Encarada desse ponto de vista, a moderna descoberta da intimidade parece constituir uma fuga do mundo exterior como um todo para a subjetividade interior do indivíduo, subjetividade esta que antes fora abrigada e protegida pelo domínio privado. A dissolução desse domínio no social pode ser perfeitamente observada na crescente transformação da propriedade imóvel em propriedade móvel, até que finalmente a distinção entre propriedade e riqueza, entre os fungibiles e os consumptibiles da lei romana, perde toda a sua significação, porque toda coisa tangível, “fungível” passa a ser objeto de “consumo”; perdeu seu valor de uso privado, antes determinado por sua localização, e adquiriu um valor exclusivamente social, determinado por sua permutabilidade constantemente mutável, cuja flutuação só temporariamente pode ser fixada por meio de uma conexão com o denominador comum do dinheiro. [A teoria econômica medieval ainda não concebia o dinheiro como denominador comum e como padrão, mas considerava-o como um dos consumptibiles.] Intimamente ligada a essa evaporação social do tangível estava a mais revolucionária contribuição moderna ao conceito de propriedade, segundo a qual a propriedade não constituía uma parte fixa e firmemente localizada do mundo, adquirida por seu proprietário de uma maneira ou de outra, mas, ao contrário, tinha no próprio homem a sua origem, na sua posse de um corpo e na sua indiscutível propriedade da força desse corpo, que Marx chamou de “força de trabalho” [labor-power].
Assim, a propriedade moderna perdeu seu caráter mundano e passou a situar-se na própria pessoa, isto é, naquilo que o indivíduo somente podia perder juntamente com a vida. Historicamente, a premissa de Locke, de que o trabalho do corpo de uma pessoa é a origem da propriedade, é mais que duvidosa; no entanto, dado o fato de que já vivemos em condições nas quais a única propriedade em que podemos confiar é o nosso talento e a nossa força de trabalho, é mais do que provável que ela venha a se tornar verdadeira. Pois a riqueza, depois que se tornou preocupação pública, adquiriu tais proporções que dificilmente poderia ser controlada pela posse privada. É como se o domínio público tivesse se vingado daqueles que tentaram utilizá-lo para seus interesses privados. A maior ameaça aqui, porém, não é a abolição da posse privada da riqueza, mas sim a abolição da propriedade privada no sentido de um lugar tangível possuído por uma pessoa no mundo.
Para que compreendamos o perigo para a existência humana decorrente da eliminação do domínio privado, para o qual a intimidade não é substituto muito seguro, talvez seja melhor considerarmos aquelas feições não privativas da privatividade anteriores à descoberta da intimidade e que desta independem. A diferença entre o que temos em comum e o que possuímos privadamente é, em primeiro lugar, que as nossas posses privadas, que usamos e consumimos diariamente, são muito mais urgentemente necessárias que qualquer parte do mundo comum; sem a propriedade, como disse Locke, “de nada nos vale o comum” [Segundo tratado sobre o governo, Seção 27]. A mesma necessidade que, do ponto de vista do domínio público, exibe somente o seu aspecto negativo de privação de liberdade possui uma força motriz cuja premência é inigualada pelos chamados desejos e aspirações superiores do homem; não apenas ela será sempre a primeira entre as necessidades e preocupações do homem, mas também evitará a apatia e a extinção da iniciativa que tão obviamente ameaçam todas as comunidades demasiado ricas. [Os casos, relativamente raros, em que os autores antigos louvam o trabalho e a pobreza são inspirados por esse perigo (cf. referências em G. Herzog-Hauser, Ponos, em Pauly-Wissowa)] A necessidade e a vida são tão intimamente aparentadas e conectadas que a própria vida é ameaçada quando se elimina totalmente a necessidade. Pois, longe de resultar automaticamente no estabelecimento da liberdade, a eliminação da necessidade apenas obscurece a linha que separa a liberdade da necessidade. (As modernas discussões sobre a liberdade, nas quais esta última nunca é vista como um estado objetivo da existência humana, mas constitui um insolúvel problema de subjetividade, de uma vontade inteiramente indeterminada ou determinada, ou resulta da necessidade, evidenciam o fato de que já não se percebe uma diferença objetiva e tangível entre ser livre e ser forçado pela necessidade.)
A segunda saliente característica não privativa da privatividade é que as quatro paredes da propriedade privada de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum – não só contra tudo o que nele ocorre, mas também contra a sua própria publicidade, contra o fato de ser visto e ouvido. Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, torna-se, como se diz, superficial. Retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir à luz a partir de um terreno mais sombrio, que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade em um sentido muito real, não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a escuridão do que deve ser escondido da luz da publicidade é a propriedade privada, um lugar possuído privadamente para se esconder. [v. atrium]
Embora seja bastante natural que os traços não-privativos [non-privative] da privatividade apareçam mais nitidamente quando os homens estão ameaçados de perdê-la, o tratamento prático da propriedade privada por corpos políticos pré-modernos mostra claramente que os homens sempre estiveram conscientes da existência e importância desses traços. Nem por isso, porém, eles protegeram diretamente as atividades exercidas no domínio privado, mas protegeram antes as fronteiras que separavam o que era privadamente possuído de outras partes do mundo, principalmente do próprio mundo comum. Por outro lado, a marca distintiva da moderna teoria política e econômica, na medida em que considera a propriedade privada como questão crucial, tem sido sua ênfase nas atividades privadas dos proprietários e em sua necessidade de proteção governamental para o acúmulo de riqueza, à custa da propriedade tangível. O que importa ao domínio público, porém, não é o espírito mais ou menos empreendedor de homens de negócios privados, e sim as cercas em torno das casas e dos jardins dos cidadãos. A invasão da privatividade pela sociedade, a “socialização do homem” (Marx), é mais eficazmente realizada por meio da expropriação, mas esta não é a única maneira. Nesse, como em outros aspectos, as medidas revolucionárias do socialismo ou do comunismo podem muito bem ser substituídas por uma “decadência” mais lenta, porém não menos certa, do domínio privado em geral e da propriedade privada em particular.
A distinção entre os domínios público e privado, concebida mais do ponto de vista da privatividade que do corpo político, equivale à distinção entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado. Somente a era moderna, em sua rebelião contra a sociedade, descobriu quão rico e variegado pode ser o domínio do oculto nas condições da intimidade; mas é impressionante que, desde os primórdios da história até o nosso tempo, o que precisou ser escondido na privatividade tenha sido sempre a parte corporal da existência humana, tudo o que é ligado à necessidade do processo vital e que, antes da era moderna, abrangia todas as atividades a serviço da subsistência do indivíduo e da sobrevivência da espécie. Escondidos eram os trabalhadores que, “com seus corpos, cuidavam das necessidades [corporais] da vida” [Aristóteles, Política, 1254b25] e as mulheres que, com seus corpos, garantem a sobrevivência física da espécie. Mulheres e escravos pertenciam à mesma categoria e eram escondidos não somente porque eram propriedade de outrem, mas porque sua vida era “trabalhosa” [laborious], dedicada a funções corporais. [v. mulheres] No início da era moderna, depois que o trabalho “livre” perdeu o seu lugar oculto da privatividade do lar, os trabalhadores passaram a ser escondidos e segregados da comunidade como criminosos, atrás de altos muros e sob constante supervisão. [Cf. Pierre Brizon, Histoire du travail et des travailleurs (4. ed., 1926), p. 184, quanto às condições de trabalho em uma fábrica do século XVII.] O fato de que a era moderna emancipou as classes operárias e as mulheres quase no mesmo momento histórico deve, certamente, ser incluído entre as características de uma era que já não acreditava que as funções corporais e as preocupações materiais deviam ser escondidas. E é ainda mais sintomático da natureza desses fenômenos que os poucos vestígios da estrita privatividade, mesmo em nossa civilização, tenham a ver com “necessidades” no sentido original de sermos demandados pelo fato de termos um corpo. [ArendtCH, 9]
Embora a distinção entre o privado e o público coincida com a oposição entre a necessidade e a liberdade, entre a futilidade e a permanência e, finalmente, entre a vergonha e a honra, não é de forma alguma verdadeiro que somente o necessário, o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado no domínio privado. O significado mais elementar dos dois domínios indica que há coisas que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para que possam adquirir alguma forma de existência. Se examinarmos essas coisas, independentemente de onde as encontremos em qualquer civilização, veremos que cada atividade humana assinala sua localização adequada no mundo. Isso se aplica às principais atividades da vita activa, o trabalho, a obra e a ação, mas existe um exemplo desse fenômeno, reconhecidamente extremo, cuja vantagem para a elucidação é ter desempenhado um papel considerável na teoria política. [ArendtCH, 10]