tautegoria

A despeito do seu «pecado original», a exegese alegórica tem seus méritos: se alegorizava os deuses, tautegorizava o Mundo; mas se no «posto» há sempre que ver o seu «oposto», agora o que temos de considerar é a eventualidade de a mitologia tautegorizar os deuses, alegorizando o Mundo. Se o mito é tautegórico, os [46] deuses são tais quais o mito no-los apresentam, mas a «presentação» mítica, que tautegoriza os deuses, exige a alegorização do Mundo, ou seja, o Mundo como alegoria de mundos, com os homens que em cada um deles habitam. Já dissemos que mais de vinte séculos de alegorismo não se podem omitir, e o que, de modo nenhum, se omite, nem a omitir nos propomos, é que, em tal exegese ultrapassada, sempre há o que não passou além do que devemos pensar: os alegoristas foram juntando, uma a uma, todas as possibilidades de transferir o significado da «biografia dos deuses» para o de fenomenologias cósmicas e antrópicas; os deuses e a dramaturgia mítica eram modos de se falar do Mundo e do Homem. Certamente a contragosto, e só por distração de quem a escreveu, a breve fórmula: «deuses são Weltaspekte» (aspecto do mundo), corre no sentido da alegorização dos deuses, mantendo a tautegorização do Mundo. Os deuses e o mundo não são alegorias. Está certo, sobretudo no que respeita aos deuses. Posídon não é outra maneira de dizer «mar»; Zeus não é outra maneira de dizer «céu luminoso»; Deméter não é outra maneira de dizer «terra criadora do cereal»; Ártemis não é outra maneira de dizer «natureza indomável»; Dioniso não é outra maneira de dizer «vinho inebriante»; Hefesto não é outra maneira de dizer «fogo», e assim por diante. Mas também não são, na mesma ordem, modos de dizer que o Mundo se nos revela ou como a abismal profundidade dos Oceanos e a correnteza serena ou bravia de todas as águas dos rios, ou como claridade deslumbrante da etérea abóbada do céu, ou como maternal cuidado pelo cultivo das terras férteis, ou como selvática proteção da terra que jamais arado sulcou, ou como o fogo que, flamejando nas forjas, vence a dureza dos metais, ou como desvario de mulheres arrancadas ao sossego da domesticidade, ou como transvio de homens dementados pelo suco fermentado das uvas. Porque tudo isto e o mais que se extrairia de outros exemplos acontece no Mundo. Mas tal é, precisamente, o grande mérito do alegorismo: chamar-nos a atenção, prender-nos a atenção, não consentir que a nossa atenção se desvie do entrelaçamento da «vida dos deuses» com o «mundo em que vivem». Lástima que os alegoristas não se dispusessem a também alegorizar o Mundo. A mitologia tece-se com dois fios de colorido diferente: um é a divindade do mundo, outro a mundanidade dos deuses. O tecido não se rompe por nossa vontade de rompê-lo, e não podemos nós enrolar os dois fios em novelos diferentes, para voltar a entretecê-los a nosso jeito. No tecido, nós mesmos nos achamos entretecidos. Um mito lê-se no mundo circunscrito pelo drama peculiar à vida do [47] deus que o circunscreveu, e, por vezes, melhor do que no próprio drama que o circunscreve. Pois se é lícito falar de mundo dos deuses e de Mundo do Homem, digamos, então, que naquele o mito alegoriza o Homem e tautegoriza os deuses, neste, o mito alegoriza os deuses e tautegoriza o Homem. Alegoria e tautegoria encontram-se ambas, lado a lado, em cada um dos dois modos de encarar o mito, a que se deram os nomes de «alegorismo» e «tautegorismo». Para o futuro da mitologia, o caminho é este: tautegoria dos deuses e alegoria do Homem e do Mundo. [EudoroMito:47-48]