A mesma tradição que associa o temperamento melancólico à poesia, à filosofia e à arte, atribui-lhe uma exasperada inclinação para o Eros. Aristóteles, depois de ter afirmado a vocação genial dos melancólicos, apresenta a luxúria entre as suas características essenciais:
O temperamento da bílis negra — escreve — tem a natureza do sopro… Disso provém que, em geral, os melancólicos sejam depravados, pois até o ato venéreo tem a natureza de um sopro. A prova é que o membro viril se incha improvisamente porque se enche de vento.
A partir desse momento, o desregramento erótico aparece entre os atributos tradicionais do humor negro [[A associação entre melancolia, perversão sexual e eretismo ainda aparece como sintoma da melancolia em textos psiquiátricos modernos, mostrando a curiosa invariabilidade da síndrome atrabiliária através dos tempos.]]; e se, analogamente, também o acidioso é representado nos tratados medievais sobre os vícios como “φιλήδονος”, e Alcuíno pode afirmar dele que “se entorpece nos desejos carnais”, na interpretação fortemente moralizada da teoria dos humores de Hildegard von Bingen, o Eros abnorme do melancólico assume até mesmo o aspecto de um transtorno sádico e selvagem: [39]
(os melancólicos) têm ossos grandes que contêm pouco tutano, que, porém, arde com tanta força que eles são, como víboras, desenfreados com as mulheres… são excessivos na libido e, como os asnos, sem medida com as mulheres, de tal forma que, se cessassem dessa depravação, facilmente se tornariam loucos… o seu abraço é odioso, tortuoso e mortífero como o dos lobos rapaces… mantêm comércio com as mulheres, e na mesma medida as odeiam. [Causae et curae. Ed. Kaiser: Leipzig, 1903, p. 73, 20 et seq.]
Mas o nexo entre amor e melancolia já havia encontrado há tempo o seu fundamento teórico em uma tradição médica que considera, com frequência, doenças afins, senão idênticas, o amor e a melancolia. Nessa tradição, que já surge completamente desenvolvida no Viaticum do médico árabe Haly Abbas (o qual, através da tradução de Constantino Africano, influenciou profundamente a medicina europeia medieval), o amor, que comparece com o nome amor hereos ou amor heroycus, e a melancolia estão catalogados na lista das doenças da mente em rubricas contíguas [v. alienatio] e às vezes, como ocorre no Speculum doctrinale, de Vicente de Beauvais, aparecem sob a mesma rubrica: “de melancolia nigra et canina et de amore qui ereos dicitur” [“sobre a melancolia negra e canina e sobre o amor que se denomina ‘ereos’”]. Essa proximidade substancial entre a patologia erótica e a melancólica encontra expressão no De amore de Ficino. O próprio processo do enamoramento converte-se nesse caso no mecanismo que abala e subverte o equilíbrio humoral, enquanto, inversamente, a empedernida inclinação contemplativa do melancólico o empurra fatalmente para a paixão amorosa. A obstinada síntese figurativa que daí [40] resulta e que leva Eros a assumir os obscuros traços saturninos do temperamento mais sinistro continuaria presente durante séculos na imagem popular do enamorado melancólico, cuja mirrada e ambígua caricatura por um bom tempo reaparece entre os emblemas do humor negro no frontispício dos tratados do século XVII sobre a melancolia:
Para onde quer que se dirija a intenção assídua da alma, para lá afluem também os espíritos, que são o veículo ou os instrumentos da alma. Os espíritos são produzidos no coração com a parte mais sutil do sangue. A alma do amante é arrastada para a imagem do amado inscrita na fantasia e para o próprio amado. Para lá também são atraídos os espíritos e, no seu obsessivo voo, acabam aí. Por isso é necessário um reabastecimento constante de sangue puro a fim de recriar os espíritos consumidos, ali onde as partículas mais delicadas e mais transparentes do sangue exalam todo dia a fim de regenerar os espíritos. Por causa disso o sangue puro e claro se dilui e não sobra senão o sangue impuro, espesso, árido e escuro. Assim, o corpo se disseca e deteriora, e os amantes tornam-se melancólicos. É, portanto, um sangue seco, espesso e escuro que produz a melancolia ou bílis negra, que enche a cabeça com os seus vapores, seca o cérebro e oprime a alma, sem descanso, dia e noite, com tétricas e apavorantes visões… E por terem observado tal fenômeno que os médicos da Antiguidade afirmaram que o amor é uma paixão próxima da enfermidade melancólica. O médico Rasis prescreve, por este motivo, para a cura, o coito, o jejum, a embriaguez, a marcha… [M. FICINO. De amore. Edição crítica de R. Marcel. Paris, 1956, VI 9.]
Na mesma passagem, o caráter próprio do Eros melancólico acaba identificado por Ficino com um deslocamento e um abuso: “Isso sói acontecer” — escreve ele — “com aqueles que, abusando do amor, transformam o que compete à contemplação em desejo de abraço.” A intenção erótica que desencadeia a desordem melancólica apresenta-se aqui como [41] aquela que pretende possuir e tocar o que deveria ser apenas objeto de contemplação, e a trágica insanidade do temperamento saturnino encontra assim a sua raiz na intima contradição de um gesto que pretende abraçar o inapreensível. Nessa perspectiva, deve ser interpretada a passagem de Henrique de Gand que Panofsky relaciona com a imagem düreriana, e segundo a qual os melancólicos “não podem conceber o incorpóreo” como tal, pois não sabem “estender sua inteligência para além do espaço e da grandeza”. Não se trata simplesmente, conforme se pensou, de um limite estático da estrutura mental dos melancólicos que os exclua da esfera metafísica, mas sim de um limite dialético que adquire seu sentido na relação com o impulso erótico de transgressão, que transforma a intenção contemplativa em “concupiscência de abraço”. A incapacidade de conceber o incorpóreo e o desejo de o tornar objeto de abraço são as duas faces do mesmo processo, no transcurso do qual a tradicional vocação contemplativa do melancólico se revela exposta a um transtorno do desejo que a ameaça de dentro. [Nessa perspectiva, a “melancholia illa heroica”, atribuída por Melanchton a Dürer, em passagem do De anima, que não escapou da atenção de Warburg, contém verossimilmente uma referência àquele amor heroycus que, segundo a tradição médica repetida por Ficino, era exatamente uma espécie de melancolia. Tal proximidade entre amor e melancolia, segundo a medicina medieval, explica também o ingresso de Dame Merencolie na poesia amorosa dos séculos XIII e XIV.]
É curioso que esta constelação erótica da melancolia tenha tão tenazmente passado despercebida aos estudiosos que procuraram delinear a genealogia e os significados da Melencolia düreriana. Toda interpretação que prescinda da fundamental pertinência do humor negro à esfera do desejo erótico, por mais que possa decifrar uma a uma as figuras inscritas à sua volta, está condenada a passar ao largo do mistério que se plasmou emblematicamente nessa imagem. Só se compreendermos que se situa sob o signo de Eros, podemos conservar e, ao mesmo tempo, revelar seu segredo, cuja intenção alegórica está inteiramente subentendida no espaço entre Eros e seus fantasmas. [AgambenE:39-42]