marginalizado

Há tipos de heroicidade de que a epopeia desdenhou. De nenhum poema épico consta a heroica renúncia ao mundo das «coisas». Isso não se encontra senão na vida dos Santos, como Francisco de Assis. Que é da epopeia dos marginalizados, dos que se puseram à obscura margem do caminho em que vive a maioria das gentes, nele progredindo até as alturas do renome universal, ou regredindo até a fossa «imunda» de uma completa absorção pelo sem nome? O marginalizado só pode viver no anonimato. E, no entanto, só esse, ou alguns desses, possuem os pré-requisitos para atingir o grau heroico a que acederíam se do não querer seguir o caminho que os outros percorrem por vontade indômita ou mera obediência à rotina, fizeram um crer, em regime de total liberdade de crer ou não crer no que os outros nem creem, por serem completamente destituídos do que possa chamar-se de liberdade. No limite-liminar da objetividade coisística é que o marginalizado se decide ou não. Decide-se? Então seus passos desenham, às margens de uma voie royale, veredas que começam a sulcar o grande sertão, direito ao rio da terceira margem. E terceira é a margem do trans-objetivo. Na religião e na arte ou pela religião e a arte, o marginalizado — aquele que a «pessoasujeito» do Mundo dos objetos-coisa expulsou de sua comunidade por não-colaboração, por falta de representatividade no drama diabólico da fragmentação objetivante e coisífica — pode aceder a qualquer mundo trans-objetivo, precisamente àqueles em que se representam os primeiros dramas de [125] transcendentização do objetivo. [EudoroMito:125-126]


76. Ai dos que se desinteressam pela competição! Ai do que não queira fazer mais do que o outro faz! Começará por fazer um pouco menos, e quando dá por si, nada fazendo, está irremediavelmente marginalizado. Marginalizados, porém, há-os de várias espécies. Dos de uma, todos sofrem os efeitos da marginalização; até os das outras espécies de marginalização. São os que se vingam, mediante o crime, do fracasso por própria inépcia. Só merecem a consideração que seres humanos merecem, pois deixaram de competir no trabalho, para competir no jogo que passam a jogar com os agentes sociais da repressão e, por isso, merecem os forçados trabalhos a que os condenaram. A preguiça também marginaliza; mas a preguiça é equívoca: pode ser apenas a recusa de um trabalho que se trabalha a contragosto, sem que se saiba se ela se manteria em trabalho que se trabalhasse por gosto. Também há (e quantos!) os marginalizados pela miséria dos que trabalham sem a remuneração mínima para a mais miserável das sobrevivências. Mas como esses trabalham ou trabalharam em circunstâncias e oportunidades que lhes foram dadas, pouco ou nada interessam a seus semelhantes, a não ser como «objetos» de comiseração, que é luxo a que se dá, por vezes, o homem da objetividade, quando nada tem que fazer: ou então servem de pretexto para que outros trabalhem no sentido de substituir um sistema por outro sistema de trabalho, que talvez acabe, de uma vez, com a espécie de marginalizados que mais nos interessa considerar agora: os que a si mesmos se marginalizaram por descrença nas benesses de qualquer gênero de trabalho. Escusaríamos de repetir, se a memória não fosse fraca, que «trabalho», aqui, apenas significa esforço exercido só pela necessidade de sobrevivência, o que se faz para comer o pão amassado pelo suor do próprio rosto. Levo muito a sério a maldição bíblica por Deus lançada sobre o homem que vendeu sua alma ao Diabo, sobre aquele que os anjos, empunhando espadas de fogo, impedem o regresso ao [164] Paraíso. Esses têm de inventar outro, de sua lavra. Que lhes preste! Não o quero para mim, ao preço que por ele me exigem. Prefiro a marginalização em que me marginalizei, para, seguindo pela margem e à margem do caminho dos outros, chegar à trans-objetividade dos ociosos que o devem ser, e não dos que o podem ser, só nos instantes em que o podem, mas não querem. [EudoroMito:164-165]