, a possibilidade de se lhe expor, de ter em vista uma qualquer das suas manifestações. Essa possibilidade de exposição da excelência (ἀρετή) a si própria é trazida à expressão pelos termos saber (ἐπιστήμη [episteme]) ou consciência (φρόνησις [phronesis]). Como é possível que para todas as formas de manifestação e diferentes matizes da excelência (ἀρετή) haja um e o mesmo fundamento: a organização estrutural (τάξις) na lucidez humana (ψυχή)? Uma concretização para o sentido destas formulações é a nossa tarefa. [CaeiroArete:31]


Cumpre considerar agora um pouco mais de perto o sentido da excelência humana, depois de dadas as indicações básicas do sentido da excelência em geral e do modo como se procede à sua tematização. Há na República [Rep., 335c4] uma passagem onde se procura apurar a excelência humana (ἀνθρωπεὶα ἀρετή [anthropeia arete]), depois de uma redução explícita do que possa ser essa excelência humana à justiça justificadora (δικαιουσύνη [dykaiosyne]). Em causa está, pois, a determinação daquela manifestação da excelência que se dá no homem pela presença da justiça e da justificação [É, portanto, o mesmo sentido que está em análise no Górgias.]. O interesse não vai só exclusivamente para o sentido positivo da excelência, mas dirige-se também para a outra extremidade, resultante da presença eficaz e destruidora da κακία [kakia] que veda não só a possibilidade de cada ente desenvolver o seu potencial máximo como também de o poder levar à sua destruição [Uma casa pode ser tão má que deixa de desempenhar as suas funções. Um corpo pode estar tão doente que perece, etc.]. Há a priori um desdobramento de duas possibilidades extremas em cada horizonte de entes. Por um lado, a possibilidade de se poder verificar a concretização e o desenvolvimento com plenos poderes das potencialidades que cada um tem para poder ser aquilo mesmo que é. E, por outro, a possibilidade extrema negativa e impeditiva segundo a qual cada ente pode não atingir nenhum grau de desenvolvimento, ficando-se pelo aquém das suas potencialidades, podendo chegar inclusive até à sua destruição. [CaeiroArete:34]


A excelênciaarete, como a teriam chamado os gregos; virtus, como teriam dito os romanos – sempre foi reservada ao domínio público, em que uma pessoa podia sobressair-se e distinguir-se das demais. Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na privatividade; para a excelência, por definição, é sempre requerida a presença de outros, e essa presença exige a formalização do público, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores. [v. escravo] Nem mesmo o domínio social – embora tenha tornado anônima a excelência, enfatizado o progresso da humanidade ao invés das realizações dos homens e alterado o conteúdo do domínio público ao ponto de desfigurá-lo – pôde aniquilar completamente a conexão entre a realização pública e a excelência. Embora nos tenhamos tornado excelentes na atividade do trabalho que realizamos em público, a nossa capacidade de ação e de discurso perdeu muito de seu antigo caráter desde que a ascendência do domínio social baniu estes últimos para a esfera do íntimo e do privado. Essa curiosa discrepância não passou despercebida do público, que geralmente a atribui a uma suposta defasagem entre nossas capacidades técnicas e nosso desenvolvimento humanístico em geral, ou entre as ciências físicas, que alteram e controlam a natureza, e as ciências sociais, que ainda não sabem como alterar e controlar a sociedade. Não considerando outras falácias do argumento, tantas vezes apontadas que seria ocioso repeti-las, essa crítica refere-se apenas a uma possível mudança na psicologia dos seres humanos – os seus chamados padrões de comportamento –, não a uma mudança do mundo em que eles habitam. E essa interpretação psicológica, para a qual a ausência ou a presença de um domínio público é tão irrelevante quanto qualquer realidade mundana, tangível, parece bastante questionável em vista do fato de que nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o mundo não proporciona um espaço adequado para o seu exercício. Nem a educação, nem a engenhosidade, nem o talento podem substituir os elementos constitutivos do domínio público, que fazem dele o local adequado para a excelência humana. [ArendtCH, 6]