mitopeia

Agora vamos jogar de propósito deliberado. No fim de um fragmento de Schelling, intitulado «Ideias para uma filosofia da Natureza» (Jubilaunsdruck, vol. I, p. 706, Munchen, 1927), lê-se esta curta frase: «Natureza tem de ser Espírito visível, e o Espírito, Natureza invisível.» Joguemos o nosso jogo: «um mundo seria um deus visível e um deus, um mundo invisível». Isto nos lembra um dos possíveis sentidos do fragmento 30 de Heráclito, que completamos ou, antes, prolongamos sem pretensão de acertar no que o Efésio verdadeiramente pensou: Cosmos é Fogo que se extingue; reaceso o Fogo, nele se consome o Cosmos. Cosmos «vira» Fogo, Fogo «vira» Cosmos. Fogo e Cosmos se opõem como o anverso e o reverso da mesma moeda. Analogamente se pode pensar a relação entre um deus e seu mundo. Em outros fragmentos do mesmo filósofo, a «viragem» diz-se «morte». Se nos apropriamos deste modo de dizer, se o transpropriamos, o resultado é surpreendente: a «cosmofania teocríptica» que, a nosso ver, é desenvolto, desencoberto, nudificado germe do mito, bate violentamente de encontro à mitologia que se entende como «biografia dos deuses». A verdade corre em sentido oposto: mito não é «biographia», mas «thanatographia». O que, evidentemente, significa: facto seminal do mito não é a vida de um deus, mas, sim, a morte dele. Poder-nos-iam objectar que «deuses» e «imortais» são sinônimos na mitopeia grega. Ainda assim, não nos desdizemos. A uma, porque não faltam naquela mitopeia deuses que morrem, embora se emende a mão, acrescentando que, depois de mortos, ressuscitam; e depois porque sempre se pode interpretar a morte como metamorfose. E então diríamos: um deus morre como deus e ressuscita como mundo, ou, ainda, um mundo é a última e mais espantosa metamorfose de um deus. Não nos faltam apoios históricos e antropológicos (cf. Sempre o mesmo acerca do mesmo, nas últimas páginas, e adiante, §§ 58 e segs.) para manter bem firme o que se poderia olhar como um castelo de cartas. Não joguei sem trunfos [48] que assegurassem o sucesso do jogo em meu proveito, que é o de que se me afigura ser a verdade. Porém, todos eles, em conjunto bem compacto, comprometem o mito com a religião, e os mitógrafos de hoje não querem nem saber de semelhante compromisso, se ele não for apenas acidental. Mais um obstáculo a contornar ou a remover. Preferimos removê-lo a contorná-lo. [EudoroMito:48-49]