Dissemos que as coisas não possuem evidência apodítica. Se considerarmos um objeto material — que para Husserl representa o transcendente tipo — e abstrairmos de todo o pensamento teórico e considerarmos apenas a sua percepção no sentido da cogitatio cartesiana, podemos averiguar a maneira como o transcendente se comporta em relação à consciência que o conhece. Um objeto material que enfrento, vejo-o continuamente; alterando a minha posição no espaço, permanece a consciência de um só e mesmo objeto, mas a percepção deste é que não cessa de variar: é uma série ininterrupta de esboços ou perspectivas (Abschattungen). É através deste complexo de «perspectivas» que se dá Uma coisa é sempre dada por modos de aparecer, contando com um núcleo relativo ao que é apresentado e em seu torno um horizonte de dados conjuntamente: horizonte interno (possibilidade de acrescentamento indefinido de determinações) e horizonte externo (que a liga aos outros objetos e, no limite, ao mundo como horizonte).
A existência das coisas exteriores não é garantida, portanto, por uma certeza apodítica, uma vez que estas se atingem inadequadamente. Em contraposição, o modo de se dar das vivências não é a transcendência, mas a imanência; não se dão em perspectivas, não há facetas que, de um modo ou outro, as possam figurar. É certo que a vivência também não é nunca totalmente percebida, não se capta numa unidade completa, pois a sua percepção só é possível segundo um fluxo e unicamente sob a forma de retenção temos consciência do que já anteriormente se escoou. Mas a doação não se faz por perspectivas, como por essência acontece na percepção «transcendente». É próprio da essência da esfera das coisas não haver uma percepção, por mais perfeita que seja, que deixe de se dar por Abschattungen, portanto que seja um absoluto. A existência da coisa percebida não é indubitável, pois a concordância da série de «esboços» ou «perspectivas» (Abschattungen) é contingente. [Morujão]