Historicamente, conhecemos somente um princípio concebido para manter unida uma comunidade de pessoas destituídas de interesse em um mundo comum e que já não se sentiam relacionadas e separadas por ele. Encontrar um vínculo entre as pessoas suficientemente forte para substituir o mundo foi a principal tarefa política da primeira filosofia cristã; e foi Agostinho quem propôs edificar sobre a caridade não apenas a “fraternidade” cristã, mas todas as relações humanas. Essa caridade, porém, muito embora a sua desmundanidade [worldlessness] corresponda claramente à experiência humana geral do amor, é ao mesmo tempo nitidamente diferente dele por ser algo que, como o mundo, está entre os homens: “Mesmo os ladrões têm entre si [inter se] aquilo que chamam de caridade. [Contra Faustum Manichaeum, v. 5] Esse surpreendente exemplo do princípio político cristão é, de fato, muito bem escolhido, porque o vínculo da caridade entre as pessoas, embora incapaz de criar por si próprio um domínio público, é bem adequado ao princípio fundamental cristão da não mundanidade e admiravelmente apropriado para guiar por este mundo um grupo de pessoas essencialmente não-mundanas – um grupo de santos ou um grupo de criminosos –, bastando apenas que se conceba que o mundo está condenado e que toda atividade será nele realizada com a ressalva quamdiu mundus durat (“enquanto dura o mundo”). [Esse é ainda, naturalmente, o pressuposto mesmo da filosofia política de Tomás de Aquino (cf. Suma teológica, ii. 2. 181. 4)] O caráter apolítico, não-público, da comunidade cristã foi bem cedo definido na exigência de que deveria formar um corpus, um “corpo” cujos membros teriam de relacionar-se entre si como irmãos de uma mesma família. A estrutura da vida comum foi modelada pelas relações entre os membros de uma família porque estas eram sabidamente não políticas e mesmo antipolíticas. Jamais existiu um domínio público entre os membros de uma família, e era, portanto, improvável que viesse a surgir da vida comunitária cristã, se esta fosse governada pelo princípio da caridade e por nada mais. Ainda assim, como sabemos por meio da história e das regras das ordens monásticas – as únicas comunidades nas quais se chegou a experimentar o princípio da caridade como um expediente político –, o perigo de que as atividades realizadas sob a “necessidade da vida presente” (necessitas vitae praesentis) [Tomás de Aquino, Suma teológica, ii. 2. 179. 2] levassem, por si mesmas, porque exercidas na presença de outros, ao estabelecimento de um contramundo, um domínio público no interior daquelas mesmas ordens, foi suficiente para demandar regras e regulamentos adicionais, dos quais o mais relevante em nosso contexto foi a proibição da excelência e do subsequente orgulho. [Conferir o artigo 57 da regra beneditina, em Levasseur, Histoire des classes ouvrières et de l’industrie en France avant 1789 [1900], p. 187: se um dos monges passava a sentir orgulho da sua obra, era forçado a abandoná-la.] [ArendtCH 7]
Agostinho (A cidade de Deus, xix. 19) vê no dever de caritas em relação ao utilitas proximi (“o interesse do próximo”) a limitação do otium e da contemplação. Mas, “na vida ativa, não são as honras e o poder desta vida que devemos almejar (…), mas o bem-estar daqueles que estão abaixo de nós [salutem subditorum]”. É óbvio que esse tipo de responsabilidade assemelha-se mais à responsabilidade do chefe de família em relação à sua família que à responsabilidade política propriamente dita. O preceito cristão de que cada um cuide de seus próprios negócios provém de I Ts 4, 11: “que procureis viver uma vida tranquila e que trateis de vossos negócios” (prattein ta idia, onde ta idia é entendido como o oposto de ta koina [“assuntos comuns públicos”]). [ArendtCH, 8, Nota]