No interior do pensamento pré-socrático, a linguagem se torna um objeto de interesse explícito para os sofistas. Nós os conhecemos através do seu adversário Platão, o que não favorece a compreensão de suas doutrinas. O movimento sofista abarcou assuntos bastante diferentes, de uma atitude geral diante da educação e da retórica até teses metafísicas ultra-relativistas, e especulações de filosofia política sobre a natureza do poder. Além disso, suas teses só foram conservadas sob forma de fragmentos. Enfim, uma moda absurda quis reabilitar e vingar os sofistas, embaralhando ainda mais uma questão já complexa. Assim, é impossível discernir uma sofística da linguagem. Entretanto, pelo menos um texto conservado, de Górgias, manifesta explicitamente uma interrogação sobre a capacidade da linguagem, ou do discurso, de dizer o ser:
Pois se existem seres visíveis, audíveis e universalmente sensíveis, e de uma existência que nos é exterior, desses seres, os visíveis são percebidos pela vista, os audíveis pelo ouvido, e esses sentidos não podem trocar os seus papéis. Assim sendo, como se poderá revelar a outrem esses seres? Pois o meio que temos de revelar é o discurso; e o discurso não é nem as substâncias nem os seres: não são pois os seres que nós revelamos àqueles que nos cercam; nós só lhes revelamos um discurso que é diferente das substâncias. Assim como o visível não pode tornar-se audível, ou o contrário, assim também o ser que subsiste exteriormente a nós não poderia tornar-se nosso discurso: não sendo discurso, ele não poderia ser manifestado a outrem. Quanto ao discurso (…), sua constituição resulta das impressões vindas dos objetos exteriores, isto é, dos objetos da sensação: do encontro com o seu sabor nasce em nós o discurso que será proferido com relação a essa qualidade, e da impressão da cor, o discurso referente à cor. Se é assim, o discurso não manifesta o objeto exterior; pelo contrário, é o objeto exterior que se manifesta no discurso.
Podemos resumir assim a argumentação de Górgias: a) nada existe; b) se alguma coisa existisse, não se poderia conhecê-la; c) se se pudesse conhecê-la, não se poderia comunicá-la. É esse último ponto que nos interessa aqui. A argumentação pela incomunicabilidade do ser — supondo-se que ele exista, já que para Górgias nem o ser nem o não–ser são — é a seguinte: o discurso não é a substância; assim, o discurso só pode revelar a si mesmo. A razão é que a incomunicabilidade do ser no discurso é semelhante à separação dos diferentes registros sensoriais: o ser é tão incomunicável quanto o visível é diferente do audível. A constituição do discurso resulta das impressões sensíveis; a cada impressão proveniente de um sentido corresponde um tipo de discurso relativo a essa impressão. O discurso é pois incapaz de apreender uma estrutura geral comum a esses diferentes campos sensoriais; ele é não só dependente das impressões, mas também dependente das separações entre os gêneros de impressões. Ele é passivo: “é o objeto que se revela no discurso”. Um último argumento consiste em que, mesmo se o discurso fosse um ser substancial, seu modo de ser seria radicalmente diferente das substâncias dos corpos sensíveis. N. Kretzmann observa que esse argumento lembra a conduta dos liliputianos nas viagens de Gulliver: eles não transportam as coisas, em lugar das palavras? O argumento sofista da incomunicabilidade do ser, e logo da incognoscibilidade da realidade, repousa sobre uma doutrina da incomunicabilidade dos gêneros. Veremos que a comunicabilidade dos gêneros é, ao contrário, uma tese mestra de Platão. Por isso, poderíamos concluir, com P. Aubenque: “A teoria e a prática sofistas da linguagem não supõem apenas uma ontologia errônea: elas acarretam a impossibilidade de toda ontologia”? Afinal, existem ontologias relativistas e céticas, e talvez até ontologias niilistas. O que a sofística impede é uma ontologia científica, uma ciência geral do universal, mas esse é um tipo de ontologia e não um traço necessário e essencial de toda ontologia. [NEF]