A obrigação moral. — Essa obrigação pode revestir-se de um caráter absoluto (“não matarás!”), denominando-se então “imperativo categórico” (Kant); pode ser também, ao contrário, relativa e condicional (“se queres ser sábio, instrui-te!”): recebe então o nome de “imperativo hipotético”. Distinguem-se ainda os deveres “estritos” (de simples justiça) e os deveres “largos” (que dependem da caridade). O dever pode vir: 1.° da consciência individual (é a obrigação moral propriamente dita, o que Rousseau denominava “voz da consciência”); 2.° da presença em nós de uma consciência social ou consciência coletiva (descrita por Durkheim e William James: assim, é a consciência social que nos força a levantar pela manhã). A vida e também a arte multiplicam as confrontações, frequentemente violentas, entre o dever da consciência (o que impele, por exemplo, Antígona a enterrar seu irmão segundo a religião) e o dever social (o que impulsiona, na mesma tragédia, o rei Creon a recusar o enterro ritual). Outro exemplo de conflito de deveres: o problema lançado pelos que, por pretextos religiosos, políticos ou quaisquer outros, recusam-se a cumprir suas obrigações militares. (V. moral, Kant, estoicismo.) [Larousse]
O dever expressa aquilo que é forçoso. O que deve ser é o que não pode ser de outra maneira. Mas este “não pode ser” não significa uma necessidade de tipo natural ou de tipo lógico–ideal, mas antes a necessidade derivada da obrigatoriedade, que nasce de um mandato. Este mandato pode proceder de fontes muito diversas; e foi a referência a uma determinada fonte, em geral, que deu uma significação precisa ao dever. Não é a mesma coisa, com efeito, o dever consoante a fonte do mandato seja a Natureza, o mundo inteligível, a pessoa divina, a existência humana, ou o reino dos valores. Na antiguidade e ainda na idade média, a reflexão sobre o dever foi quase sempre a reflexão sobre os deveres; não se tratou tanto de precisar o que é o dever como de determinar aquilo que é devido. Isto tem, imediatamente, uma razão principal: o fato de quase todas as morais anteriores a Kant terem sido morais concretas e, portanto, morais nas quais importou mais o próprio conteúdo das leis e dos mandatos do que a forma. É claro que houve sempre alguma consciência da diferença fundamental entre o dever como aquilo que deve ser e o ser puro e simples. Costuma distinguir-se, em filosofia, entre o ser e o dever ser. Tomada num sentido geral, esta distinção é ontológica. Mas tem o seu paralelo linguístico na existência de dois tipos de linguagem: a linguagem indicativa e a linguagem prescritiva, respectivamente. Muitas vezes supõe-se que enquanto o ser corresponde ao reino da realidade , enquanto tal (por vezes só ao reino da natureza), o dever ser corresponde ao reino da moralidade.
Por isso se considerou o dever quase sempre sob o aspecto do dever moral de acordo com a origem com o mandato que expressa aquilo que se deve fazer ou omitir. Para as morais de tipo material, o dever deduz-se do bem supremo. Assim, para os estoicos, o dever é primordialmente viver conforme com a natureza, isto é, com a razão universal. Para as morais de tipo formal, em contrapartida, o dever não se deduz de nenhum bem no sentido concreto do vocábulo, mas do imperativo categórico supremo, independente das tendências concretas e dos fins concretos. Assim, Para Kant, o dever, esse “nome grande e sublime”, é a forma da obrigação moral. A moralidade tem lugar deste modo apenas quando se realiza a ação por respeito ao dever e não só em cumprimento do dever.
Isso equivale a uma identificação do dever com o soberano bem. Como diz na FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES, o dever é necessidade de atuar por puro respeito à lei, a necessidade objetiva de atuar a partir da obrigação, isto é a matéria da obrigação. Em suma, se as máximas dos seres racionais não coincidem pela sua própria natureza com o princípio objetivo do atuar segundo a lei universal, isto é, de modo que possa ao mesmo tempo considerar-se a si mesmo como se as suas máximas fossem leis universais, a necessidade de atuar de acordo com esse princípio é a necessidade prática ou dever.
Nas éticas de tipo material, o dever é a expressão do mandato, exercido sobre a consciência moral por certo número de valores. Este mandato expressa-se quase sempre sob forma negativa.
Contudo, pode admitir-se que também a intuição dos valores supremos produz, em certos casos, a consciência do dever, da realização e cumprimento do valioso. [Ferrater]
(gr. to kathekon; lat. officium; in. Duty; fr. Devoir; al. Pflicht; it. Doveré).
Ação segundo uma ordem racional ou uma norma. Em seu primeiro significado, essa noção teve origem com os estoicos, para os quais é dever qualquer ação ou comportamento, do homem ou das plantas e animais, que se conforme à ordem racional do todo. “Chamam de dever”, diz Diógenes Laércio (VII, 107-09), “aquilo cuja escolha pode ser racionalmente justificada… Entre as ações realizadas por instinto, algumas o são de dever, outras contrárias ao dever, algumas não estão ligadas a ele nem dele desligadas. De dever são as ações que a razão aconselha a cumprir, como honrar os pais, os irmãos, a pátria e estar de acordo com os amigos. Contra o dever são as que a razão aconselha a não fazer, como negligenciar os pais, não cuidar dos irmãos, não estar de acordo com os amigos etc. Não são de dever nem a ele contrárias as ações que a razão não aconselha nem proíbe, como levantar um graveto, segurar uma pena, uma escova, etc.” A conformidade com a ordem racional (que é, de resto, o destino, a providência ou Deus) é aquilo que, segundo os estoicos, constitui o caráter próprio do dever. Os estoicos distinguiam, como relata Cícero, o dever “reto”, que é perfeito e absoluto, e não pode encontrar-se em ninguém senão no sábio, e os dever “intermediários”, que são comus a todos e muitas vezes realizados graças apenas à boa índole e a certa instrução (De off., III, 14).
A doutrina do dever, como se vê, na origem pertence a uma ética fundada na norma do “viver segundo a natureza”, que é, de resto, a norma de conformar-se à ordem racional do todo. Portanto, não surgiu da ética aristotélica, que é inteiramente fundada no desejo natural de felicidade e faz referência à ordem racional do todo. A ética medieval, que, por sua vez, toma como modelo a ética aristotélica, também ignora a teoria do dever e concentra-se na teoria das virtudes, dos hábitos racionais adequados à consecução da felicidade e da bem-aventurança ultraterrena. O conceito de dever volta a predominar só na ética kantiana, que é uma ética da normatividade. Ela modifica o conceito estoico de dever como conformidade à ordem racional do todo, transformando-o em conformidade com a lei da razão. Para Kant, dever é a ação cumprida unicamente em vista da lei e por respeito à lei: por isso, é a única ação racional autêntica, determinada exclusivamente pela forma universal da razão. Diz Kant: “Uma ação realizada por dever tem seu valor moral não no fim que deve ser alcançado por ela, mas na máxima que a determina; ela não depende, portanto, da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio da vontade segundo o qual essa ação foi determinada, sem relação com nenhum objeto da faculdade de desejar.” Em outros termos, “o dever é a necessidade de realizar uma ação unicamente por respeito à lei”, indicando a palavra “respeito” a atitude que não leva em conta quaisquer inclinações naturais (Grundlegung zur Met. der Sitten, 2). Nesse sentido, Kant chama de dever a ação “objetivamente prática”, ou seja, a ação na qual coincidem a máxima segundo a qual a vontade se determina e a lei moral. “Nisso consiste a diferença entre a consciência de ter agido em conformidade com o dever e a de ter agido por dever, ou seja, por respeito à lei.” A ação conforme à lei mas não realizada por respeito à lei é a ação legal; a realizada por respeito à lei é a ação moral. Portanto, moralidade e dever coincidem (Crít. R. Prática, I, 1, cap. 3). A doutrina kantiana do dever foi transformada por Fichte numa verdadeira metafísica. “A única base sólida de todo o meu conhecimento”, disse ele, “é o meu dever. É ele o inteligível em si que, mediante as leis da representação sensível, transforma-se em mundo sensível” (Sittenlehre, § 15, em Werke, IV, p. 172). Isso no sentido de que o próprio mundo sensível outra função não teria que a de fornecer à atividade moral os limites ou os obstáculos, na luta contra os quais tal atividade teria meios de desempenhar sua função de libertação.
Na ética contemporânea, a doutrina do dever continua ligada à da ordem racional necessária, ou norma (ou conjunto de normas) apta a dirigir o comportamento humano. Isso significa que sempre que o fundamento da ética for a felicidade, individual ou coletiva, a perfeição ou o progresso da vida individual ou coletiva, não haverá lugar para a noção de dever No século passado Bentham opunha-se ao dever em nome de uma ética fundada exclusivamente no interesse, julgando inútil e sem sentido o apelo ao dever (Deontology, 1834,1,1). No nosso século, Bergson também se opôs ao dever em nome de uma ética do amor. Para Bergson, o dever, ou “obrigação moral”, não passa de hábito de comportamento dos membros de um grupo social. Esses hábitos podem variar, mas seu conjunto, ou seja, o hábito de adquirir hábitos, tem a mesma intensidade e regularidade de um instinto (Deux sources, p. 21). Essa é a ética da sociedade fechada, mas também há a ética “absoluta” da sociedade aberta, que diz respeito a toda a humanidade e é a que dá continuidade e faz progredir o esforço criador da vida, tendendo a uma forma de sociedade aperfeiçoada pelo amor. — Entre a persistência com novas roupagens da ética clássica da felicidade, o ressurgimento de éticas misticizantes como a de Bergson, e as tentativas de reduzir a ética a um conjunto de desejos não elaborados ou de preferências sem motivo, a doutrina do dever, que transformava Kant em poeta (“Dever! Nome sublime e grande que nada contém de agradável que possa adular, mas desejas a submissão; que todavia não ameaças nada etc”, Crít. R. Prática, I, 1, cap. 3), perdeu quase todo o prestígio, sem todavia ser substituída por algo de mais racional. [Abbagnano]