Suponho que a objetividade do valor implica a sua transcendência. Porém não há termo de uso mais largo e mais ambíguo que o de transcendência. Frequentemente, os filósofos de procedência kantiana têm afirmado a transcendência do valor. Mas é preciso saber de que transcendência se trata. Se a transcendência for entendida em sentido kantiano, como sinônimo de incognoscível, o valor não pode ser transcendente, porque então não seria conhecido; mas como o valor é valor para o sujeito pessoal ou geral que o conhece, como esta relação com o sujeito cognoscente é da essência do valor, a conclusão kantiana há de ser, sempre, que os valores são imanentes. A imanência dos valores é inevitável em toda a tradição kantiana. Em Kant não são apenas os produtos da razão prática que constituem valorações subjetivas; é valoração subjetiva também o objeto da razão pura, porque se todo objeto é determinado pelo sujeito, todo objeto afinal é valoração do sujeito. Tudo é imanente, não só o reino da Cultura, mas também o reino da Natureza. Se tudo é imanente, as cousas perdem o seu significado próprio, como portadoras de valor, para revestirem os significados que lhes são atribuídos pelo sujeito. Este humanismo elimina a significação da realidade cósmica e metafísica e pretende tornar o homem o único ser significativo, porque portador da significação dos objetos. É um humanismo inevitável em qualquer teoria kantiana, em qualquer teoria positivista, empirista ou racionalista. — Separado da Natureza, o homem se vê cercado de objetos feitos pela ciência e pela técnica. Podemos lembrar aqui a distinção estabelecida por Heidegger entre objeto e cousa: interpreto essa distinção, tomando o objeto pelo correlato da razão científica, e a cousa como um centro de significações metafísicas. O objeto é um produto lógico, científico, humano; não tem outro valor, senão aquele que o homem lhe atribui; a cousa, ao contrário, é portadora de valor, como um foco de significações e de sentidos que o sujeito descobre. Transformada porém a cousa em objeto científico e os fenômenos em fatos amorfos, fatos e objetos são entidades mortas, que o homem fecunda pela valoração. Uma vez que as ciências da natureza desconheceram e negaram a Natureza, essa fecundação dos objetos e dos fatos pela valoração humana é uma tese frequente nas teorias do valor. E se é o homem que fecunda os fatos e os objetos pela sua valoração, o valor é então subjetivo.
Quando se negaram as metafísicas tradicionais, quando se negou o realismo da cousa, negou-se também a objetividade do real. Negada a objetividade do real, é contraditório afirmar a objetividade dos valores, exceto como objetividade projetada pelo sujeito, objetividade subjetiva. Esta falsa objetividade se encontra por exemplo na moral de Kant: se o imperativo categórico se funda só na razão humana, se não resulta do acordo entre as normas da razão e o fundamento metafísico do dever–ser, então esse imperativo é subjetivo e não objetivo. O mesmo sucede com os valores: é contraditória a afirmação da transcendência do valor em qualquer teoria que não rejeite os postulados kantianos. Estes postulados, que traem o mais profundo antropocentrismo, geraram todas as teorias humanistas do valor.
O humanismo das teorias do valor se revela nas classificações que fazem dos mesmos. Esse humanismo penetra até as teorias metafísicas do valor. Nessas classificações, o valor se apresenta como o que deve ser conhecido, admirado e amado pelo homem, como se o valor valesse porque o homem o ama e não inversamente. Nas teorias subjetivistas, o valor perde a subsistência e se torna simples produto da vida biológica, ou das operações humanas valorativas.
Mas o valor, ao contrário, se manifesta dotado de insistência metafísica; manifesta-se, digamos, qual um modelo transcendental, apreendido imediatamente pela vivência emotiva, sem que isto elimine a sua cognoscibilidade intelectiva. Nesta perspectiva metafísica o valor vale por si e eu me descubro e me reconheço nele. É, como diria Santo Agostinho, uma iluminação, por onde transluz o supremo sentido do sagrado e do divino. O homem se realiza em função do valor e não inversamente. O valor não vale porque eu o queira, mas eu o procuro porque ele vale. Tal é uma tese inteiramente válida até o momento em que não incorre no erro de substituir o ser pelo valor. Menos incorreto seria converter o valor nalgum dos transcendentais da metafísica medieval, do que ontologisar o valor, pondo-o no lugar do Ser e tornando inexplicáveis o Ser e o valor. Toda teoria que se recusa a admitir a identificação do ser e do valor no Absoluto, se revela ainda mais incoerente, quando a mesma teoria que sustenta a objetividade do valor, separa o valor e o ser, e declara até mesmo a irrealidade do valor.
Suponho que o valor é uma realidade mais real que a do mundo contingente. Que é o modelo, a imagem que se identifica com o Ser Absoluto. Nega-se porém a realidade do valor quando se opõe o ser ao valor, sob fundamento de que o valor não é, mas vale; e vale como norma ideal, ou como condição de possibilidade, como algo que está fora da existência e da realidade. Em Kant também, Deus, a liberdade e a imortalidade são postulados da razão prática, são valores, mas isto não quer dizer que existam. Suponho que entre o valor e o ser relativo ou contingente, há uma distinção, mas não pode haver separação. Scheler, Hartmann e Johannes Hessen sabem que o valor só se manifesta aderido a um ser e que sem o ser o valor não se manifesta. [Barbuy]