E agora lembremo-nos de que o primeiro poema cosmogônico tem, por tradição remotíssima, o nome de Teogonia. Importa que o não esqueçamos: a real ou pretensa cosmogonia é pretensa ou real teogonia. Fala-se de mundo, ou de pedaços do mundo, como se de deuses se falasse; e de deuses se fala como se de mundo ou de pedaços do mundo se falasse. Em Hesíodo, mundo sucede a mundo, como reinado de um deus sucede ao do outro. Úrano, Crono e Zeus tanto designam deuses quanto mundos que cada um deles governa. O mundo de Urano não é o de Crono, nem o de Crono é o de Zeus. Para Hesíodo não há mundo, há mundos, mundos que uns a outros se sucedem pelo desenvolver-se, pelo explicar-se, pelo desencobrir-se o que Céu e Terra envolvem, implicam e encobrem. Não é só a Terra, mas Céu e Terra, que formam assento firme, dado a deuses e homens. Céu e Terra são os primeiros; depois vêm os deuses (se não consideramos que Céu e Terra já são deuses). Homens são os últimos a chegar. É fácil descobrir a mal encoberta intenção do poeta: não quer ele, como nenhum grego queria, que homens convivessem com os monstros dos mundos pretéritos. Mas seria necessário depor tanta ênfase na acomodação do homem a um mundo, ou de um mundo a um homem, na humanização de mundo e de deuses, se, na realidade, ele não tivesse visto o que Sófocles viria a dizer, mais de dois séculos depois: «enormes e pavorosas, muitas coisas existem, mais que o homem, porém, não há nenhuma»? O sacerdócio de Delfos e os poetas gnômicos da Grécia arcaica reencareceram o intento da Teogonia hesiódica: «homem, sabe o que és; não queiras ultrapassar os limites de tua humanidade; uma [71] é a estirpe dos deuses, outra, a dos homens». Baldados esforços: que proviria da Excessividade do Caos? Mundos que são excelências mal contidas, deuses que são excessos incontidos, e homem que é incontinência do excessivo. No mundo mais propriamente grego, que é o do maior de todos os trágicos, bem se mostra que um mundo, agora completo, com Céu-Terra, Deuses e Homens, é a excedência, o transbordar das águas primordiais do Grande Abismo. Entre o mundo que foi, o mundo que é, mundo que venha a ser, sempre se entrevê, no entremundos, raivando, o ímpeto irreprimível da criação de todos os mundos que foram, do mundo que é, dos mundos que virão a ser. [EudoroMito:71-72]
- Adin Steinsaltz
- Isaïe Tishby
Adin Steinsaltz
Adin Steinsaltz (Adin Even Yisrael): A ROSA DE TREZE PÉTALAS. Maayanot, 1992. (SRTP)
O mundo físico onde vivemos, o universo que nos rodeia, observados objetivamente, são apenas uma parte de um sistema de mundos de uma vastidão inimaginável. A maioria desses mundos são espirituais em sua essência; são de uma ordem diferente do nosso mundo conhecido. O que não significa necessariamente que existam em algum outro lugar, mas que existem em dimensões diferentes do ser. Mais ainda, os diversos mundos interpenetram-se e interagem de modo tal, que podem ser considerados contrapartidas entre si, cada um refletindo ou projetando-se no de baixo ou no de cima, com todas as modificações, mudanças e inclusive distorções que são resultado dessa interação. A soma dessa troca infinitamente complexa de influências avançando e retrocedendo entre as diferentes esferas de ação é que abrange o mundo específico da realidade que experimentamos na nossa vida diária.
Ao falar de mundos superiores ou inferiores, não tenho a intenção de descrever uma relação física real; porque no campo de ação do espiritual não há tal divisão, e as palavras “alto” e “baixo” referem-se somente ao lugar de qualquer mundo particular, na escada da causalidade. Chamar um mundo de mais alto, significa que ele é mais primário, mais básico em termos de estar mais próximo de uma fonte de influência primordial, enquanto um mundo inferior seria um mundo secundário — em certo sentido, uma cópia. Porém, a cópia não é apenas uma imitação e sim um sistema completo, com vida própria mais ou menos independente, sua própria variedade de experiências, características e propriedades.