mitologia

Por escrever está a mitologia que não seja nem queira ser «biografia dos deuses» ou, pelo menos, que não queira ficar por aí. Bem sabemos que por aí julga não ficar quando, terminado o rol dos deuses, procede pelo relato da lenda heroica. Mas o feito comum de todos os mitógrafos é que por perfeito deem o trabalho mitográfico e mitológico, uma vez dispostos, em obediência a critérios que não importa mencionar e, muito menos, discutir, os relatos tradicionais que compõem a tal biografia dos deuses e a consecutiva biografia dos heróis. Por aí ficam todos se não ousam dizer a modo de prefácio, introdução ou, ainda, de comentários intercalados o que entendem por mito. Raríssimos, em todo o caso, são os que valem a pena ser lidos, quando a exigência do leitor ultrapassa a mesma curiosidade que os leva a percorrer as galerias de um museu de cera ou uma fugidia saudade que os chama à releitura de histórias que deliciaram a sua infância. Decerto que não pomos em dúvida a honestidade de quem afirme que, se outra coisa fizesse, não teria feito o que fazer devia; que a não ser biógrafo de deuses e heróis, o mitólogo nada seria. Menos do que nada: abominável detrator de uma tradição por dezenas de séculos ininterrupta. Não estou certo de acertar caminho desviando-me de tão respeitável e respeitada tradição. Mas vale todas as penas tentá-lo; até a de retroceder ao ponto de partida, e partir por outro desvio. Só não vale pena nenhuma o abrir portas amplamente abertas, repetir a lição lida e relida, a ponto de nos acometer a náusea só ao pensar na eventual obrigação de tornar a lê-la, mais diluída ou mais concentrada, mais repleta ou mais despojada de referências eruditas. Se o leitor imaginasse quão [43] pouco custa a aparente erudição… Se mo pedir, gostosamente lhe confiarei o segredo dessa tão ambicionada aparência. Mas vamos ao que em verdade à verdade importa. Que mitologia está por escrever, depois de tantas que se escreveram? Que mitologia poderá ser a que não seja «biografia dos deuses»? Pois não é da vida dos deuses que a mitologia sempre tratou, como se de nada mais lhe conviesse tratar? [EudoroMito:43-44]


Porém, há maneira e maneira de falar. Uma é a dos alegoristas, outra a dos tautegoristas, isto é, a dos que pensam que o mito diz precisamente o que disse e nada mais além do que ficou dito. E aqui se levanta diante de nós, desafiante e soberbo, o óbice em que mitógrafos e mitólogos não pensam, e porque o não pensam, vão sempre escrevendo a biografia de deuses e heróis. É que, no mito, não se pode negar que em primeiro plano não se exponham deuses e heróis, principalmente deuses, à nossa visão interessada. Ninguém dirá, por conseguinte, que inteiramente falsa seja a noção comum de mito como «biografia dos deuses». Falsa não é, mas também não é a inteira verdade do mito. Algo ficou esquecido. Tentemos lembrar o que se envolveu de um esquecimento que reputamos como a quase inevitável razão de ser e do haver uma mitologia apresentada e representada pelo que não é mais do que «biografia dos deuses». Até hoje, mitógrafos e mitólogos esqueceram-se do mundo em que os deuses vivem a vida que bem ou mal descrevem. Só isto — o que não é pouco nem de pouco alcance. Mas se dele ainda se lembram, deixando subentendido que esse mundo é o deles e o nosso, melhor fora que o não lembrassem. Pois se neste ainda se podem achar vestígios de Deus da Teologia Revelada, do que se fez o homem que veio a ser Homem, decerto que o mesmo mundo inabitável se tornou para o deus ou deuses do mito. A vida deles, tal como a literatura mitográfica a descreve, não poderia decorrer neste mundo, porque este é o mundo que adequadamente se definiria pela inexistência dos deuses, ou pela crença em que eles já não existem, provisto que alguma vez tenham existido. Mas se a vez passou, em que se acreditava que existissem, parece que, com ela, passou também a crença em que, a existirem, só podiam existir em mundo que não se lhes recusava a existência. Em suma, à «biografia dos deuses», que a mitologia pretende ser, e mais não ser, o que sempre faltou, o que continua faltando, é traçar o círculo de um horizonte próprio dos deuses cuja biografia se escreveu. Os deuses não viveram no Mundo, mas cada um em seu mundo. Contudo, ainda por aqui não ficam os indícios do delineamento de uma nova ou renovada mitologia. [EudoroMito:46]


Os filósofos críticos gregos anteriores a Sócrates, os pensadores pré-socráticos e os sofistas, praticamente destruíram sua tradição mitológica nativa. O novo enfoque que deram à solução dos enigmas do universo, da natureza e do destino do homem, amoldava-se à lógica das incipientes ciências naturais — física e astronomia — e das matemáticas. Sob sua poderosa influência, os antigos símbolos mitológicos degeneraram em elegantes e divertidos temas para romances, tão improfícuos quanto as tagarelices sobre os intrincados casos de amor e desavenças da hierarquia celestial. Na Índia, pelo contrário, a mitologia nunca deixou de apoiar e facilitar a expressão do pensamento filosófico. A rica pictografia da tradição épica, as características das divindades cujas encarnações e proezas constituem o mito, e ainda os símbolos religiosos, populares e esotéricos, serviram reiteradamente aos fins de ensino didático, convertendo-se em receptáculos com os quais os mestres comunicavam suas renovadoras experiências da verdade. Efetuou-se, assim, uma cooperação do mais recente com o mais antigo, do mais baixo com o mais elevado, uma maravilhosa amizade entre a mitologia e a filosofia; e isto formou um tal alicerce que toda estrutura da civilização indiana tornou-se plena de significação espiritual. A estreita interdependência e a perfeita harmonização de ambas servem para refrear a natural tendência da filosofia indiana para o esotérico e recôndito, apartada da vida e da tarefa de educar a sociedade. No universo hindu, o folclore e a mitologia levam às massas as verdades e os ensinamentos filosóficos. Nesta forma simbólica, as ideias não têm que ser rebaixadas para tornarem-se populares. A vívida e adequada pictografia conserva as doutrinas sem alterar seu sentido. [Zimmer]