Uma vez levantado o problema das origens das ideias, encontrava-se Locke na encruzilhada de dois caminhos: ou entendia por origem a gênese natural, psicológica, das ideias na evolução psicológica do homem; ou entendia por origem a derivação lógica de uma ideia a respeito de outra que pode ser seu antecedente racional; ou entendia a origem no sentido das verdades de fato de que fala Leibniz; ou entendia a palavra origem no sentido das verdades de razão, segundo diz também Leibniz. Um exemplo esclarecerá o que quero dizer. E o mesmo exemplo que pus na lição anterior, e me bastará, pois, aludir a ele. A origem de uma ideia, como a ideia de esfera, pode ser considerada psicologicamente ou logicamente. Psicologicamente estudaremos as sensações, as percepções que puderam produzir naturalmente, biologicamente, em nós a noção de esfera; por exemplo, ter visto objetos dessa forma, naturais ou artificiais. Mas outro sentido da palavra origem é considerar a esfera como originada pelo movimento de meia circunferência girando ao redor do diâmetro.
Tinha, pois, que escolher Locke aqui o sentido em que ia tomar a palavra origem, pois segundo o sentido em que a tomasse, conduziria sua investigação (e, naturalmente, a dos seus sucessores) por um determinado caminho. Eis aqui que Locke escolheu o caminho da psicologia. Por origem entende Locke o caminho psicológico segundo o qual se formam em nós as ideias. Desde o princípio, pois. a teoria do conhecimento de Locke se coloca sob o signo da psicologia. Locke distingue duas fontes possíveis de nossas ideias: a sensação e a reflexão. Locke entende por sensação o elemento psicológico mínimo, a modificação mínima da mente, da alma, quando algo, por meio dos sentidos a excita, lhe produz essa modificação; e entende por reflexão o perceber a alma aquilo que nela própria acontece. De modo que a palavra “reflexão” não tem em Locke o sentido habitual, mas tem um sentido equivalente ao de experiência interna, enquanto que a palavra “sensação” viria a significar a experiência externa.
Todo o esforço de sutileza e de análise de Locke vai encaminhado a mostrar que as ideias, ou são simples e têm sua origem num sentido ou em dois sentidos, ou na combinação de um sentido com a reflexão ou de dois sentidos com a reflexão; ou são compostas, quer dizer, estão formadas de amassilhos de ideias simples. Assim, por exemplo, a ideia de extensão é simples, porém está formada de impressões que procedem do sentido da vista, do sentido do tato e do sentido muscular. Mas a ideia de substância é composta; está formada por outras ideias que se agrupam, que se unem. Essa união de outras ideias, essa síntese de outras ideias, é o que constitui para Locke a ideia de substância, que ele define com uma palavra muito típica: como o “não-sei-quê” que está debaixo das diversas qualidades, das diversas sensações, das diversas impressões que uma coisa nos produz. Esse “não-sei-quê” era já, desde logo, suscitar por outros que vieram depois, o problema da substância. Porque Locke não duvida um momento, não põe em questão a metafísica de Descartes. Por conseguinte, para Locke as ideias simples, que nos vêm da sensação e da reflexão ou de uma combinação entre sensação e reflexão, são ideias às quais corresponde uma realidade, uma realidade que existe em si mesma e por si mesma, como a substância extensa de Descartes.
Do mesmo modo nossa intuição de nós mesmos é para Locke o caminho que nos conduz à presença de uma substância real, que existe em si mesma e por si mesma, que somos nós mesmos. Por conseguinte, é a metafísica cartesiana que está por debaixo de toda a teoria do conhecimento de Locke. A única coisa que fez Locke foi analisar o conhecimento, esmiuçá-lo, chegar a seus últimos elementos, que são as ideias, e mostrar como as ideias complexas se formam por composição, por generalização e abstração das simples, e como as ideias simples são os elementos últimos que reproduzem a mesma realidade. [Morente]