Encontramos no ensaio Vom Wesen des Grundes [Da essência do fundamento] a ideia de que o ato de transcender não parte de um “eu” fundador singular, mas se põe como princípio instituidor de todo eu, tu ou ele. Estamos, portanto, diante de um poder que determina não só a emergência do ente intramundano, como também a da própria realidade humana. O ente fundado pelo projetar não é unicamente a circunstância do homem, mas o homem em sua circunstância. Podemos, entretanto, abordar essas ideias a partir de outro ponto de vista. Sabemos como o ente intramundano só se revela a partir de um sistema de possibilidades inerentes à existência. Essas possibilidades poderiam ser compreendidas como projetadas pelo homem, sendo o próprio homem, nesse caso, um prius em relação ao aparecimento do ente intramundano. Porém, a perspectiva em que nos colocamos, procurando incluir o homem dentro do círculo de um projetar instituidor, atesta-nos que aquela interpretação antropocêntrica é inexata. A abertura das possibilidades não diz respeito unicamente à esfera do mundo circundante, mas incide na própria estruturação e constituição do homem. Nesse sentido devemos compreender a afirmação de Heidegger de que ao traçar o mundo, o homem se vê traçado no interior do mundo e aí abandonado. O desvelamento do horizonte mundanal é simultâneo ao desvelamento do próprio homem. As consequências filosóficas desse ponto de vista e sua elaboração especulativa oferecem perspectivas ainda inexploradas. Se o transcender instituidor das possibilidades abre campo para a realização histórica, disso resulta que estamos diante de uma área meta-histórica de decisões que envolve [232] e condiciona todas as vicissitudes humanas. É o que afirma Heidegger em diversas passagens da Carta sobre o Humanismo: “A história do Ser suporta e determina toda a situação e condição humanas”. E ainda: “O jectante do projeto não é o homem, mas o próprio Ser que endereça o homem ao ek-sistir como à essência que lhe é própria”. Vemos, pois, que de uma abertura condicionadora do ente intramundano e somente dela, passamos a um desvelamento superior, onde se realiza simultaneamente a emergência das possibilidades circundantes e antropológicas. O ente humano, do mesmo modo que o mundo circundante, é o resultado e a consequência de um transcender que traça e que constitui a trama das oportunidades de realização histórico-humanas. Assim como o ente intramundano não constitui uma realidade ontológica última, um fato irredutível e fundamental, o homem também, como algo revelado por um projetar instituidor, não seria qualquer coisa de último e permanente no processo histórico-mundial. Na expressão de Ernesto Grassi, o Ente é um aparecer (Sichzeigen, Erscheinen) que se revela dentro de certos limites. Esse mostrar-se, esse aparecer do Ente é entretanto condicionado pelo projetar humano que prescreve os limites de mostrar-se. Acreditamos, de acordo com uma nova perspectiva, que o Ente como aparecer deve ser estendido ao próprio homem, que se determinaria assim como o mostrar-se de um mostrar projetante mais originário. Essa perspectiva arranca a reflexão filosófica de um sentido antropotrópico e a lança num terreno excêntrico, onde o Ente vem pensado fora da perspectiva exclusivamente humana. O homem é um Ente no conjunto dos Entes. O desvelamento instituidor do Ser outorgaria ao homem o nexo de suas oportunidades e desempenhos humanizantes e o núcleo da sua verdade propriamente humana. Veremos mais adiante qual foi o acontecimento que permitiu o recortar-se da manifestação humana no conjunto do processo histórico religioso. Repetimos que não só o fenômeno do mundo circundante é fruto de um desenhar projetante que o delineia e determina em sua singularidade própria, como também o homem mesmo amanhece para o seu perfil hominídeo singular, por meio de um [233] transcender instituidor que lhe outorga e assegura suas possibilidades mais genuínas. Parece-nos ser possível interpretar dessa maneira o que diz Heidegger em seu ensaio Von Wesen der Wahrheit: “Entretanto, se o Dasein ek-sistente, como o deixar ser do Ente, libera o homem para a sua liberdade, quer à sua escolha proporcione algum possível, quer lhe imponha algum necessário, então não é o arbítrio humano que dispõe da liberdade”. Vemos claramente nesta passagem como o Ente que é franqueado pela abertura projetante pode consistir justamente nesse plexo de possibilidades que configuram a realidade humana. O desvendamento do Ente é a ocorrência instituidora do espaço ocupado pelo homem. “A história das possibilidades essenciais da humanidade histórica – diz Heidegger – é coordenada para esta no desvelamento do Ente em sua totalidade”. O ponto essencial das nossas reflexões consiste justamente em mostrar essa incidência do ato de descobertura sobre a própria constituição da conexão humana. O desvelamento do Ente que deve ser compreendido em função de uma intervenção projetante do Ser é também o desencadear-se das impulsões antropopoiéticas. [VFSTM:232-234]