relações

(gr. to pros ti; lat. ad aliquid, relatio; in. Relation; fr. Relation; al. Relation; it. Relazioné).

Modo de ser ou de comportar-se dos objetos entre si. Esta definição não passa de esclarecimento verbal do termo, que não pode ser definido em geral de outro modo, ou seja, fora das interpretações específicas que os filósofos lhe deram. Esta é, aliás, a definição retificada que Aristóteles deu da relação: como aquilo “cujo ser consiste em comportar-se de certo modo para com alguma coisa” (Cat., 7, 8 a 33), o que coincide substancialmente com a definição de Peirce: “relação é um fato em torno de certo número de coisas” (Coll. Pap., 3-416).

Os dois problemas fundamentais oriundos do conceito de relação, de cuja solução dependem as determinações do próprio conceito, são os seguintes: 1) Devem ser consideradas incluídas, no conceito de relação, as determinações substanciais (essenciais ou qualitativas), ou tais determinações devem ser excluídas do conceito? 2) As relações constituem entidades reais ou são apenas realidades mentais? Esses problemas, obviamente, são interdependentes, e com base nas respostas interligadas que lhes foram dadas ao longo da história é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) a que admite a objetividade e a realidade das relações; B) a que nega a realidade e a objetividade das relações; C) a que admite a objetividade das relações, mas não sua realidade.

A) Platão certamente admitiu a objetividade das relações, mas é duvidoso que admitisse sua realidade: “Creio que admites que, de alguns dos entes, se deve dizer que são unicamente por si, enquanto, de outros, que estão sempre em relação com outros” (Sof., 255 c-d). No entanto, os entes em relação, assim como o diferente e o idêntico, não são o ser (Ibid., 255 c-d): isso também poderia significar que eles não têm existência ou realidade como tais. A doutrina de Aristóteles é igualmente confusa neste ponto. Ele distinguiu três espécies de relações: 1) as quantitativas, como as expressas por dobro, metade, etc; 2) as potenciais, que consistem numa potência ativa ou passiva, como ser causa ou causado, cortar ou ser cortado, etc; 3) as relações que têm termo num objeto real, como a medida com respeito ao mensurável, o conhecimento com respeito ao cognoscível, a sensação com respeito ao sensível (Met., V, 15, 1020 b 25). A primeira espécie já parece implicar a existência de relações reais (as da segunda e da terceira espécies); na realidade, o próprio Aristóteles diz que “algumas relações acham-se necessariamente dentro ou em torno das coisas às quais se referem”, e que “tal é o caso da simetria, da propriedade e da disposição” (Top., IV, 4, 125 a 33). No entanto, boa parte do capítulo das Categorias dedicado às relações discute o problema de saber se entre as relações há substâncias; a conclusão, embora não categórica, é negativa: certamente nãosubstâncias primeiras entre as relações, e também é difícil dizer que as substâncias segundas sejam relações (Cat., 7, 8 b 15). Além disso, um dos argumentos aduzidos por Aristóteles contra a doutrina das ideias é o fato de que ela levaria a admitir a realidade das relações: “A relação não é sobretudo natureza ou substância; vem depois da qualidade e da quantidade e é, antes, uma determinação da quantidade, como se disse, mas não matéria” (Met., XIV, 1, 1088 a 21). Neste caso, Aristóteles considera, evidentemente, apenas as relações da primeira espécie, mas a sua afirmação não é condicionada por qualquer limitação. Não admira, portanto, que depois tenham recorrido a Aristóteles tanto os que afirmavam quanto os que negavam a realidade das relações Plotino reproduz a doutrina de Aristóteles com as mesmas confusões (Enn., VI, 1, 6). A escolástica cristã estilizou-a na distinção entre relação de razão, relação potencial e relação real, o que corresponde exatamente às espécies distintas por Aristóteles. Mas, por motivos teológicos, a escolástica cristã tinha interesse em admitir a realidade das relações, utilizando esse conceito para esclarecer o dogma da trindade; essa era a tese defendida por Tomás de Aquino contra “os que afirmaram não ser a relação coisa de natureza, mas somente de razão”, o que ele declarou falso porque “as coisas têm uma ordem ou uma disposição natural umas com respeito às outras” (S. Th., I, q. 13, a. 7). Com base nisso, Tomás de Aquino reexpôs as distinções de Aristóteles, defendendo o caráter real das relações em que consistem a ciência e a sensibilidade, porquanto tais relações “são ordenadas para conhecer e perceber as coisas” (Ibid.). As relações de razão são somente aquelas em que ambos os termos são entes de razão; são as relações existentes “quando a ordem ou a disposição só pode existir segundo a apreensão da razão, como no caso de se afirmar que uma coisa é idêntica à outra” (Ibid.). Mas afirmar a realidade das relações significa privilegiar certo tipo de relação, moldando todas elas de acordo com a segunda e a terceira espécie de Aristóteles; mais precisamente, significa considerar qualquer tipo de relação como uma potencialidade ou disposição, ou como uma condição ou um estado dos termos relativos. No fim do séc. XIII, Duns Scot insistiu nessa natureza da relação, propondo a doutrina da relação como respectus, termo que pretende traduzir a palavra grega skesis (usada, por exemplo, por Simplício, Ad Cat., 61 B) e significa disposição. O principal argumento aduzido por Scot em favor de sua teoria era que, a não se admitir tal respectus, não é possível compreender a composição dos entes, visto que, se a união de a e b não passa de a e b absolutos, o composto de a e b em nada difere de a e b separados, logo não é um composto (Op. Ox., II, d. 1, q. 4, n. 5). Essa doutrina foi adotada por todos os escritores escotistas, mas combatida por Ockham e pelos nominalistas e terministas do séc. XIV (ver mais adiante). No séc. XVII, Jungius ainda recorria a tal doutrina, considerando a relação como habitudo ou respectus (Logica hamburgensis, I, 8, 4). Em época recente, o problema das relações foi tratado de modo semelhante ao de Duns Scot por F. H. Bradley, que mostrou que as relações só podem ser entendidas como atributos do relativo, consistindo portanto numa qualidade ou modificação dos termos relativos. Seja como for, a relação é incompreensível porque só faz predicar o idêntico com o diferente e o diferente com o idêntico (Appearance and Reality, 1902, 2a ed., pp. 21 ss.). Essa doutrina, conhecida como “doutrina das relações internas”, foi combatida especialmente pelos lógicos matemáticos.

B) A segunda doutrina fundamental das relações nega sua objetividade e realidade, considerando-as acidentais ou subjetivas. Foi proposta pela primeira vez por Avicena, que reproduzia um ponto de vista defendido pela seita maometana motakallimum, valendo-se de teses aristotélicas análogas. Avicena dizia: “Ao afirmar-se que uma relação existe, imediatamente é preciso dizer que ela é um acidente, porque nãodúvida de que não pode ser entendida por si, mas sempre de algo com respeito a algo” (Met., III, 10). Afirmar o caráter acidental das relações equivalia, para Avicena, a negar sua realidade, uma vez que, como acidentes, as relações não são substâncias. Quando essa doutrina foi retomada pelos filósofos nominalistas e terministas, no séc. XIV, assumiu a forma de redução da relação a pura “entidade de razão”, destituída de realidade ou fundamento fora da alma humana. Tal é a doutrina sustentada por Henrique de Gand (Quodl, IX, q. 3; V. q. 6), por Herveus Natalis (Quodl., I, q. 9) e por Pedro Auréolo. Este último afirmava: “A relação não tem existência nas coisas, prescindindo de apreensão intelectivo-sensível, mas existe subjetivamente apenas na alma, porquanto nas coisas só há fundamentos e termos: o hábito e a conexão das coisas deriva da alma cognoscitiva” (In Sent., I, d. 30, q. 1). Este foi também o ponto de vista defendido por Ockham, que instituiu uma crítica minuciosa da doutrina do respectus. Segundo ele, esta doutrina multiplicaria as entidades ao infinito: “Com o movimento do meu dedo, eu encheria todo o universo, o céu e a terra de novos acidentes, pois que, mudando a posição do dedo com respeito às outras partes do céu haveria outros tantos novos respectus nessas partes, que são infinitas, portanto haveria infinitos novos acidentes” (Quodl, VII, q. 8; In Sent., II, q. 2, Y). Todo corpo conteria, por motivos análogos, infinitas realidades, uma vez que todo corpo pode ser considerado duplo com respeito à sua metade, e esta metade pode ser considerada o dobro de sua metade, e assim por diante (Quodl, VI, q. 10; Summa Log., I, 50). No entanto, Ockham não afirma o caráter puramente mental das relações, como fizera Avicena (v. abaixo). Essa doutrina reapareceu no âmbito do cartesianismo. Foi defendida por Locke, que considerou as relações como ideias complexas, que consistiriam em “considerar e confrontar uma ideia com a outra” (Ensaio, II, 12, 7), e reconheceu explicitamente o caráter subjetivo delas, embora não excluísse a alusão às coisas. “Uma vez que os modos mistos e as relações não têm outra realidade além da que possuem no espírito humano, para tornar real essa espécie de ideias só é preciso que elas sejam forjadas de tal maneira que haja possibilidade de existência em conformidade com elas” (Ibid., II, 30, 4). Por sua vez, Leibniz afirmava que as relações têm realidade mental ou fenomênica (Nouv. ess., II, 12.7) e que, por conseguinte, “têm uma realidade dependente do espírito, tais como as verdades, mas não do espírito dos homens, porque há uma inteligência suprema que as determina em todos os tempos” (Ibid., II, 30, 4). Em conformidade com este mesmo conceito, Wolff definia a relação como “aquilo que não convém à coisa de maneira absoluta, mas que só é entendida quando se refere a outra coisa” (Log., § 856); e completava: a relaçãonão acrescenta nenhuma realidade ao ente” (Ibid., § 857). A subjetividade das relações, além disso, é o princípio fundamental do kantismo: “Se suprimíssemos nosso sujeito ou mesmo apenas a natureza subjetiva dos sentidos em geral, toda a natureza. todas as relações entre os objetos no espaço e no tempo, aliás, o espaço e o tempo mesmo desapareceriam” (Crítica da Razão Pura, § 8). Nesse mesmo princípio (aduzido na maioria das vezes de maneira implícita) baseia-se boa parte da filosofia contemporânea.

C) A terceira concepção fundamental considera que as relações não são reais, mas são objetivas. Ockham, que foi o mais resoluto crítico da realidade das relações, afirmara também, a seu modo, seu caráter objetivo: “Não é o intelecto que torna Sócrates semelhante a um outro, assim como não é o intelecto que o torna branco” (In Sent., I, d. 30, q. 1, P); isso significa que a relação, como intenção ou conceito da alma, refere-se a várias coisas isoladas ou é várias coisas isoladas, “assim como o povo é vários homens e nenhum homem é povo” (Ibid.). No entanto, nestas afirmações, assim como nas de Locke e de outros que insistiam na referência objetiva da relação (como conceito ou ideia), tal referência é entendida como referência à realidade.

A característica da doutrina moderna, nesse sentido, é que a objetividade da relação não implica sua realidade, ou seja, reconhecer que a relação é objetiva não implica que em todos os casos ela ocorra entre coisas ou entidades reais. Este sentido da relação está intimamente ligado ao sentido que o ser predicativo assumiu na lógica contemporânea (v. Ser). Desse ponto de vista a matemática e a lógica foram definidas como “ciências das relações” (v. lógica; matemática). Em particular, no que diz respeito à lógica, pode-se dizer que tanto o cálculo proposicional quanto o de classes versam exclusivamente sobre relações, porquanto são relações os conectivos (e, ou, não, se… então) de que trata o cálculo proposicional e as entidades de que trata a álgebra das classes. Contudo, o cálculo das relações também constitui um ramo específico da lógica contemporânea, ramo cujos avanços se devem especialmente a E. Schröder (Algebra der Logik, 1895) e a Peirce (The Logic of Relatives, 1897, Coll. Pap., 3.456-526). Neste sentido restrito, entendem-se por relações as funções proposicionais diádicas ou poliádicas (com duas ou mais variáveis), que são escritas na forma f(x, y) ou, mais frequentemente, x R y. As características mais gerais da relação neste sentido são as seguintes:

1) Se relação ocorre não só entre x e y, mas também entre y e x, diz-se que é simétrica. É simétrica, por exemplo, a relação entre dois irmãos. Caso contrário, é chamada de assimétrica. As R “antes”, “depois”, “à esquerda” são assimétricas.

2) Se R é tal que, quando x tem relação R com y e y tem relação R com z, também x tem a relação R com z, chama-se transitiva. São transitivas as relação “menor”, “precede”, “à esquerda”; é intransitiva a relação de paternidade.

3) Se R é tal que nenhum termo está em relação R consigo mesmo, a relação é chamada de aliorrelativa. São aliorrelativas as relação “irmão”, “marido”, “pai”, etc.

4) Se R tal que, dados dois termos diferentes do campo, x e y, pode ocorrer entre x e y ou entre y e x ou entre x e y e entre y e x, a relação é chamada de coerente. É coerente a relação “maior ou menor”; não é coerente a relação “antepassado”.

5) O termo x que tem relação R com um ou mais termos (y, z…) chama-se dominante, enquanto são chamados de dominantes inversos os termos com que o termo x tem a relação R, quais sejam, os termos y, z, etc. Na relação de “paternidade”, pai é dominante, “filhos” são dominantes inversos.

6) O campo de uma relação consiste no conjunto do dominante e dos dominantes inversos. No caso da relação de paternidade, o campo é o conjunto pai-filhos.

7) Diz-se que uma relação implica outra se esta é válida sempre que a primeira é válida.

Essas noções elementares definem a natureza objetiva, conquanto não real, das relação, na forma constantemente empregada pela lógica e pela matemática contemporâneas. Trata-se de características que generalizam ao máximo a noção de relação, permitindo incluir nela e esclarecer com ela os conceitos mais díspares (cf. Whitehead e Russell, Principia mathematica, vol. I, 1925). Para uma exposição sumária da noção das relação em função dos conceitos fundamentais da matemática, cf. Russell, Introduction to Mathematical Philosophy, 1918; trad. it., 1947. Quanto aos aspectos matemáticos, cf. W. v. O. Quine, Methods of Logic, 1942, especialmente o § 40. [Abbagnano]