A. As escolas neokantianas.
O idealismo surgiu na Alemanha nos últimos trinta anos do século XIX, principalmente na forma do neokantismo. Podem ser enumeradas sete grandes escolas que interpretam de maneira diferente a doutrina do mestre: 1) a escola fisiologista (Hermann Helmholtz, 1821-1894, Friedrich Albert Lange, 1828-1875), que interpretava as formas kantianas a priori como disposições fisiológicas; 2) a escola metafísica (Otto Liebmann, 1840-1912, Johannes Volkelt, 1848-1930), que admitia a possibilidade de uma metafísica crítica; 3) a escola realista (Alóis Riehl, 1844-1924, Richard Hönigswald, 1875-1947), que se manifestava no sentido da existência de uma coisa em si; 4) a escola relativista de um Georg Simmel (1858-1918), para quem o a priori kantiano é de natureza psicológica e relativa; 5) a escola psicológica (Hans Cornelius, 1863-1947), que se aproxima ainda mais do positivismo. Estas cinco escolas foram superadas, e temos de convir também em que não são kantianas ortodoxas. Pelo contrário, as duas outras escolas, que falta enumerar, mais importantes e que se mostraram ainda muito ativas no período que mediou entre as duas guerras mundiais, permanecem fiéis ao espírito de Kant. São 6) a escola logicista (de Marburgo) e 7) a escola axiológica (denominada escola de Baden). Enfim, Bruno Bauch, pensador de categoria, chegou a operar uma espécie de síntese destas duas últimas tendências, mas ultrapassando-as e desenvolvendo-as.
O movimento neokantiano é, por assim dizer, exclusivamente alemão. Mas até mesmo na Alemanha ele está em retirada, após o período de esplendor que se seguiu imediatamente à Primeira Guerra Mundial. Seu posto vem sendo ocupado pelas tendências fenomenológicas, existencialistas e metafísicas. O reinado do nacional-socialismo desferiu-lhe terrível golpe, porque a maior parte de seus representantes era de origem judia e fora violentamente perseguida.
Nesta seção vamos estudar os pontos mais importantes das doutrinas da escola de Marburgo, da escola de Baden e de Bruno Bauch. O número de neokantianos importantes é demasiado grande, mas a influência por eles exercida não é suficientemente vasta para que reservemos um parágrafo a cada um. Por outro lado, aqui, como no caso do neopositivismo e do marxismo, encontramo-nos perante uma verdadeira escola, que possui em todas as suas ramificações um vasto conjunto de princípios e de métodos.
B. Os pensadores.
O fundador da escola de Marburgo é Hermann Cohen (1842-1918), que se tornou célebre por seus trabalhos sobre Platão, sobre a história e o princípio do método infinitesimal e sobre Kant, trabalhos estes de difícil compreensão. Seu principal discípulo, Paul Natorp (1854-1924), célebre por seu livro sobre Platão (Piatos Ideenlehre, 1903), soube, ao invés, expor suas ideias em forma clara e acessível. Sua obra Philosophie, ihr Problem und ihre Probleme (1911) é, juntamente com a de Rickert, Der Gegenstand der Erkenntnis (1892), a melhor introdução ao neokantismo. Outros membros importantes da escola de Marburgo são Ernst Cassirer (1874-1945) e Arthur Liebert (1878-1947), ambos conhecidos por sua ampla atividade internacional. Karl Vorlaender (1860-1928) tentou elaborar uma síntese das éticas kantiana e socialista. Finalmente, Rudolf Stammler (1856-1938) é a figura mais eminente no ramo da filosofia jurídica dentro da escola de Marburgo.
A escola de Baden foi fundada por Wilhelm Windelband (1848-1915), um dos mais conceituados historiadores da filosofia e antigo discípulo de Lotze. Windelband dispõe de brilhantes dons de exposição; seus Präludien (1884) raramente têm sido superados quanto a clareza e beleza de linguagem e de estilo. O sucessor de Windelband à frente da escola foi Heinrich Rickert (1863-1936), o qual, do mesmo modo que seu mestre, se distinguiu pela clareza e precisão de pensamento. Emil Lask (1875-1915) é, entre os neokantianos, aquele cuja doutrina mais se aproxima da posição fenomenológica. Faleceu durante a Primeira Guerra Mundial, sem ter deixado a grande obra, na qual tantas esperanças haviam sido postas. Entre os restantes representantes de mérito da escola, deve ser mencionado Hugo Munsterberg (1863-1916), que se dedicou principalmente à psicologia.
Bruno Bauch (1877-1942) provém também da escola de Badén; foi sucessivamente discípulo de Rickert, de Windelband e de outros neokantianos. Contudo, sua filosofia sai fora dos quadros desta escola e representa um esforço de síntese das escolas de Marburgo e de Baden, com elementos novos de sua própria lavra. Também Bauch se encontra, mais ainda do que a escola de Baden, sob a influência de Lotze. Passa por ser um dos filósofos mais difíceis de nosso tempo.
C. As doutrinas fundamentais comuns.
Todos Os neokantianos professam várias concepções fundamentais que conferem à escola o seu perfil de conjunto. Em primeiro lugar, todos apelam para Kant, que, aos olhos deles, é o maior filósofo e o pensador da cultura moderna. Pelo que, admitem toda uma série de suas teses fundamentais. Primeiramente rejeitam o método psicológico e a metafísica. Pista afigura-se-lhes impossível, e, quanto ao método psicológico e qualquer método empírico em geral, deve ser substituído em filosofia pelo método transcendental. Segundo este método, a filosofia consiste essencialmente na análise das condições lógicas do conhecimento e da vontade. Em segundo lugar, eles são, como Kant, conceptualistas, isto é, negam — embora de maneiras diferentes, consoante o matiz da escola — a intuição intelectual. A razão é, para eles, a faculdade de construir o todo a partir de seus elementos e possui unicamente a capacidade de síntese. Não há conhecimento algum de conteúdos nem de essências. Só Lask parece constituir exceção parcial neste particular, sem dúvida por influxo da fenomenologia. Em terceiro lugar, todos os neokantianos são idealistas no sentido epistemológico da palavra: o conhecimento não consiste numa apreensão, mas numa criação do objeto. “O ser não existe em si mesmo; só o pensamento o faz surgir”.
Mas compreender Kant quer dizer ultrapassá-lo (Windelband) e os neokantianos não se arreceiam de enterrar o corpo desta filosofia para que possa sobreviver seu espírito (Natorp). De fato, eles vão mais além de Kant em muitos aspectos. Assim, o idealismo deles é mais radical que o do mestre, pois que rejeitam a existência da coisa em si. Negam também que a sensação seja fonte original do conhecimento e, por conseguinte, são racionalistas mais radicais do que Kant. Estes são os pontos capitais de divergência. Em muitas outras direções desenvolveram e transformaram a doutrina kantiana, e no decurso deste capítulo nos ocuparemos das principais.
Para facilitar a compreensão, convém relembrar que o idealismo destas escolas nada tem que ver com o idealismo subjetivo de um Berkeley, mas que se trata aqui de um idealismo “transcendental”. Os neokantianos repelem energicamente a ideia de que o mundo se encontraria “na cabeça” do sujeito pensante. Isso equivaleria a interpretar falsamente a doutrina deles. Tampouco atribuem qualquer significado ao “sistema C” de um Avenarius, suma da consciência e do sistema nervoso. O sujeito, tal como eles o concebem, não é sequer a consciência que constitui o objeto da psicologia: Rickert elimina do conceito consciência, em primeiro lugar, tudo o que é corpóreo e, em seguida, todo conteúdo psíquico, de sorte que nada mais resta do que a “consciência em geral” (Bewusstsein uberhaupt), algo semelhante a um ponto matemático sem nenhuma realidade. Compreendido desde este ponto, tudo o que é lhe é imanente. Uma vez admitida esta tese, já não é necessário, dizem os neokantianos, negar o realismo empírico: como tudo o que é imanente à consciência em geral, existem diversas espécies de transcendente em relação à consciência empírica, concreta e humana, de forma que o solipsismo fica superado. Surge, em seguida, o problema de explicar em que se fundamentam os dados objetivos que os neokantianos por forma alguma negam. Como não existe nenhuma outra realidade além do conteúdo da consciência em geral, torna-se impossível recorrer a uma realidade transcendente. Mas a objetividade e a verdade aparecem unicamente no juízo. Portanto, a questão dirige-se ao juízo: tenta-se compreender o que torna o juízo objetivo e verdadeiro, sem com isso transgredir a imanência. É principalmente na explicação desta questão que as escolas divergem. [Bochenski]