Que torna a priori possível o nosso conhecimento: os “princípios transcendentais do espírito” são os que, antes de qualquer experiência, constituem a natureza de nosso conhecimento. — Uma análise transcendental, tal como foi praticada por Kant (na Crítica da razão pura), é uma reflexão sobre o ato de conhecer, independentemente de todo objeto sobre o qual poderia focalizar-se nosso conhecimento. [Larousse]
É, de acordo com a etimologia do vocábulo (1), aquilo que se refere ao transcendente, ou seja, segundo o uso corrente do termo, ao transcendente em relação ao mundo sensível (transcendência). Neste sentido, “filosofia transcendental” é sinônimo de metafísica. Esta acepção ocorre também em Kant, p. ex., quando ele denomina transcendental o uso dos princípios do entendimento puro para além dos limites da experiência. — Na filosofia escolástica moderna, o t?rmo transcendental (2) — para se diferenciar de transcendente — é empregado, as mais das vezes, em sentido lógico. Enquanto o “transcendente” é o ente que se encontra para além do ato de conhecimento, da consciência ou do mundo, o termo “transcendental” designa os conceitos que superam em universalidade as categorias ou que, pelo menos, não são redutíveis, a uma categoria única. Assim, denominam-se, antes de mais nada, transcendentais o próprio conceito de ente e os conceitos das propriedades essenciais que convêm a todos os entes (Transcendentais); aliás, S. Tomás, Scotus e, via de regra, também Suarez empregam, neste caso, o termo transcendens, e não transcendentalis. Uma relação denomina-se transcendental, quando, por causa de sua unidade necessária e essencial com determinações absolutas do ser, não pode ser incluída na categoria de relação. Precisamente por serem os conceitos transcendentais de importância decisiva para a determinação do supra-sensível, e inclusive por serem os únicos tomados em conta para a determinação do divino, o transcendental lógico mantém sua relação essencial ao transcendente ou metafísico.
Em Kant, o termo transcendental sofre importante mudança de sentido, conservando, não obstante, certa conexão com a acepção primitiva. Toda a investigação de Kant parte desta interrogação: é possível a metafísica como ciência? Para responder a esta interrogação, Kant julga ser absolutamente indispensável investigar os modos de atuar de nossas faculdades cognoscitivas, inquirir como, anteriormente a toda experiência acidental (a priori), eles se baseiam na estrutura essencial do sujeito. Assim, a posição transcendental (1) da questão sobre a possibilidade da metafísica, torna-se transcendental (3) no sentido da definição kantiana: “Chamo transcendental todo conhecimento que se ocupa, em geral, não tanto de objetos, quanto de nosso modo de conhecê-los, na medida em que este deve ser possível “a priori” (Kritik der reinen Vernunft, B, 25). Neste sentido fala Kant de estética transcendental, de lógica transcendental, etc., e até de filosofia transcendental em geral. Em sentido idêntico Marechal, por exemplo, denomina também transcendentais as investigações escolásticas acerca do objeto formal e a tendência teleológica das faculdades cognoscitivas. O qualificativo transcendental passa, em seguida, da reflexão sobre as condições aprióricas do conhecimento a estas mesmas reflexões. Nesta acepção, chamam-se transcendentais (4) as condições do conhecimento fundadas no próprio sujeito anteriormente a toda experiência e a todo conhecimento real, consideradas enquanto tais, isto é, enquanto possibilitam o conhecimento objetivo. Neste sentido, fala Kant de imaginação transcendental; neste sentido são igualmente denominadas transcendentais as formas a priori da sensibilidade e do entendimento e, finalmente, o próprio sujeito como fundamento último de todo conhecimento (Kant: unidade transcendental da apercepção, isto é, da consciência). Uma vez que no próprio Kant a investigação transcendental conduz ao resultado de que pelas formas aprióricas só podem ser conhecidos objetos da experiência, nele, o transcendental apresenta-se em certa oposição ao transcendente. Não devemos, contudo, esquecer que conserva sempre relações com o transcendente: pelas categorias o transcendente pode, ao menos, ser pensado, embora — devido à falta de intuição correspondente — não seja possível conhecê-lo; e as ideias transcendentais referem-se essencialmente ao incondicionado, ao metafísico, e, embora este não possa ser dado como objeto, nem portanto possa ser conhecido, é, no entanto, justificadamente admitido como postulado da razão prática. — De Vries. [Brugger]
A redução, libertando o sentido do mundo, indica-lhe também a origem: uma origem no eu, mas no eu real, homem, mas no eu como «sujeito» para o «mundo». Este sujeito, na redução, aparece como «espectador de si próprio e do mundo», mas também como fonte ou origem do sentido. Husserl designa esta subjetividade, «dadora de sentido» e «sentido de ser», subjetividade transcendental. Na sua conclusão, a redução é, portanto, uma «redução fenomenológica transcendental» e, reorganizada a partir dela, a fenomenologia husserliana apresenta-se como um idealismo transcendental.
Notemos que esta referência ao sujeito era primeiramente excluída do desenvolvimento científico e positivo do método fenomenológico (Recherches Logiques — V) naquilo em que ela parecia implicar o recurso a uma transcendência. Não é senão após um longo percurso que Husserl reconhece a necessidade disso como conclusão da intenção científica da fenomenologia, isto é, como radicalização decisiva do método. A evidência, já em elaboração na imanência do vivido, reporta-se a uma subjetividade que «não tem o sentido de um produto de construção especulativa… que… constitui com as suas experiências vividas, as suas faculdades e as suas operações transcendentais, um domínio absolutamente autônomo de experiência direta» (posfácio). Todos os problemas postos à simples descrição fenomenológica encontrarão, pelo menos de direito, a sua solução na explicitação da essência desta subjetividade. A fenomenologia como ciência poderá resumir-se na tarefa de «revelar a estrutura do eidos universal do ego transcendental, que contém todas as variantes possíveis do meu ego empírico, portanto, este ego ele mesmo como pura possibilidade» (Méditations Cartésiennes, §34). [Schérer]
(lat. Transcendentalis; in. Transcendental; fr. Transcendental; al. Transzendental; it. Trascendentale).
Com este termo ou com transcendente, começaram a ser denominadas, no fim do séc. XIII, as propriedades que todas as coisas têm em comum, que por isso excedem ou transcendem as diversidades de gêneros em que as coisas se distribuem. Esse nome já se encontra em F. Mayron (morto em 1325, Formalitates, ed. 1479, f. 22, r. A), e com certeza Lorenzo Valla (Dialecticae disputationes, I, 1) contribuiu para a sua difusão, mas os transcendentais ou transcendentes já haviam sido definidos por Tomás de Aquino como as propriedades “que se acrescentam ao ente e que expressam um de seus modos que não é expresso pelo nome do ente”; e enumerava seis delas: ens, res, unum, aliquid, bonum, verum (De ver., q. 1, a. 1), lista esta que se tornou a mais difundida e acreditada entre todas.
Esse conceito de transcendental, com alguma mudança ocasional na lista dos termos, foi repetido inúmeras vezes depois disso (Campanella, Dialectica, I, 4; G. Bruno, De la causa, IV; F. Bacon, De augm. scient., III, I; Jungius, Logica hamburgensis, I, 1, 45: Spinoza, Et., II, 40, escólio I; Berkeley, Principie of Human Knowledge, § 118; Wolff, Ont., § 495, 503; Baumgarten, Met., § 72, 89; Hamilton, Lectures on Logic, I, p. 198). A essa tradição junta-se o uso kantiano do termo. Kant diz: “Esses supostos predicados transcendentais das coisas nada mais são que exigências lógicas e critérios para qualquer conhecimento das coisas em geral e repousam nas categorias de quantidade (unidade, pluralidade e totalidade). Mas essas categorias, que deveriam ser assumidas no significado material como pertencentes à possibilidade das coisas, na verdade eram usadas pelos antigos só com valor formal, como constituintes da exigência lógica para qualquer conhecimento; todavia, transformavam inadvertidamente esses critérios do pensamento em propriedade das coisas em si mesmas” (Crítica da Razão Pura, Analítica, § 12). Em outros termos, Kant considera que o antigo conceito de transcendental peca por dois motivos: 1° porque considera o transcendental simples conceito lógico–formal; 2° porque considera esse conceito formal como propriedade das coisas em si. Ao contrário, o conceito kantiano de transcendental consiste em: 1° considerar o transcendental como condição da possibilidade da coisa, ou seja, como conceito a priori ou categoria; 2° considerar a coisa, cuja condição é o transcendental, como fenômeno, e não como “coisa em si”. Contudo, para Kant, o transcendental não se identifica com as condições a priori do conhecimento humano e dos seus objetos (que são os fenômenos), mas é considerado o conhecimento (ou a ciência, se existe uma ciência) dessas condições a priori. Kant diz: “Não chamo de transcendental o conhecimento que cuida dos objetos, mas o que cuida do nosso modo de conhecer os objetos, e que seja possível a priori” (Ibid., Intr., VII). E esclarece: “Não se deve chamar de transcendental qualquer conhecimento apriori, mas apenas o conhecimento que possibilite saber que representações (intuições ou conceito) são aplicadas ou são possíveis exclusivamente a priori e como isso se dá. Vale dizer: é transcendental o conhecimento da possibilidade do conhecimento ou do uso dele a priori” (Ibid., Lógica, Intr., II; v. Prol, § 13, obs. III). Desse ponto de vista, transcendental não é “o que está além da experiência”, mas sim “o que antecede a experiência (a priori) mesmo não se destinando a outra coisa senão a possibilitar o simples conhecimento empírico” (Prol., Apêndice, nota [A 204]). No entanto, é preciso observar que Kant não se atem rigorosamente a esse significado do termo e que, muitas vezes, chamou de transcendental o que é independente da experiência ou de princípios empíricos (cf., p. ex., Crítica da Razão Pura, O ideal da mão pura, seç. 5, Descoberta e ilustração da aparência dialética). De qualquer forma, com base no significado explicitamente aceito por Kant, podem ser chamados de transcendental apenas os conhecimentos que têm por objetos elementos a priori, e não estes mesmos elementos. Portanto, são transcendentais a estética, a lógica e as suas partes, mas não o são as intuições puras, as categorias ou as ideias. Mas mesmo este uso não é rigoroso, pois Kant chama de transcendental as ideias e de unidade transcendental o eu penso (Ibid., § 16).
Esse termo foi retomado por Fichte para designar a teoria da ciência, pois mostra que todos os elementos do conhecimento estão no Eu, ou seja, na consciência: “Essa ciência não é transcendente, mas continua transcendental em sua profundidade. É verdade que ela explica a consciência com alguma coisa que existe independentemente da consciência, mas mesmo nessa explicação não se esquece de conformar-se às suas próprias leis; e assim que reflete sobre ela, o termo independente torna-se novamente produto da faculdade de pensar, portanto algo dependente do Eu, porque deve existir para o Eu, no conceito do Eu”. (Wissenschaftslehre, 1794, § 5, II; trad. it., p. 231). Shelling entendia esse termo no mesmo sentido; para ele, no saber transcendental, “o ato do saber chega a absorver o objeto como tal”, de tal modo que é “um saber do saber, porquanto puramente subjetivo” (System des transzendentalen Idealismus, 1800, Intr., § 2). Schopenhauer atribui o mesmo sentido idealista: transcendental é “o conhecimento que determina e estabelece, antes de qualquer experiência, tudo o que é possível na experiência” (Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, § 20).
Como resultado destas determinações, o conceito do transcendental foi-se fixando na filosofia contemporânea como aquilo que pertence ao sujeito ou à consciência como condição do objeto e da própria realidade. Portanto, qualificou-se de transcendental qualquer atividade ou elemento da consciência de que dependa a afirmação ou a posição da realidade objetiva. Assim, expressões como “ponto de vista transcendental” ou “conhecimento transcendental” equivalem à expressão de Schelling “idealismo transcendental”, ou seja, doutrina que mostra que na consciência subjetiva estão as condições da realidade. Este conceito de transcendental persistiu tanto nas escolas de inspiração kantiana mais estrita quanto nas escolas idealistas. Gentile chamava de “Eu transcendental” o eu absoluto ou universal, que cria a realidade pensando (Teoria generale dello spirito, 1920,1 § 5). Mantém-se o sentido idealista também em Husserl, que qualifica de transcendental a experiência fenomenológica ou a reflexão que a ocasiona. “Na reflexão fenomenológica transcendental, saímos do terreno empírico praticando a epoche universal quanto à existência ou à não–existência do mundo. Pode-se dizer que a experiência do mundo assim modificada, a experiência transcendental consiste no seguinte: examinamos o cogito transcendentalmente reduzido e o descrevemos sem efetuar além disso a posição de existência natural implícita na percepção espontânea” (Cart. Med., § 15). Para Heidegger, porém, transcendental tem sentido objetivo porque indica “qualquer manifestação do ser no seu ser transcendente” (Sein und Zeit, § 7 C). [Abbagnano]