Assim, pois, esta esfera das coisas reais vê-se que é complexa no sentido das camadas sucessivas. Nessa série das camadas do mundo das coisas reais passamos da coisa no mundo “à mão” ao problema, e do problema ao conceito da essência. Porém esse conceito já não é uma coisa no mundo das coisas reais; já a essência assim não é uma realidade; não está no tempo e não é mutável e perecível. Já ao chegar a esse fundo do mundo das coisas reais tropeçamos, sem solução de continuidade, com um dos elementos de que está constituído o outro mundo, o das coisas ideais. Porque as essências assim são coisas ideais; elas constituem como que a segunda esfera dos seres e dos objetos. Coisas reais são cada um dos cavalos; porém a essência “cavalo” já não é real; é um objeto ideal.
Chegamos, pois, ao segundo grande grupo, ã segunda região, que é a região dos objetos ideais. Quais são estes objetos ideais? Pois principalmente são três os que conhecemos agora (pode ser que haja mais, porém a filosofia até hoje não pode comprovar mais do que estes três grupos de objetos ideais). Primeiro, as relações, as relações entre coisas. Se eu digo que duas coisas são iguais, a igualdade não é uma coisa, mas algo que não se parece nada com a coisa. É um objeto ideal. Se eu digo que duas coisas são semelhantes ou dessemelhantes, ou que uma é o dobro da outra, ou que é a metade da outra, o ser o dobro, a metade, ser semelhante ou ser dessemelhante, todas essas relações são objetos ideais. As coisas são cada uma aquilo que são; porém somente por comparação pode-se dizer metaforicamente que uma coisa é a metade da outra; pois ser não é metade de nada. De modo que, primeiro, temos as relações. Segundo, os objetos matemáticos. Os objetos matemáticos também são ideais. O ponto, a linha, o círculo, os números, as raízes, os duplos, os triplos, os quádruplos, as razões, as proporções, os quadrados, os cubos, as diferenciais, as integrais; todos esses objetos matemáticos são também objetos ideais. E, por último, as essências são objetos ideais.
Ser
Perguntemos agora: Qual é a estrutura ôntica, quais são as categorias ônticas dessa região que chamamos objetos reais? E temos que a primeira é comum a essa região com a anterior, e é o ser. Estes objetos são, têm ser. Que significa que têm ser? Pois significa que estão no meu mundo, estão aí; não no mundo das coisas reais; porém estão aí e eu saio a procurá-los, do mesmo modo que posso ir procurar um amigo pela rua. Ponho-me a procurá-las e as encontro. E quando as encontro, quando encontro um desses objetos, me encontro com um complexo e com os pensamentos que eu tenho desse objeto. Os pensamentos que eu tenho que ter acerca desse objeto não serão quaisquer uns ou caprichosos, antes serão aqueles que o objeto for. Eu, do círculo, não posso dizer o que quiser. Tenho que dizer que os pontos estão a igual distância do centro. Tenho que dizer que um hexágono regular inscrito dentro do círculo tem seus lados iguais ao raio. Não posso, pois, dizer o que quiser. Os objetos ideais são, e nesse sentido são independentes de mim. Não são fenômenos psíquicos, como veio acreditando meia história da filosofia até hoje. Não são fenômenos psíquicos nem são vivências. Necessitamos talvez vivências para apreendê-los, como o coxo necessita muletas para caminhar. Necessitaremos provavelmente vivências para ir a esses objetos ideais. Necessitaremos, entre outras vivências, símbolos: escrever numa lousa uma letra V e um risco, e debaixo o numero três, que significa “raiz quadrada de três”. Mas é esse o objeto ideal? Não, esse é o sinal com que eu designo esse objeto ideal. Necessitaremos talvez imagens para pensar nesses objetos ideais. Porém eles, pensados mediante essas imagens, são o termo mencionado, o representado pelas imagens, mas não as imagens mesmas. As imagens são vivências, mas o objeto ideal representado pelas imagens é distinto das imagens que o representam.
Intemporalidade
Têm, pois, estes objetos ideais ser, do mesmo modo que os objetos reais; porém o ser desses objetos ideais não é a realidade; e não é a realidade, porque esses objetos ideais — e aqui vem seguidamente a categoria correspondente — são intemporais. Não nascem no tempo, nem perecem no tempo, nem se transformam ao longo do tempo. O triângulo é fora do tempo, de qualquer tempo. Não começa a ser um belo dia no sul da Itália, quando os Pitagóricos começam a pensar em geometria; não começa a ser então, mas quando então o descobriram os Pitagóricos, como Colombo descobriu a América. Descobriram o triângulo que não terminará de ser; mas se algum dia, por catástrofe miraculosa, deixasse de haver homens sobre a terra, deixaria de haver quem pensasse no triângulo, porém não deixaria de haver triângulo. Deixaria de haver quem pensasse nisso, porém nem por isso deixaria de haver triângulo. Da mesma forma, se se destruir a humanidade e venha a surgir outra nova humanidade, que tenha esquecido por completo a nossa própria história, ninguém neste mundo saberá sequer que existiu um homem chamado Péricles. E todavia, existiu.
Assim é que a intemporalidade é característica -destes objetos ideais, que não estão no tempo, nem começam a ser num momento, nem deixam de ser noutro momento, antes são fora do tempo. Não digamos eternamente porque é um conceito, o da eternidade, cheio de dificuldades. Digamos somente fora do tempo, intemporal.
Idealidade
Chegamos à terceira categoria deste grupo, que é a idealidade. O que se entende por idealidade? Pois entendemos por idealidade o contrário de causalidade. Como se explica, ou melhor dizendo,] em que consistem as variações temporais das coisas no mundo dos objetos reais? Consistem em que se empurram e sucedem umas às outras; os fatos de consciência sucedem-se uns aos outros e a causalidade expressa, de um lado, o caráter ôntico dessa sucessão, e, de outra de suas fases, o caráter ontológico da inteligibilidade dessa sucessão. Mas os objetos ideais não se causam uns aos outros; o ponto não causa a linha, a linha não causa o triângulo, nem o círculo causa a esfera, antes esses objetos ideais são uns com relação aos outros numa conexão que não é a causai, mas é a de implicar-se idealmente, como a conclusão está implicada na premissa de um silogismo. Essa implicação é aquilo que chamamos idealidade.
De maneira que para estudar os objetos matemáticos não serve para nada o conceito de causa; o que unicamente serve é intuir como cada objeto matemático é implicado ou implica outros objetos matemáticos na pureza de sua própria definição ideal. Isto é o que chamamos Idealidade, que se opõe à realidade. A realidade, que no começo nos resultou algo difícil de explicar e que expliquei dizendo que era a presença individual, a realidade está intimamente enlaçada com a causalidade. Porém aqui, onde não há causalidade, a conexão entre os indivíduos deste grupo de objetos ideais é uma conexão ideal.
Por isso chamamos àqueles reais, e a estes ideais, porque tínhamos tomado para designá-los aquela categoria ôntica típica da região. Na região anterior era típica a categoria de presença individual., causai, efetiva, no pleno sentido da palavra “efetiva”, e por isso os chamávamos objetos reais, de res, coisa. E a estes, tomando também a categoria mais típica e própria da região, temos que chamá-los objetos ideais, porque nesta região a terceira categoria deles, a idealidade, é propriamente a mais característica.
Antes de prosseguir no estudo e exame ôntico das outras duas esferas ou regiões da objetividade, convém uns minutos de detenção sobre um problema que nesse momento se apresenta.
A unidade do ser
Um certo número de filósofos censura gravemente esse tipo de ontologia que está em formação na filosofia atual. Está inacabado. É o conjunto dos problemas em que trabalham atualmente os filósofos. E censuram esta tentativa e a própria ideia de “categorias regionais” e de estruturas regionais do ser”. Censuram-na acusando-a de que divide e parte em dois, ou em três, ou em quatro, a fundamental unidade do ser. Dizem: essa ontologia é uma ontologia dualista ou pluralista; toma o ser e o parte em dois; de um lado, as que se chamam coisas reais, e de outro lado os objetos ideais. Porém isto não é assim, tem que haver uma unidade do ser.
Esta censura é completamente injusta; esta crítica é completamente infundada. Os que isto dizem, não têm a menor razão e, sobretudo, não se inteiraram daquilo que a novíssima ontologia se propõe e pretende. Como se pode dizer que nossa ontologia destrói a unidade do ser, quando, pelo contrário, acabamos de ver que a primeira coisa que fizemos, ao enumerar as categorias estruturais e ônticas de cada uma dessas duas regiões, foi começar pela mesma, o ser? De modo que encontramos a mesma categoria, o ser, como primeira categoria de objetos ideais. Aquilo que distingue uns de outros não é, pois, que uns sejam e os outros não sejam; os dois são; aí está a unidade do ser. Porém uns são reais e outros são ideais.
Ou por acaso pretendem estes filósofos monistas ou identificistas que não haja mais do que um só modo de ser? Mas então tornaríamos a recair infalivelmente em todas as complicações e contradições do ultra-realismo e do ultra-idealismo. Porque a única unidade não pode ser uma unidade de identidade, antes tem que ser uma unidade de analogia, de conexão, de compenetração, que permita a diversidade; porque o ser é, porém é ao mesmo tempo diverso.
Mas não somente vimos que na nossa enumeração das categorias, nas duas regiões, a primeira das categorias, em ambas regiões, foi o ser, senão ademais, vimos que nossa chegada à região dos objetos ideais se deu porque a ela nos levou o aprofundamento na camada dos objetos reais. Quando descrevemos as camadas sucessivas do mundo dos objetos reais, passamos das coisas com que vivemos e manejamos, que temos à mão, a torná-las problemas: o que é isto? O problema era o anúncio de que havia uma essência por descobrir lá dentro. A ciência vem depois descobrir essa essência, e isto que a ciência adquiriu, o que é? Pois isto é objeto ideal. Fomos conduzidos à segunda região pela simples penetração na profundidade dentro da primeira, ao término da qual e sem solução de continuidade, nos encontramos já na segunda. Isto quer dizer que entre as duas regiões há uma homogeneidade. Esse algo que já haviam visto Aristóteles e os escolásticos quando falavam do “ente”; que o termo “ser” não é como um gênero que tenha espécies, senão que cada uma das espécies do ser está incluída no ser, não como a espécie no gênero, mas por analogia entitativa.
O único momento um pouco difícil, ou dramático, vai ser quando cheguemos aos valores, a essa região ontológica que chamamos valores. Porque aí vamos tropeçar com uma estrutura ôntica tão particular, que é a estrutura ôntica em que a categoria de ser não se dá. Os valores não são. De modo que essa categoria estrutural do ser, que é a primeira que enumeramos para os objetos reais e para os objetos ideais, vamos ter que negá-la aos valores, sem que isso queira dizer, como talvez presumam os monistas ou identidistas, que tais valores se reduzem ao “não-ser”. [Morente]