O ser histórico apresenta as seguintes características:
1) Em todo fato que acontece, há a presença do passado. Tudo quanto acontece é um possível de ser e, como tal, está contido no prometeico de alguma coisa, ou de muitas, já que nenhum acontecimento vem do nada absoluto. (O prometeico é o que se refere ao possível vir-a-ser das coisas, e epimeteico possível não atualizado e naturalmente não mais atualizável).
2) O acontecer é real; ou seja, é res; tem uma entidade e não puro nada, pois se fosse um puro nada seria nada de acontecer.
3) É o ser histórico algo que é real, que acontece ou aconteceu, que não é um mero nada e é objeto da disciplina que lhe é correspondente: a história in latu sensu.
4) O ser histórico de um fato permite a sua redução a um eidos, a uma forma esquemática, que nossa mente pode construir.
5) O ser histórico implica uma problemática complexa em relação à sua existencialidade. O ser que existe é o ser no pleno exercício de si mesmo. Uma possibilidade pode ser histórica, enquanto tem ela um fundamento em algo que realmente aconteceu. Os possíveis históricos atualizáveis e suas consequências podem ser tema de ficção com base em reais possibilidades. O que caracteriza o ser histórico o não é, pois, a sua existencialidade efetiva, mas o ser passível de outros aspectos.
6) Os fatos históricos tem uma estrutura ontológica, pois são redutíveis eideticamente e revelam a presença de uma lei de proporcionalidade intrínseca; ou seja, uma forma, um eidos, o que permite construir uma ontologia da história.
7) O fato histórico ao ser comparado com o fato ético permite uma distinção. A história é uma disciplina ética, sem dúvida. Mas o fato ético é aquele que revela um dever–ser (sollen), é o fato que se atualiza segundo a imperiosidade de um ter-de-ser (de habeo, debeo). É o fato ético frustrável por natureza, como também há frustação nos fatos históricos. Mas há fatos que pertencem à física, à meteorologia, à geografia, que influem na história. Foi a erupção do Vesúvio um fato histórico em relação a Pompeia e Herculanum, ou não? E se o fato histórico é apenas o fato humano, é ele consequentemente sempre um ato ético?
8) Consequentemente, como decorrência desta problemática, é o fato histórico frustrável, ou podemos distinguir frustráveis de os não frustráveis? Se há fatos históricos não frustráveis, teremos de admitir que há alguma positividade no historicismo.
9) O fato histórico, como fato, tem uma “estrutura” existencial. E como toda existência é singular, tal afirma a singularidade do fato histórico, sem que a afirmação negue uma eideticidade e, portanto, uma repetibilidade por parte de outros fatos históricos, que participem da mesma eideticidade.
10) Ele tem uma certa morfologia, um aspecto figurativo, uma forma extrínseca, portanto. Daí uma Morfologia da História.
11) Aceita a distinção entre o fato histórico e o fato ético, é mister apontar a especificidade distinta daquele em relação a este.
12) O fato histórico permite uma descrição. Enquanto descrito é o que chamamos historial, equivalente à novela real, que se opõe à novela fictícia. O fato histórico é uma res facta, e a novela fictícia uma res ficta.
13) Se o fato histórico tem um eidos, é possível construir uma fenomenologia da história. Ora tudo quanto é, que tem uma unidade, tem um eidos. Se os fatos históricos, em sua materialidade, são irrepetíveis (como singularidades), e tem necessariamente um eidos, este é repetível em outros que dele participem. O eidos pode ser alcançado pelo processo abstrativo.
14) Seignobos afirma que o fato histórico é um fato posicional, que intrinsecamente não é histórico, mas apenas extrinsecamente, segundo o modo de ser considerado ou de ser conhecido, não sendo intrinsecamente histórico. Não há o histórico quoad se (quando a si mesmo) e só apenas quoad nos (quanto a nós)?
15) O histórico dá-se na sucessão, logo no tempo. Sem o tempo, não haveria história.
16) Para Seignobos, a história seria apenas um modo de conhecimento, seria apenas quoad nos (nós é que lhe emprestamos a historicidade). Neste caso, o ser histórico é ser acidental e extrínseco. Consequentemente não há fatos históricos, mas apenas um conhecimento histórico dos fatos, para tal autor.
17) O fato histórico é um fato existencial, portanto podemos falar de uma onticidade dos fatos históricos.
18) Constitui o ser histórico “o que deixou de existir”, mas o que deixou de existir é algo que já foi existente, é algo que conhecemos como passado, mas que já foi presente e que, como tal, não consistia em ser passado, mas em ser presente. Então, vê-se que o em que consiste o fato histórico era algo que não era passado. Portanto, o ser passado não é da consistência do ser histórico, mas apenas do seu fluir. O fato histórico é algo que flui, não é, porém, mera fluência, pois se mera fluência seria não ser nada, e ele é alguma coisa real.
19) Seignobos afirma que há contradição na expressão ser histórico, porque se afirma que é ele presente e também que é algo passado. Mas a contradição é aparente, porque quando se diz passado, diz-se passado, e quando se diz presente, diz-se presente. Mas passado e presente não são entidades em si mesmas, mas algo que se dá no fluir das coisas. Pode ademais, alguém que assiste a um fato, no instante do pleno exercício de si mesmo, senti-lo como algo histórico.
20) O ser histórico é afirmação de uma entidade. Se se diz que o que já aconteceu nada é, dir-se-ia que o que é sendo, ao deixar de ser o que é sendo, tornar-se-ia nada, e aniquilar-se-ia. Mas o ter-sido de algo, que é sendo, é uma contínua ligação do que é com seus antecedentes, dos quais pende realmente (suas causas) e o que já foi não é um mero nada, mas algo que já foi sendo do que é agora-sendo, embora sendo outro que o que já foi.
O histórico tem, assim, uma objetividade contra a posição de Seignobos.
21) Se o ser histórico não fosse objetivo não teria valor nenhum o seu conhecimento, o que contradiz a tese de Seignobos.
22) O ser não é apenas o ser atual, mas também o ser potencial, o que nele está para ser, dentro da sua especificidade, ou como elemento de um outro ser com outra informação.
23) Consequentemente, não se deve confundir o histórico com o passado, porque o passado é o sido de algo, enquanto o histórico é o presente do que já é passado.
Deste modo, a história estuda os fatos passados que pervivem no presente, que tem certa persistência ontológica no presente.
24) O histórico, além de sua singularidade, afirma a sua exclusividade, a sua excepcionalidade; é algo que é outro que outro (aliud ad aliud). Nele há ainda o histórico; ou seja, é mister distinguir o que é substancialmente histórico do que é especificamente histórico, como substantivo e como adjetivo na linguagem gramatical. No fato histórico, há a historicidade. O histórico do histórico é a historicidade daquele.
25) O fato histórico não é algo que se dá solto, mas algo entrosado com outros (coexistência histórica), e penetra no presente (vinculação histórica), algo que não tem mais uma existência atual, mas uma existência virtual que permanece, como o sentiu Lindner.
26) Os filósofos pouco se dedicaram ao estudo ontológico do fato histórico.
27) A persistência do fato histórico no presente revela que não é ele totalmente passado. O passado histórico é uma certa presencialidade do que já foi. Pelo histórico, o passado pervive no presente.
28) Deste modo, o fato histórico tem duas atualidades: a que constitui o seu presente e a sua permanência no futuro.
29) Assim, o fato histórico não é apenas o epimeteico de algo, ou do que o constitui, mas é esse epimeteico quando ainda presente de certo modo.
30) Por isso não se pode reduzir o histórico ao mero ato e potência, porque o ultrapassa. O ato é o “ser já”, e potência “o que ainda não é e pode vir-a-ser” e isso é distinto do “ser que já foi, mas ainda é” ou do “não–ser-já que de certo modo é ainda”.
31) O ser histórico é, portanto, um ser de existência virtual, que insiste, sem uma existência entitativa.
32) Está desde modo esboçada a problemática do ser histórico. Passemos aos exames, antes de esboçarmos a teoria ontológica do ser histórico.
a) Os medievalistas entendiam por ser a actualitas omnium rerum et etiam ipsarum formarum (a atualidade de todas as coisas e inclusive das próprias formas). Para Suarez, ser é aptidão para existir; ou seja, tudo quanto tem a capacidade de poder ser no pleno exercício de seu ser.
b) É inegável que no presente pervive o passado, porque do contrário haveria um hiato, um abismo separando o que já foi do que é-já, e o que é-já teria vindo do nada, o que é absurdo.
c) O presente não é, pois, algo que apenas sobrevém, mas algo que está prenhe do que já foi, que contém, implica, supõe e é constituído do que de certo modo já foi. Este passado condiciona o presente, e lhe é necessário, pois sem ele este não-pode-ser.
d) O passado é algo que deixou de ser presente, mas que ainda é de certo modo e não totalmente o que já foi. O histórico revela, assim, uma síntese do passado, pervivendo no presente e construindo o futuro. O histórico é um testemunho da perdurabilidade do ser.
e) No mixton (no misto, como o químico), há a permanência virtual do que já foi, como na água o hidrogênio está virtualizado enquanto tal, não aniquilado como tal. Essa pervivência encontramo-la na técnica, nas realidades étnicas, nas realizações humanas, no direito, na religião, etc., que revelam a pervivência, na esquemática geral, do que já foi e que ainda é. Há algo que permanece, pois no mixton, há uma interatuação (modificações mútuas dos elementos componentes, especificamente distintos, que permanecem virtualizados; ou seja, não permanecem em toda a sua intensidade específica).
f) O histórico está, portanto, formal e virtualmente no presente. É, pois, a presença da existência virtual do passado conservado no presente.
g) O fato histórico é um todo tensional e, como todo, é parte de outro todo. É um complexo de atualidade e virtualidade existencial (historicidade) no acontecer do que é. Assim, no fato histórico, há a parte atual e a parte histórica: o histórico está repleto de historicidade que interliga assim os fatos que se dão sucessivamente.
h) A história é um fluir sem ser um simples fluir, pois apresenta períodos, fases, estágios, ciclos, movimentos, etc.
i) Os fatos históricos são inconfundíveis, embora apresentem correspondências e analogias; ou seja participações com formas que permitem classificá-los
j) Onde há uma continuidade, há um suporte. Ora, há uma continuidade histórica, logo há um suporte.
k) Não é o fato histórico tudo na história. Esta é um todo e, como todo, é distinta tensionalmente das formas que o compõem (aliud ad aliud).
l) Há, no histórico, fatores que não são propriamente históricos, que se dão fora daquele, embora com sua historicidade própria. A parte é a matéria do todo.
m) É inegável a unicidade do histórico. Como decorrência, temos a irreiterabilidade.
n) O histórico permanece na sucessão. O fato histórico é a substância primeira (matéria) da história, é a matéria pressupositiva do histórico. Consequentemente, como a matéria não é causa eficiente, o fato histórico não é causa eficiente da história. Cabe ao verdadeiro historiador procurar a causa eficiente, sobretudo da humana, e também a causa final, se há nelas uma meta.
O histórico é formalmente virtualidade do passado que tem uma nova atualidade tensional. Mas a matéria pode ser considerada de dois modos: materia ex qua = matéria prima; materia in qua = substância composta (matéria prima e forma). A matéria é matéria de, o que revela a sua funcionalidade.
O fato histórico não é materia in qua, porque nenhum fato é sujeito de outro, nenhum é acidente de outro que fosse sua substância. Esses fatos só podem ser materia ex qua, pois constituem elementos do composto histórico, e determinam de certo modo o presente, e não são determinados por estes. Como decorrência, deve evitar-se a hipostasiação do fato histórico, como se fosse uma entidade subsistente in se, como alguns historiadores o fazem.
Decorre daí uma série de postulados, que tem suficiente fundamentação:
I) Não é o fluir histórico um verdadeiro fieri (devir), porque os fatos não mudam, eles apenas acontecem. Não são entes em movimento. Há mudança dos fatos e não nos fatos. São como foram. Salientava Tomás de Aquino que o histórico não se dá de um termo, que é via ou meio, para outro, mas de um termo que se abandona para alcançar outro (aliud).
II) Os fatos históricos, enquanto epimetêicos, são irreversíveis.
III) Os ciclos históricos estão justificados, sem que tal implique uma plenitude absoluta, mas apenas relativa.
IV) Na história, há a presença mútua das partes componentes.
V) O pretérito influi no presente. Nesse postulado há uma limitação da irreversibilidade histórica, apenas no sentido de que o passado de certo modo perdura no presente.
VI) A sociologia não atenta para os valores históricos, que são distintos dos valores sociológicos.
VII) A distinção entre os fatos cronológicos e os históricos é que nos fatos cronológicos, a ordenação é extrínseca; enquanto, nos históricos, a ordenação é intrínseca. O histórico é mais rico que o fato cronológico tomado abstratamente, porque há acrescentamento.
VIII) O passado não é puro passado, porque o presente já preexistia de certo modo nele, na atualidade entitativa do passado. O passado e o futuro se identificam na ordenação do presente, onde se presencializam, adquirindo onticidade. Não há diácrises propriamente entre o passado-futuro-presente, que são existenciais na temporalidade. Não há contradição na expressão “ser futuro”, e também não há identidade entre não–ser e ser-passado. Impõe-se afastar da ideia de futuro a de por ou de porque, pois do contrário, a marcha histórica seria uma marcha do futuro através do presente. Nesse caso, a estrutura ontológica do histórico seria a regressividade. Contudo, há algo regressivo sem dúvida, pois o presente está prenhe de passado e de futuro. A liberdade é a capacidade de dispor do futuro. De certo modo, a ideia do futuro é negativa, porque há nele um não–ser, sem que se possa dizer que é não ser puro. É o que ainda não é presente. É já um ainda não ser presente. Parece um paradoxo o que afirmamos; no entanto não é, pois o futuro é já futuro; ou seja, é já o que pode ainda ser. E tanto é assim que o futuro, quando começa a ser, deixa de ser futuro, sem deixar de ser, pois afirma, quando se presencializa, que fora futuro.
Também por isso se pode dizer que o presente é um futuro-sido. O futuro não se identifica com o não–ser-ainda, salvo se se alude ao ser ulterior, pois quando o futuro é já, deixa de ser futuro. Não é um puro ente de razão, nem um mero possível, pois o futuro é o que tem de vir-a-ser, do contrário não será futuro, assim como o passado tinha de ser-sido, pois do contrário não seria passado. O histórico não é apenas o passado, mas o passado que tinha de ser-sido que ainda-é. Só é futuro, pois, o que pode deixar de ser tal. Parece outro paradoxo, contudo não é. O caráter ontológico do futuro é o deixar de ser tal para ser já.
O passado não pode deixar de ser passado. O presente pode deixar de ser presente. Mas o futuro tem de deixar de ser futuro. No entanto, há de haver um futuro que nunca deixará de ser futuro, a não ser que se aniquilasse a temporalidade. O passado é o futuro do presente.
O presente é o passado do futuro, porque só há o presente quando o futuro deixou de ser tal. E é o futuro do passado, porque o presente sucede ao passado. Contudo o futuro não é o presente do passado, e não o é porque é mais rico que os outros, já que contém todas as possibilidades, as que se atualizarão e as que não se atualizarão. A necessidade existencial do futuro não impede a contingência, porque tudo quanto é futuro é de certo modo contingente. Contingente é o ser que, para ser, exige uma causa eficiente, do contrário permanece sendo o que apenas pode ser. O futuro indica que há contingentes que serão atualizados; contudo não exige propriamente que seja este ou aquele. A contingência não significa irrealizabilidade total, mas apenas ausência de necessidade absoluta. O presente afirma a presencialização de um poder-ser e não de um puro–ser que se existencializou. Contudo pergunta-se: há, no presente, uma presença ontológica do passado, do qual decorra a probabilidade de um determinado futuro? Não há futuros necessários? Não há a disposição prévia de certos fatores, que determinarão um advento determinado, uma determinação análoga à mecânica? Realmente há. Mas, por exigir o contingente uma causa eficiente, dada esta, deve dar-se o que dela depende realmente. Mas o que surge é um ser contingente e, portanto, que poderia não ser. Neste caso, o futuro contingente admite uma probabilidade de frustração por uma causa eficiente superior. Essa possibilidade é que fundamenta a concepção da providência divina na história. Se há uma causa eficiente superior e causas eficientes secundárias, subordinadas àquela, poderia ela, então, intervir na frustração de um fato posterior.
IX) A liberdade implica a eleição entre possíveis e afirma que o ser, que é portador dela, é intrinsecamente capaz de futuro.
X) A frustrabilidade, provinda de uma causa eficiente superior, extra-naturam, e a que decorre da vontade humana, da sua liberdade, negam um determinismo rígido à história humana.
Ademais, a aceitação de um determinismo rígido seria a negação da história. E a razão é simples: o futuro é possível e os possíveis implicam, simultaneamente, a contradição, pois o possível de ser é também o possível de não–ser. O determinismo rígido negaria o possível de não ser, e negaria consequentemente o possível, porque no conceito deste está incluso o de poder ser. O determinismo rígido negaria o futuro, que nada mais seria que o presente estendido. Realmente, tudo quanto acontece, examinado reversivamente, afirma a dependência real de antecedentes, suas causas. É assim hipoteticamente necessário. Mas tudo quanto é futuro, é finito, e o que é finito é contingente. Para que o futuro fosse absolutamente necessário não poderia ser ele outra espécie de ser que o que é de per si (com perseidade), cuja razão de ser estaria em si mesmo. Neste caso, o futuro já não seria futuro, mas um ser absoluto, que não teria em outros sua razão de ser. Como não é desse modo, é contingente e, portanto, sua presencialização não é absolutamente necessária. Logo, como consequência apodítica, o determinismo rígido negaria o histórico.
O futuro é apenas hipoteticamente necessário e não absolutamente necessário. O determinismo rígido afirmaria o simplesmente necessário, ou a necessidade absoluta do futuro determinado, o que é absurdo, porque é aquele um ser contingente, já que seu ser consiste em ser o que ainda não é. [MFSDIC]