evidência

(gr. enargeia; lat. evidentia; in. Evidence; fr. Evidence, ai. Evidenz; it. Evidenza).

Apresentação ou manifestação de um objeto qualquer como tal. Era assim que os antigos entendiam a evidência, especialmente epicuristas e estoicos, que a assumiam como critério de verdade. Os epicuristas identificavam a evidência com a própria ação dos objetos sobre os órgãos dos sentidos (Diógenes Laércio, X, 52). Os estoicos entendiam por evidência o apresentar-se ou dar-se das coisas aos sentidos ou à inteligência, de tal modo que estas resultem “compreendidas” (Sexto Empírico, Pirr. hyp., II, 7). A representação cataléptica é justamente a representação evidente. Desse ponto de vista, a evidência não é um fato subjetivo, mas objetivo: não está ligada à clareza e distinção das ideias, mas ao apresentar-se e manifestar-se do objeto (qualquer que seja). Assim, nem mesmo os céticos recusam o que se apresenta como evidente, embora evitem a asserção correspondente (Sexto Empírico, Pirr. hyp., II, 10).

Descartes, porém, deu um conceito subjetivo de evidência. A “norma da evidência”, que ele expõe no Discurso, prescreve “nunca aceitar alguma coisa como verdadeira a menos que seja reconhecida evidentemente como tal; isso significa evitar diligentemente a precipitação e a prevenção e só incluir nos juízos o que se apresenta tão clara e distintamente ao espírito, que não haja motivo algum para ser posto em dúvida” (Discours, II). Nessa regra a evidência foi reduzida à clareza e distinção das ideias, e os problemas correlativos se deslocaram do domínio do objeto para o da ideia, reapresentando-se neste último como problemas objetivos. O próprio Descartes (sobretudo em Regras para a direção do espírito) vinculara a evidência à faculdade da intuição, não entendendo com essa palavra o testemunho dos sentidos ou o juízo da imaginação, mas “a concepção firme de um espírito puro e atento que nasce apenas da luz da razão e que, sendo mais simples, é também mais segura que a dedução” (Regulae ad directionem ingenii, III). A evidência seria, assim, o caráter da intuição e constituiria a certeza própria desta última, assim como a necessidade racional constitui a certeza da dedução. Esses conceitos dominaram grande parte da filosofia moderna, mesmo porque foram aceitos tanto por Locke, para quem “a certeza e a evidência do nosso conhecimento provêm da intuição da concordância ou da discordância entre as ideias” (Ensaio, IV, 2, 1), quanto por Leibniz (Nouv. ess., IV, 11, 10). O caráter subjetivo da evidência e sua conexão com uma faculdade humana mais ou menos misteriosa chamada intuição permaneceram em toda a filosofia moderna; só a filosofia contemporânea entendeu retornar ao antigo conceito de evidência objetiva.

A crítica da evidência como “uma voz mística que de um mundo melhor nos grite: aqui está a verdade!” foi feita por Husserl, que encontrou para a evidência a definição de “preenchimento da intenção”. Significa que há evidência quando a intenção da consciência, voltada para um objeto, é preenchida pelas determinações graças às quais o objeto se individualiza, se define e finalmente se apresenta à consciência em carne e osso (Logische Untersuchungen, II, § 39; Ideen, I, § 145; Erfahrung und Urteil, p. 12). Portanto, em toda a filosofia contemporânea que se inspira na fenomenologia, a evidência readquiriu caráter objetivo, voltando a designar a apresentação ou manifestação de um objeto como tal, qualquer que seja o objeto e quaisquer que sejam os métodos com os quais se pretende certificar ou garantir sua presença ou manifestação. Nesse sentido, Scheler falou de “evidência preferencial” para indicar as inter-relações hierárquicas e objetivas dos valores que guiam e sugerem as escolhas humanas (Formalismus, p. 87). No mesmo sentido, às vezes são qualificadas de evidentes as proposições analíticas ou tautológicas cuja verdade resulta dos seus próprios termos, como, p. ex., “O triângulo tem três lados”. [Abbagnano]


O caráter de uma ideia clara e distinta. — A evidência de uma ideia possui a propriedade de provocar naturalmente a afirmação. Segundo Descartes, a evidência é a qualidade objetiva de uma ideia; entretanto, Leibniz viu que a evidência é antes a qualidade de uma “relação” entre as ideias (fala-se da “evidência de uma operação matemática”). Desde Hegel, contrapõe-se a evidência (que é objetiva) à certeza (que é subjetiva e designa apenas uma impressão ou sentimento subjetivo da verdade). A última requer o trabalho do discurso e das demonstrações para tornar evidente a todos (objetivamente) o que é só objetivamente certo. [Larousse]


Este termo designa ou o claro mostrar-se, o revelar-se, o saltar à vista de um objeto (evidência objetiva), ou a correspondente “visão” intelectual, intelecção, percepção do objeto (evidência subjetiva). Como ambos os pontos de vista são unicamente dois aspectos da mesma relação cognoscitiva, quase não existe diferença em se preferir um ou outro modo de expressão; distinguindo, da maneira indicada, uma evidência “objetiva” e outra “subjetiva”, pretende-se apenas excluir qualquer equívoco. Note-se, contudo, que a expressão “evidência subjetiva” por vezes é empregada por outros também no sentido de evidência meramente aparente, de puro sentimento de evidência ou de certeza. — A genuína evidência é imediata ou mediata, consoante o objeto se patenteia por si mesmo ou por intermédio de outro ente; no último caso, deve existir e ser cognoscível uma conexão necessária entre este ente, meio de conhecimento, e o objeto a ser conhecido. Se a necessidade de tal conexão é absoluta, a evidência será também absoluta, e excluirá incondicionalmente o erro, como a evidência imediata; se, pelo contrário, a necessidade de conexão é só hipotética (física ou moral), a evidência é também só hipotética (física ou moral), excluindo normalmente o erro, mas não de maneira incondicional. Um exemplo de evidência mediata e todavia absoluta é, p. ex., uma demonstração matemática, na qual a conclusão se revela verdadeira, por se apoiar no fato de derivar, com absoluta necessidade, de proposições imediatamente claras. Um caso de evidência física é, por exemplo, a percepção sensorial relativamente à realidade das coisas percebidas, subjacente com necessidade física (de lei natural) à dita percepção. Evidência moral é a que estriba num depoimento fidedigno sobre os fatos testemunhados. — A evidência é critério de verdade (crédito de verdade), ou seja, sinal de conhecimento da verdade (verdade do conhecimento). Como a evidência implica um mostrar-se do próprio ente, esta proposição significa, em última instância, que a verdade tem sua medida no ser das coisas. A evidência é O necessário fundamento lógico da certeza. Mas nem sempre é motivo psicológico de assentimento seguro: principalmente em matéria de , importa ter presente esta diferença entre fundamento e motivo. — De Vries. [Brugger]


Em sentido geral, chama-se evidência a um saber certo, indubitável e que não se pode submeter a revisão. Esta maneira de entender o termo acentua o aspecto subjectivo da evidência, mas parece que esta caraterística não é suficiente. Os escolásticos, por exemplo, estudaram mais dois tipos de evidência: a chamada evidência de verdade ou evidência objetiva, e a chamada evidência de credibilidade. A primeira é a que se apoia no próprio objeto que se oferece ao entendimento. A segunda apoia-se no próprio fato de ser aceite como crível sem nenhuma dúvida. Alguns negam que a evidência tenha um papel decisivo, especialmente nos processos formais de raciocínio. Consideram que se evidência é a apreensão direta da verdade de uma proposição por meio daquilo a que Descartes chamava uma “simples inspeção do espírito”, a evidência terá de se basear na intuição. Mas como a intuição não garante a consistência formal de um sistema, nota-se a limitação fundamental do conhecimento evidente. Outros autores assinalam, em contrapartida, que não pode iludir-se a evidência, pelo menos quando se apresentam os axiomas primitivos de um sistema. Entre os que insistiram mais no papel desempenhado pela evidência na estreita relação existente entre a evidência e a verdade, encontram-se os fenomenólogos, em particular Husserl, nas Investigações Lógicas, Husserl afirma que a evidência surge quando há uma adequação completa entre o pensado e o dado. No ato da evidência, vive-se a plena concordância entre um e outro; a evidência é então “a verificação atual da identificação adequada”. Esta evidência não é simplesmente da percepção. Não é superior à percepção adequada da verdade; é a sua verificação mediante um ato peculiar. Para entender isso, deve ter-se em conta que Husserl se coloca num campo que supõe prévio ao de qualquer atitude natural e também prévio ao de todas as proposições científicas; os termos como cumprimento, efetuação, adequação, etc, não se referem à correspondência entre algo percebido e o que se diz sobre ele (em linguagem científica ou linguagem corrente), mas à vivência fenomenológica de algo imediatamente dado, anterior a qualquer teoria, construção, suposição, etc. Para Husserl, há várias classes de evidência: assertórica (chamada simplesmente evidência) e apodíctica (chamada intelecção). A evidência assertórica aplica-se ao individual e é inadequada; a apodíctica aplica-se às essências e é adequada. Na sua obra Experiência e Juízo, Husserl fala dos graus do problema da evidência e declara que cada tipo de objeto possui a sua própria forma de ser dado, isto é, a sua evidência. em Filosofia Primeira, Husserl fala de quatro tipos de evidência: natural, transcendental, apodíctica e adequada. [Ferrater]


Mas que é o privilégio desta «interioridade», noção vaga e desacreditada na sua acepção psicológica? Para conquistar o seu a priori, a fenomenologia deve simultaneamente definir o seu modo de certeza. A bem dizer trata-se mesmo aí do princípio metódico preliminar que Husserl caracteriza como evidência ou intuição. Para compreender o que é a evidência fenomenológica é preciso libertá-la dos equívocos derivados da sua proximidade com a «percepção interna». Se a consciência não tem interior, mas está toda no aparecer do vivido, não há dentro nem fora.

A percepção interna, não designa uma espécie de olhar lançado sobre si mesmo, mas uma diferença no modo de acesso à coisa, na «consciência de». A este respeito, pode-se distinguir duas formas fundamentais de consciência: uma que é simplesmente presuntiva, quer dizer, que é sempre uma orientação, mas uma orientação de algum modo vazia, que não encontra o seu objeto. E exemplo disso seria a criação

puramente mecânica de fórmulas simbólicas ou o emprego habitual das palavras. Pelo contrário, a evidência encontra o seu objeto exatamente como ele é visado. A evidência será caracterizada como «a presença da própria coisa» ou ainda «a experiência vivida da verdade».

Na sua concepção da evidência — que é preciso entender sempre fenomenologicamente no sentido de ato de consciênciaHusserl elimina pois qualquer consideração de ordem afetiva. A evidência não é um sentimento de acompanhamento, mas é definida por uma estrutura da consciência que «se preenche» na apresentação atual da coisa que ela visa. A evidência é, portanto, o começo do método, do mesmo modo que é o seu fim. Com efeito, não conhecemos, enquanto permanecermos comprometidos nas intenções presuntivas, as que, por exemplo, incitam o pensamento comum ou científico a «naturalizar» a consciência ou a procurar nas leis a causa «real» dos factos. Começar pela evidência é desembaraçarmo-nos dos preconceitos inerentes a uma atitude que Husserl chamaria «natural» ou «inocente» a fim de tornar presente a «própria coisa» que se visa: real ou ideal, individual ou geral, etc. Mas, por outro lado, a evidência é reportada a uma lei fundamental da intencionalidade; é ela que anima a pesquisa fenomenológica por inteiro, que pode ser definida como uma orientação sistemática para a evidência, ou ainda a produção, na evidência, de todos os modos possíveis de consciência e correlativamente de tipos de objetos. «Assim, a evidência é um modo da intencionalidade universal, reportada à vida inteira da consciência; graças a ela a vida da consciência tem uma estrutura teleológica universal, tem uma disposição para a ‘razão’ e mesmo uma tendência constante para ela.» (Logique formelle et logique transcendantale, p. 218.)

A desconfiança tradicional do pensamento científico, em relação à evidência, nascida da substituição das intuições pelo princípio da determinação (sistemas formais, axiomáticos), não pode prevalecer, segundo Husserl, contra esta nova função da evidência fenomenológica. Pelo contrário, pressupõe-a. Com efeito, não é senão numa correta interpretação, na evidência, do seu domínio próprio, que a ciência pode constituir-se como tal. Nãonão evidente nos objetos da ciência senão se eles forem confrontados com evidências de outro tipo; como se, por exemplo, se quisesse tratar um axioma ou uma lei como factos psíquicos.

A evidência é «originária», quer dizer que apenas nela as coisas estão dadas (ela é dadora) e que não pode receber a sua legitimação de um outro princípio que não seja ela própria. Husserl definiu-a também como o princípio dos princípios: «A intuição (sendo esta palavra substituída por ‘evidência’ sempre que quer insistir na sua propriedade de ser um ‘ver’) dadora originária é uma fonte de direito para o conhecimento; tudo aquilo que se nos oferece na ‘intuição’ de maneira originária (por assim dizer, na sua realidade corporal) deve ser simplesmente recebido para que se dê mas sem nunca ultrapassar os limites nos quais se dá então» (Idées directrices pour une phénoménologie, p. 78). Ou ainda: «É somente vendo que posso pôr em evidência aquilo de que se trata verdadeiramente num ver; a explicitação da essência própria desse ver, devo efetuá-la vendo» (Logique, p. 216).

«Aquilo de que se trata» são as «próprias coisas»; e as etapas sucessivas que percorre a fenomenologia, ao mesmo tempo, no método e, exemplarmente, na história da obra de Husserl, são pontuadas pela apresentação das «próprias coisas» sempre novas em evidência que se encaminham para graus sempre mais radicais de originalidade. O que não significa a refutação das evidências primeiras, mas a sua integração nas estruturas mais complexas e que dão melhor conta do todo concreto (o vivido) que elas organizam.

Segundo este ponto de vista, a fenomenologia como ciência pode agora ser abordada pela delimitação do seu objeto, operada na base do seu próprio método. [Schérer]



Evidência e inevidência.

Prescindindo aqui da discussão, possivelmente complicada, a que daria lugar o levantamento do problema lógico da evidência, digamos simplesmente que a evidência é a presença integral do objeto diante de mim, na minha intuição intelectual. Entendo por presença integral este modo de estar o objeto diante de mim, que consiste em oferecerão à minha intuição ele próprio — e não um substitutivo ou representante seu — e em toda sua integridade — sem faltar-lhe nada, som ser simples fragmento — e em total nudez, sem véus que ocultem sua essência interior e estrutura íntima. Quando tudo isto se cumprir, estará o objeto em presença integral diante de mim e, terei a intuição de sua evidência. Vejo o objeto, diante de mim, por dentro o por fora; conheço-o tal como é, de sorte que não posso conceber como possível que o objeto não seja e não seja precisamente aquilo que é. Assim, quando penso: dois e dois são quatro — ou vejo que este papel é branco, tenho intuição da evidência desses objetos. Ao contrário, quando penso no dogma da Santíssima Trindade, creio e portanto sei que é verdadeiro; porém não tenho a intuição de sua evidência.

Assentir ao objeto evidente ou do qual tenho intuição de evidência, parece, porém, um ato inevitável. Embora eu não quisesse não poderia evitar de verificá-lo. Ser para mim evidente a intuição do objeto é, automaticamente, afirmálo; é pronunciar o juízo, é verificar o ato de conhecimento do objeto. Não intervém aqui a vontade. Eu não posso não afirmar o evidente, se verdadeiramente for evidente. Em troca, quando assinto a um objeto não evidente, teve que intervir necessariamente algo que, não sendo parte do objeto mesmo, tenha inclinado minha vontade a verificar o ato de assentimento. Ao colocar-me eu diante do objeto e intuir sua inevidência, esta me impele a não afirmar o objeto. Se, pois, apesar disto, afirmo o objeto, tem que ser porque algo alheio ao objeto mesmo e ao ato de afirmá-lo ou de negá-lo me inclina a isso. Exemplo: se levanto a cabeça e vejo diante de mim o meu amigo João, tenho intuição de evidência do objeto chamado meu amigo João; e verifico o ato de juízo consistente em afirmar que aqui está João. Porém, se João me diz que nosso amigo comum Pedro está doente, eu não tenho intuição de evidência de Pedro doente; não está diante de mim em presença integral o objeto: Pedro doente. Então, se apesar desta inevidência creio que, com efeito, Pedro está doente, é por algo que se tenha acrescentado à minha intuição atual da inevidência. Verificarei o ato de fé de acreditar que Pedro está enfermo porque me disse João. Este “porque me disse João” é o elemento novo que se acrescenta para inclinar-me a afirmar o objeto do qual não tenho intuição evidente. No ato de fé a afirmação do objeto não se fundamenta, pois, na evidência do próprio objeto — evidência inexistente — mas em outra coisa, alheia ao objeto e a mim. Esta outra coisa não move diretamente meu entendimento à afirmação do objeto, mas persuade minha vontade para que esta verifique o ato do entendimento de assentir ao objeto não evidente. Que coisa é essa que põe em movimento a vontade de assentir intelectualmente?

Acabamos de insinuá-lo quando dissemos que o elemento novo, descoberto pela análise, está nesta frase do nosso exemplo: “porque me disse João”. O elemento novo é uma pessoa que me diz e na qual eu confio. Se no ato de fé eu assinto a um objeto inevidente, como se fosse evidente, é porque a inevidência do objeto é compensada pela declaração de outra pessoa, à qual concedo crédito. Para que haja ato de fé é necessário, pois, que exista uma declaração ou uma revelação que parta de outra pessoa e chegue até mim. Essa pessoa e sua declaração ou revelação têm que possuir, porém, “autoridade”; quer dizer, que deve haver motivos e razões extrínsecas e gerais que me impulsionem a acreditar aquilo que essa pessoa declara, embora isso não seja para mim evidente. Assim, eu acredito no meu amigo que me diz que Pedro está doente; porque meu amigo tem autoridade, pois vem precisamente da casa de Pedro. Eu acredito no astrônomo que me diz que às 12:15 haverá um eclipse do sol; porque o astrônomo tem autoridade em questões de eclipses. No ato de fé temos, pois, um assentimento do intelecto a um objeto inevidente, assentimento que vem impulsionado pela vontade, em vista da declaração de uma pessoa revestida da autoridade. [Morente]