O contrário é o que goza da mais clara evidência, se a tragédia do século V pode (e acho que deva) considerar-se como fenômeno literário especificamente grego e, demais, como a reinterpretação genuinamente grega de pedaços da lenda heroica que se desgarraram do mais remoto passado da Grécia, de lá onde ainda mal se apercebia se os Gregos viriam a firmar-se a si próprios, contra o Mediterrâneo oriental, ou não se resignariam a permanecer como parte do todo que era o mesmo Oriente. Sem dúvida, a tragédia grega atrai, ainda hoje, a maioria dos que nem por virtude de outros aspectos não menos fascinantes querem saber de gregos só porque ela põe em cena homens que a outros homens falam, como nós falamos uns com os outros, ou de nós para nós mesmos, em momentos angustiantes da vida. Mas isso ainda não quer dizer que os grandes trágicos de Atenas se propuseram desdivinizar o homem e o mundo. Heróis da tragédia grega, nas cumeadas do trágico, e tudo quanto hoje se possa chamar de grandeza humana, são incomensuráveis, pela enormidade e excessividade de suas palavras e de seus atos. E o «enorme e pavoroso» (deinon), o excessivo da ação heroica, pelo mais claro exemplo que [35] nos dá a dramaturgia de Sófocles, advém-lhes de um «a mais» que não permite falar tão simplesmente de uma exacerbação extrema de paixões humanas e só humanas. A excessividade do herói trágico é a dos deuses que deles se apossaram, como se quisessem experimentar até onde conseguiriam os homens levar adiante um processo de desumanização que seria apenas o avesso de um processo de deificação. A experiência não falha. No fracasso, os homens ficam cientes de que os deuses existem, de que não podem viver sem eles nem a sua não mais que humana vida — sobretudo, de que não podem viver contra eles vida digna de ser vivida. O mito trágico pode ter sido a versão tardia do mito originário da cultura grega, a que se conta na hora do entardecer, já que ninguém a contara na hora do alvorecer. No entanto, sempre há que contar com a bem sucedida defesa de Aristóteles, quanto ao trágico inerente à obra de Homero, sobretudo, no que diz propósito da Ilíada. [EudoroMito:35-36]
De que forma é que a reprodução imitadora (μίμησις [mimesis]) pode distorcer completamente todos os fenômenos afins à «prática humana»? Qual é a relação mimética que temos com o sentido da situação humana (πρᾶξις [praxis])? Ou, antes, de que forma podemos aceder autenticamente ao sentido de uma determinada situação por que passamos, criando-a ou caindo nela? Esta pergunta é feita, nesta passagem da República, procurando apurar como é que os poetas trágicos apresentam a condição humana (πράξεις [praxeis]), porquanto temos ouvido de alguns [República, 598d8-e1] que aqueles percebem de todas as técnicas [Rep., 598e1]. Comportar-se-á a tragédia como uma «imitação de uma aparição» e não como uma «verdadeira desocultação» do que acontece? [μίμησις φαντάσματος [mimesis phantasmatos]e não ἀληθείας [aletheias] (Rep., 598b3-4).] Será ela só relativa ao modo como as diversas situações nos surgem [Rep., 598b3], e, assim, uma forma distanciada da verdade acerca da «excelência» [Rep., 599d2-3], ou, antes, relativa ao que é tal como acontece? [Rep., 599b2] É a sua «produção» possível mesmo só conseguindo, de cada coisa, tocar numa pequena parte, sendo esta um simulacro? [Rep., 599b5] Será possível à tragédia, mesmo não percebendo nada das artes humanas que «representa», ainda assim, imitá-las? [Rep., 599c1. No Banquete, em 212a, o contemplar-se — e conviver com — καλόν [kalon] com (212a1) faz τίκτειν οὐκ εἴδωλα ἀρετῆς [tiktein ouk eidola aretes], uma vez que οὐκ ειδώλου ἐφαπτόμενος [ouk eidolou ephaptomeunos], mas toca-se a verdade, produz-se a verdadeira excelência. A dificuldade reside em apurar aquilo «com o qual tem que se» contemplar, porquanto é o que «faz» toda a diferença no modo como nos comportamos relativamente à arete. A tragédia, enquanto uma μίμησις, é saber ou não saber (212d4-5) daquelas coisas que retrata? Terá ela um domínio efetivo das coisas tais como verdadeiramente se apresentam ou não? Cf. Ludwig C. H. Chen, «Knowledge of Beauty in Plato’s Symposium», CQ, 33, 1983, pp. 66-74, pp. 71-72.] No centro da discussão está a possibilidade de se fazer uma reprodução imitadora (μίμησις) daquelas coisas que se conhecem [Rep., 598e4] e de se atingir aquilo que irá ser imitado (τὸ μιμηθησόμενον [to mimethesomenon]), conseguindo diferenciá-lo do que é um mero simulacro (τὸ εἴδωλον [to eidolon]). Tem de se examinar, portanto, se o modo de tematizar a «excelência» não se encontra também três vezes distanciado dela [Rep., 599d2], e se Homero não é um «produtor de simulacros» [Rep., 599a2. Acerca do afastamento de terceira ordem resultante da incidência sobre o simulacro da excelência, εἴδωλον ἀρετῆς [eidolon aretes], quando se consideram as situações extremas da existência humana, ver também Rep., 597e3, 600e5, 601b9 e 602c2. «Tem que se examinar se quem encontra os ‘imitadores’ não está enganado por eles e se ao olhar para as suas obras não se apercebem que elas estão três vezes afastadas daquilo que é e que é fácil produzir a verdade para quem não a vê, porquanto produzem [sc., poetas trágicos] aparições e não as coisas que são.»]. A pergunta é agora, [80] por conseguinte, se os poetas [Thomas E. Knight, «Aletheia for the Truth of Unreason», AJP, 114, 1993, pp. 581-607: Platão vai contestar a própria noção de verdade adotada pelos poetas e dramaturgos, uma vez que as circunstâncias em que falam verdade por serem o resultado de um «state of inspiration» são «rare and a matter of happenstance» (p. 588). Em contrapartida, o ponto de vista platônico é o de que o apuramento da verdade resulta do uso de uma espécie de «cross-examination» (ἔλεγχος) (p. 590). Este processo é concordante com a perspectiva platônica de que a παιδεία [paideia] é «a corrective process of constant readjustment and realignment of one’s sights» (p. 598). Cf. sobre o mesmo problema no lon de Platão Christopher Janaway, «Craft and Fineness in Plato’s lon», OSiAP, 10,1992, pp. 1-25, sobretudo pp. 20-23: «good poets do produce a species of beauty or fineness», embora «the ability to produce beauty of this kind be understood as not springing from the rational application of readily explicable principies, as in a Standard techne» (p. 23). Dirk Baltzly, «Plato and the New Rhapsody», OSiAP, 12(1), pp. 29-52.] não são imitadores do «simulacro da excelência» como o são acerca de todas as outras coisas sobre as quais escrevem, e se, portanto, não tocam na verdade [Rep., 600e. Cf. Dietrich Mannsperger, Physis bei Platon, p. 131: «o dramaturgo trágico, na medida em que é um imitador, está por natureza três vezes afastado da verdade (Rep., 597e6). O poeta está já desde sempre numa determinada situação, na qual nasceu: «feste Situation, in die hinein […] geboren ist», isto é, ele não tem apenas por «natureza» uma «innewohnende Form, sondem zugleich Stellung in einer Umweltsbezuglichkeit», um «Weltzusammenhang».]. [CaeiroArete:79-81]