Beatitudes

— Sermão da Montanha

Frithjof Schuon: O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA

O Véu que se abre suavemente representa a acolhida em alguma bem-aventurança; o Véu que se abre de forma brusca — ou o rasgamento do Véu — significa, pelo contrário, um fiat lux súbito, uma iluminação deslumbrante, um satori como diriam os zenistas, caso não seja — na escala cósmica — um dies irae: a irrupção inesperada de uma Luz celeste simultaneamente vingadora e salvadora, enfim equilibrante. Quanto ao Véu que se fecha de forma suave, ele o faz caridosamente e sem intenção de rigor; se, pelo contrário, se fecha bruscamente, representa uma desgraça.
A virtude una, ou a devoção substancial, é repousar no Ser, simultaneamente transcendente e imanente, estando sacramentalmente presente hic et nunc. Por participar da sua própria essência, toda virtude é uma forma de adoração e, portanto, de bem-aventurança.
…a Infinidade é, de certa forma, a aura do Absoluto, ou Maya é a shakti de Atma e, consequentemente, toda hipóstase do Real absoluto — qualquer que seja o grau — faz-se acompanhar de uma resplandecência que poderíamos procurar definir com a ajuda das noções de “harmonia”, de “beleza”, de “bondade”, de “misericórdia” e de “bem-aventurança”.

François Chenique: O IOGA ESPIRITUAL DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

No Antigo Testamento, a bem-aventurança é a do homem piedoso, que observa a Lei de Deus e medita sobre ela dia e noite1; o Novo Testamento abre-se com o Sermão da Montanha e com as bem-aventuranças (Mat. V, 1-12), que são os frutos perfeitos2 das virtudes e dos dons do Espírito Santo entre os cristãos3.

— A primeira bem-aventurança (os pobres de espírito) corresponde ao dom do Temor, pois o que teme a Deus não procura toe glorificar, nem ser glorificado pelos seus bens materiais.

— A segunda bem-aventurança (os mansos) corresponde ao dom da Piedade, que cria em nós uma afeição verdadeira por Deus e pelo próximo.

— A terceira bem-aventurança (os que choram) corresponde ao dom da Ciência, porque os que são enganados pelas criaturas adquirem a verdadeira ciência de Deus.

— A quarta bem-aventurança (os que têm fome de justiça) corresponde ao dom da Força, porque a busca insaciável das obras de justiça pressupõe uma força divina.

— A quinta bem-aventurança (os misericordiosos) corresponde ao dom de Conselho, que nos mostra a caridade para com Deus e o próximo como a mais importante das virtudes.

— A sexta bem-aventurança (os corações puros) corresponde ao dom da Inteligência, que nos abre para a contemplação das coisas divinas.

— A sétima bem-aventurança (os pacíficos) corresponde ao dom da Sabedoria, que dispõe todas as coisas para seu fim supremo e as pacifica, impondo-lhes a ordem desejada por Deus.

— A oitava bem-aventurança (os perseguidos) confirma as sete bem-aventuranças precedentes, porque elas pressupõem, todas, uma certa forma de perseguição ou de sofrimento.

As bem-aventuranças são como que o sinete divino na alma, testemunho da ação dos dons e sinal visível do progresso espiritual. Eis como Santo Boaventura, citando Hughes de Saint-Victor, explica os três graus do caminho do conhecimento: “A , avançando em três etapas, dirige-se e sobe para a sua perfeição: de início ela acolhe a doutrina segundo a piedade; a seguir ela a aprova segundo a razão; enfim, ela a apreende segundo â verdade. A partir disso tem-se a impressão que também é tríplice a forma de saber: primeiramente, a confiança de uma aprovação piedosa; em segundo lugar, a aprovação de uma justa razão; em terceiro lugar, o uso da contemplação pura. Um se refere à posse e ao uso de uma virtude que é a ; o outro, à posse e ao uso de um dom, o da inteligência; o último, à posse e ao uso de uma bem-aventurança, que é a pureza de coração4.

Enfim, Deus pode ser interpretado e conhecido pelos cinco sentidos espirituais, que são funções especiais dos dons de Inteligência e Sabedoria5. Eis o que escreve Santo Agostinho, em suas Confissões: “Que é que eu amo, quando vos amo? não é a beleza dos corpos, nem sua graça perecível, nem o brilho da luz — essa luz tão cara a meus olhos —, nem as doces melodias das cantilenas em tons variados, nem o suave perfume das flores, nem o maná, nem o mel, nem os membros feitos para os abraços da carne. Não, não é tudo isso que eu amo, quando amo meu Deus. Contudo, é uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço, que eu amo, quando amo meu Deus: é a luz, a voz, o perfume, o alimento, o abraço do homem interior que está em mim, lá onde resplandece para a minha alma uma luz que não tem limites, onde se desenvolvem melodias que o tempo não leva consigo, onde se exalam perfumes que o sopro do vento não dissipa, onde se toma um alimento que voracidade alguma faz desaparecer, e há abraços que saciedade alguma possa desfazer; eis o que amo, quando amo meu Deus!”6.

São Boaventura explica assim a função dos sentidos espirituais: “Os sentidos espirituais designam percepções mentais da verdade contemplada. Essa contemplação existiu nos profetas, pela revelação, em tríplice visão, corporal, imaginativa e intelectual; nos outros justos, ela parte da especulação que começa nos sentidos e vai ter à razão, da razão ao intelecto, da inteligência à sabedoria, ou conhecimento excessivo que começa nesta vida e se completa na glória eterna”7; depois ele declara: “Então, o homem está preparado para a contemplação, para a visão e para o abraço do esposo e da esposa, que aparecem quando ele possui os sentidos espirituais pelos quais vê a soberana beleza de Cristo esposo sob o aspecto do Esplendor, ele ouve a harmonia soberana sob o aspecto do Verbo, saboreia a doçura “soberana sob o aspecto da Sabedoria, que compreende os dois aspectos precedentes, o Verbo e o Esplendor, ele cheira o perfume soberano sob o aspecto do Verbo inspirado no coração, ele abraça a soberana suavidade sob o aspecto do Verbo encarnado que habita em nós corporalmente, deixando-se tocar, abraçar, estreitar pela caridade ardente, que através do êxtase e do transporte leva nosso espírito a passar deste mundo para o Pai”8.





  1. Salmo I: Bem-aventurado o varão que não se deixou ir após o conselho dos ímpios, e que não se deteve no caminho dos pecadores e que não se assentou na cadeira da pestilência, mas sua vontade está posta na Lei do Senhor, e na sua Lei meditará de dia e de noite

  2. Dizemos “frutos perfeitos” para os distinguir dos frutos enumerados segundo Gal. V, 22-23, e do qual já falamos na meditação correspondente ao caminho da devoção. Para uma discussão sutil desses pontos, v. S. Teo. I, II, q. 70

  3. Existem vários sistemas de correspondência entre os dons e as bem-aventuranças; seguimos aquele comumente tirado de São Tomás, que cita, com frequência, opiniões diferentes da sua. As referências estão na IIa IIae para as sete bem-aventuranças: q. 19, a. 12; q. 121, a. 2; q. 9, a. 4; q. 139, a. 2; q. 52, a. 4; q. 8, a. 7; q. 45, a. 6; para a oitava bem-aventurança: I, II, q. 69, a. 3, ad 5 e q. 69, a. 4, ad. 2; v., igualmente, J. Goettmann. Tobie, cap. XVII: Das bem-aventuranças do peregrino de Jerusalém.

    São Boaventura desenvolve as mesmas correspondências em Breviloquium, 5.a parte, c. 6, n. 5: “O temor dispõe, pois, à pobreza de espírito. A piedade dispõe à doçura, porque aquele que ama alguém não o irrita e não é irritado por ele. A ciência dispõe às lágrimas, porque sabemos, pela ciência, que estamos afastados do estado de beatitude, neste vale de miséria e de lágrimas. A força dispõe à fome de justiça, porque o que é forte prende-se tão avidamente à justiça, que prefere deixar a vida corporal e não deixar a justiça. O conselho dispõe à misericórdia e coloca esse ato acima de todos os holocaustos. A inteligência dispõe à pureza de coração, porque a especulação da verdade purifica nosso coração de todas as imaginações. A sabedoria dispõe à paz, porque a sabedoria nos une ao verdadeiro e ao bem soberano nos quais se encontram o fim e a tranquilidade de todo o nosso vivo desejo racional”. 

  4. Sermão: Único é vosso Mestre, o Cristo; Bougerol. Op. cit., p. 72. São Tomás (I, II, q. 69, a. 3 e 4) nota que as três primeiras bem-aventuranças voltam-se contra a vida voluptuosa; as riquezas e as honras são substituídas pelo Reino dos Céus (1.° b.), as paixões mundanas são substituídas pela posse tranquila da terra (2.° b.), as tristes consequências das paixões são substituídas pela consolação divina (3.° b.). As duas bem-aventuranças seguintes referem-se à vida ativa: cumprir as obras de justiça (4.° b.), o que supõe certa fome de justiça, e amar ao próximo (5.° b.), que nos faz amar a Deus. As duas últimas bem-aventuranças referem-se à vida contemplativa: a pureza de coração (6.° b.) dispõe à visão divina, e a paz com o próximo (7.° b.) é a marca dos imitadores de Deus

  5. Não se deve confundir o sentido espiritual com o sentido imaginativo: estes são usados em algumas formas de contemplação; v., por exemplo, a aplicação dos cinco sentidos ao mistério da Natividade, no início da segunda semana dos exercícios de Santo Inácio. Ao dom da Inteligência estão ligados a vista e o ouvido espirituais; ao dom da Sabedoria estão ligados o paladar, o olfato e o tato espirituais. 

  6. Confissões, 1, cap. VI, trad. Labriolle, ed. Les Belles Lettres. São Boaventura oferece um texto muito belo sobre os sentidos espirituais em Itinerarium (IV, 3), onde ele os liga às três virtudes teologais, e onde deixa bem claro que se trata de um dom, é mais de uma experiência do coração do que de uma consideração racional

  7. Breviloquim. 5.a parte, cap. 6, n. 7. 

  8. Ibid., n. 6. V. também as notas, muito abundantes e muito ricas, da quinta parte do Breviloquium das Éditions franciscaines, p. 144-47.