METAFÍSICA DO RACIONALISMO

A metafísica do racionalismo encontra-se representada em sua forma mais perfeita por Leibniz, cuja teoria do conhecimento vimos na lição anterior.

Essa teoria do conhecimento de Leibniz é o solo, é o território sobre o qual os pensamentos filosóficos de Leibniz foram pouco a pouco desenvolvendo-se. A metafísica de Leibniz não é uma teoria sistemática que tenha sido de um golpe pensada na sua totalidade por ele e exposta numa forma conclusiva e terminante, antes, ao contrário, as ideias metafísicas leibnizianas foram-se desenvolvendo a fio, ao longo da vida deste grande pensador, principalmente canalizadas e estimuladas por seus estudos científicos e metodológicos, tanto na teoria do conhecimento como na física e nas matemáticas.

Por isso o sistema metafísico de Leibniz não foi exposto por seu autor senão nos últimos anos de sua vida, e mesmo a obra que o contém da maneira mais completa e conclusiva só foi publicada depois de sua morte. Mas se o álveo em que se foram formando as ideias metafísicas de Leibniz foi a teoria do conhecimento, a matemática e a física, cabe dizer que o ponto de partida encontra-se totalmente na metafísica cartesiana. Uma e outra vez comprovamos o fato histórico de que Descartes estabelece suas Meditações metafísicas, em seu Discurso do método, em seus Princípios de Filosofia, umas bases sobre as quais havia de especular todo o pensamento filosófico ulterior. A filosofia de Descartes levanta um certo número de problemas, tanto de lógica como de metafísica, como também de matemáticas e de física, que constituem os problemas essenciais de todo o século XVII e de grande parte do século XVIII. De modo que os filósofos posteriores a Descartes são aquilo que são, ora porque desenvolvem pensamentos cartesianos, ora porque se opõem a estes pensamentos com maior ou menor êxito. Leibniz também. Desde sua mocidade apossa-se de Leibniz o afã de aprofundar nas noções metafísicas de Descartes, e partiu desta metafísica; mas não podia satisfazê-lo a metafísica cartesiana, e não podia satisfazê-lo por algumas razões que vou expor imediatamente.

Ponto de partida no eu.

Que é que Leibniz encontrava em Descartes que pudesse servir-lhe de base? Pois simplesmente o mesmo que os demais filósofos de sua época, ou seja a descoberta essencial cartesiana do cogito. O ponto de partida de toda filosofia não pode ser outro que a intuição do eu, da alma como substância pensante. Leibniz aceita, pois, este ponto de partida cartesiano e aceita também com o maior entusiasmo a distinção fundamental que faz Descartes entre as ideias claras e as ideias confusas. Para Leibniz, como para Descartes, as ideias confusas são problemáticas; constituem outras tantas interrogações, outros tantos enigmas, cuja solução consiste em esforçar-se para que a razão, mediante as análises conceptuais, transforme essas ideias obscuras em ideias claras.

Mas precisamente aqui, e com razão, Leibniz nota a falta na filosofia de Descartes, do estudo profundo do trânsito que vai das ideias confusas às ideias claras. Como se verifica essa passagem, esse trânsito de uma ideia confusa a uma ideia clara? Se a ideia confusa, mediante o pensamento racional, chega a ser ideia clara, é, sem dúvida, porque a ideia confusa continha no seu seio germinativamente a ideia clara. Pois bem; já sabemos que em toda a terminologia filosófica deste século "ideia confusa" equivale à sensação, percepção sensível, experiência sensível. Por conseguinte, a experiência sensível tinha que conter germinativamente em seu seio a conclusão racional, a ideia clara. Relembremos como resolveu Leibniz o problema do inatismo ou empirismo apresentado por Locke. No sentido de que as verdades de razão, se bem não são inatas na totalidade e no exato pormenor de sua estrutura, são, todavia, inatas enquanto nascem de germes obscuros que estão implícitos em nossa razão.

Se, pois, tudo isto podia satisfazer a Leibniz, havia, ao contrário, outros elementos na metafísica de Descartes que não o podiam contentar de maneira alguma. O principal elemento contra o qual Leibniz se revolta, negando-se inteiramente a admiti-lo, é o que poderíamos chamar o "geometrismo" de Descartes. Como sabemos, Descartes estabelece por intuição direta, a substância pensante, o eu, a alma pensante. Estabelece também, por uma intuição direta, a existência do Deus, porque descobre que a ideia de Deus é a única ideia na qual o objeto, a existência do objeto, está garantida pela ideia mesma. Esta é a interpretação que demos do argumento ontológico. Mas, em troca, a substância material, extensa, aparece a Descartes pura e simplesmente como correlato objetivo de nossas ideias geométricas. De sorte que para Descartes a substância material, a matéria é pura e simplesmente extensão. Isto é que perturba a Leibniz e provoca nele uma oposição violenta a Descartes. Como a matéria pode ser pura e simplesmente extensão? A extensão, o puro espaço geométrico é totalmente irreal. Não é uma realidade, não é mais do que as combinações mentais que fazemos com pontos, retas, superfícies, volumes. Certamente, indubitavelmente, a realidade mesma, a realidade em si (seja ela qual for, e que depois pesquisaremos) terá que acomodar-se à forma do espaço, à forma da extensão. As coisas materiais haverão de ser também extensas. Porém não exclusivamente extensas. Definir a matéria pela pura extensão é estabelecer uma identidade intolerável entre a coisa real e a figura geométrica, e a isso tendia realmente Descartes. Para Descartes, na realidade, as coisas reais não são nem mais nem menos que simples figuras geométricas. Essa tendência cartesiana a reduzir o físico simplesmente à espacialidade, à extensão pura geométrica é a dificuldade contra a qual Leibniz vai-se revoltando constantemente. [Morente]