seriedade

(in. Earnestness; fr. Sérieux; al. Ernst; it. Serietà).

Kierkegaard fez da seriedade uma espécie de categoria moral, definindo-a como “a originalidade conquistada pelo sentimento, conservada na responsabilidade da liberdade e afirmada no gozo da bem-aventurança”. A seriedade consiste na repetição e é condição para que a repetição não diminua o valor dos atos repetidos (Der Begriff Angst, IV, § 2, c). [Abbagnano]


c) O que é certeza e interioridade? Dar uma definição neste caso não é, por certo, fácil. Entretanto, eu quero afirmar: é seriedade. […] […] a interioridade é justamente a fonte que jorra para a vida eterna, e o que brota dessa fonte é justamente seriedade. Quando o Eclesiastes diz que tudo é vaidade, tem a seriedade in mente. Quando, ao contrário, após estar perdida a seriedade, diz-se que tudo é vaidade, há aí de novo somente uma expressão ativo-passiva disso (a obstinação da melancolia) ou uma expressão passivo-ativa (da frivolidade e do gracejo), dado que aí se encontra motivo para chorar ou para rir, mas a seriedade já se perdeu.

Até onde alcança o meu conhecimento, não me consta que exista uma definição do que seja seriedade. Sendo realmente assim, isso me alegraria, não porque me agrade o pensamento moderno, flutuante e de cores borradas, que aboliu a definição, mas sim porque, diante dos conceitos da existência, o abster-se das definições sempre mostra um tato seguro, porque é impossível que se possa inclinar-se a querer captar na forma da definição – com o que tão facilmente surge um estranhamento e o objeto se transforma em outra coisa: aquilo que essencialmente deve ser compreendido de outro modo, que a gente mesma compreendeu de modo diferente, o que a gente amou de um modo totalmente diferente. Quem ama de verdade, dificilmente poderá encontrar prazer, satisfação, para nem dizer crescimento, em ocupar-se com uma definição do que é propriamente amor. Quem vive numa relação diária, e contudo festiva, com a ideia de que existe para nós um Deus, dificilmente poderá desejar estragar ele mesmo isso, ou vê-lo ser estragado, para conseguir costurar com suas próprias mãos, como um remendão, uma definição do que seria Deus. Assim também com a seriedade: ela é uma coisa tão séria que até mesmo uma definição sua já constitui uma leviandade. Contudo, não o digo como se minha ideia não fosse clara, ou como se temesse que um especulador supersabido qualquer – obstinado na defesa da análise conceitual, como um matemático sequioso por demonstrações, e que, por isso, a respeito de tudo diz, como um matemático diria: mas então, o que é que isto prova? – houvesse de ficar desconfiado de mim, como se eu não entendesse do que é que eu falava, pois, segundo o meu modo de pensar, o que digo aqui prova justamente, melhor do que qualquer análise conceitual, que eu sei, com seriedade, do que é que se trata.

Ainda que eu não esteja inclinado a dar agora uma definição de seriedade ou a discorrer sobre seriedade nas brincadeiras da abstração, vou expor, todavia, algumas observações orientadoras. Na Psychologie de Rosenkrantz encontra-se uma definição de caráter (Gemüth)[289]. Diz ele, à p. 322: que caráter é unidade de sentimento e autoconsciência. Na análise anterior, ele explica de maneira excelente dass das Gefühl zum Selbstbewusstsein sich aufschliesse, und um gekehrt, dass der Inhalt des Selbstbewusstseins von dem Subject als der seinige gefühlt wird. Erst diese Einheit kann man Gemüth nennen. Denn fehlt die Klarheit der Erkenntniss, das Wissen vom Gefühl, so existirt nur der Drang des Naturgeistes, der Turgor der Unmittelbarkeit. Fehlt aber das Gefühl, so existirt nur ein abstracter Begriff, der nicht die letzte Innigkeit des geistigen Daseins erreicht hat, der nicht mit dem Selbst des Geistes Eines geworden ist (cf. p. 320 e 321). Se recuarmos ainda mais na perseguição de sua definição de Gefühl (sentimento), como unidade imediata, espiritual, de seiner Seelenhaftigkeit und seines Bewusstseins (p. 242) e aí recordarmos que na definição de Seelenhaftigkeit é levada a sério a unidade com a determinação natural imediata, poderemos, juntando tudo isso, ter uma ideia do que seja uma personalidade concreta.

Seriedade e Gemüth se correspondem então mutuamente de tal forma que a seriedade é uma expressão mais elevada e a mais profunda do que seja Gemüth. O Gemüth é uma determinação da imediatidade, enquanto que, em contrapartida, a seriedade é a originalidade conquistada do Gemüth, sua originalidade conservada na responsabilidade da liberdade, sua originalidade mantida no gozo da bem-aventurança. A originalidade do Gemüth, em seu desenvolvimento histórico, mostra justamente o eterno na seriedade, razão por que a seriedade jamais se pode mudar em hábito. O hábito, Rosenkrantz o estuda somente na fenomenologia, não na pneumatologia; porém o hábito também faz parte desta, e o hábito aparece tão logo o eterno desaparece da repetição. Quando a originalidade na seriedade é conquistada e conservada, aí ocorre uma sucessão e repetição; mas, quando falta originalidade na repetição, aí temos então o hábito. O homem sério é justamente sério graças à originalidade com que ele retorna ao ponto inicial na repetição. É verdade que se diz que um sentimento vivo e interior conserva a originalidade, porém a interioridade do sentimento é um fogo que pode arrefecer sempre que a seriedade não cuidar dele, e, por outra parte, a interioridade do sentimento é de ânimo instável, umas vezes ela é mais interior do que outras vezes. Dou um exemplo, para tornar tudo isso o mais concreto possível. Um clérigo deve a cada domingo pronunciar a oração eclesial de preceito, ou a cada domingo ele deve batizar várias crianças. Imaginemos que esteja cheio de entusiasmo, etc.: o fogo se extingue, ele vai agitar, comover, etc., mas às vezes mais, às vezes menos. Só a seriedade é capaz de retornar regularmente cada domingo com a mesma originalidade à mesma coisa.

Mas, esta coisa, sempre a mesma, a que a seriedade deve retornar mais e mais com a mesma seriedade só pode ser a própria seriedade; pois, senão, vem a ser pedantismo. A seriedade neste sentido significa a personalidade mesma, e só uma personalidade séria é uma personalidade efetiva; e só uma personalidade séria pode fazer algo com seriedade, pois para fazer alguma coisa com seriedade se requer, acima de tudo e principalmente, que se saiba o que é objeto da seriedade.

Na vida não é raro ouvir falar de seriedade; um se torna sério por causa da dívida do Estado, outro por causa das categorias, um terceiro ao discutir uma performance teatral, etc. Que as coisas ocorrem deste modo, a ironia o descobre, e aqui ela tem muito que fazer; pois todo aquele que fica sério no lugar errado é eo ipso cômico, mesmo que uma época contemporânea também travestida comicamente e a opinião desta época contemporânea possam vir a tornar-se sérias no mais alto nível em relação a essas coisas. Não há portanto critério mais seguro para avaliar em sua base mais profunda para que serve um indivíduo do que descobrir através da própria tagarelice dele, ou, fazendo-o de bobo, arrancar-lhe o segredo sobre o que o tornou sério na vida; pois decerto pode-se nascer com um gênio próprio, mas não se nasce com seriedade. A expressão “o que o tornou sério na vida” deve naturalmente ser compreendida no sentido pregnante da questão sobre a partir de quando o indivíduo data, no sentido mais profundo, a sua seriedade; pois pode-se muito bem, depois de se ter tornado um homem sério em cima daquilo que é o objeto da seriedade, tratar com seriedade, que seja, as coisas mais diferentes, mas a questão mesmo é saber se primeiro a gente se tornou sério com base no objeto da seriedade. Este objeto, cada ser humano o possui, pois é ele mesmo, e quem não se tornou sério em relação a si mesmo, porém a partir de qualquer outra coisa, de qualquer coisa grandiosa e barulhenta, é, apesar de toda a sua seriedade, um brincalhão, e, mesmo que consiga durante algum tempo enganar a ironia, acabará volente deo por se tornar cômico, pois a ironia zela pela seriedade. Aquele, por outro lado, que se tornou sério no momento justo, comprovará a saúde de seu espírito justamente por saber abordar todas as outras coisas tão bem de modo sentimental como no modo da brincadeira, mesmo que os que levam a seriedade muito a sério sintam um frio descer pela espinha ao perceberem que ele está brincando com aquilo que os tornou horrivelmente sérios. Contudo, ao abordar o que é sério, saberá não tolerar qualquer piada e, se o esquecer, bem pode suceder-lhe o mesmo que sucedeu a Alberto Magno, quando de modo arrogante este desafiou com sua especulação a divindade e de repente virou tolo; pode muito bem lhe suceder o mesmo que a Belerofonte, que montava seu Pégaso tranquilamente a serviço da Ideia, mas que caiu do cavalo quando quis abusar de Pégaso para cavalgar até um encontro galante com uma mulher terrena.

A interioridade, a certeza, é seriedade. Parece meio pouco, se pelo menos eu tivesse dito que a seriedade é a subjetividade, a pura subjetividade, a übergreifende subjetividade – aí sim eu teria dito alguma coisa – que certamente teria tornado séria uma porção de gente. Contudo, posso também expressar a seriedade de um outro modo. Quando falta a interioridade, o espírito é reduzido à finitude. Por isso, a interioridade é a eternidade, ou a determinação do eterno num ser humano. [Kierkegaard, Søren. O conceito de angústia. Tr. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 2017 (epub)]