AFETO (ESPINOSA)

affectus

III. Modos de pensar como amor, desejo, ou quaisquer outros que sejam designados pelo nome de afeto [affectus] do ânimo, não se dão se no mesmo indivíduo não se der a ideia da coisa amada, desejada, etc. Mas a ideia pode dar-se ainda que não se dê nenhum outro modo de pensar. ÉTICA II Axiomas

Além disso, quanto ao segundo, as coisas humanas dar-se-iam muito mais felizmente se nos homens estivesse igualmente o poder tanto de calar quanto de falar. Ora, a experiência ensina mais que suficientemente que os homens nada têm menos em seu poder do que a língua, e que nada podem menos do que moderar seus apetites; daí decorre que a maioria creia que fazemos livremente apenas o que apetecemos de leve, já que o apetite destas coisas pode ser facilmente diminuído pela memória de outra coisa que frequentemente recordamos; mas de jeito nenhum crê que fazemos livremente aquilo que apetecemos com um grande afeto [affectus] e que não pode ser acalmado pela memória de outra coisa. A bem da verdade, se não tivessem experimentado que fazemos muitas coisas das quais depois nos arrependemos, e que frequentemente, ao nos defrontarmos com afetos [affectus] contrários, vemos o melhor e seguimos o pior, nada os impediria de crer que tudo fazemos livremente. Assim o bebê crê apetecer livremente o leite, o menino irritado, querer vingança, e o medroso, a fuga. Por sua vez, o embriagado crê que fala por livre decreto da Mente aquilo que depois de sóbrio preferiria ter calado; assim o delirante, a tagarela, o menino e muitos outros de mesma farinha creem que falam por livre decreto da Mente, quando na verdade não podem conter o ímpeto que têm de falar, de tal maneira que a própria experiência, não menos claramente do que a razão, ensina que os homens creem-se livres só por causa disto: são cônscios de suas ações e ignorantes das causas pelas quais são determinados; e, além disso, ensina que os decretos da Mente não são nada outro que os próprios apetites, os quais, por isso, são variáveis de acordo com a variável disposição do Corpo. Pois cada um modera tudo por seu afeto [affectus], e aqueles que se defrontam com afetos [affectus] contrários não sabem o que querem, ao passo que os que não lidam com nenhum são impelidos para um lado ou outro pelo menor impulso. Sem dúvida, tudo isso mostra com clareza que tanto o decreto da Mente quanto o apetite e a determinação do Corpo são simultâneos por natureza, ou melhor, são uma só e a mesma coisa que, quando considerada sob o atributo Pensamento e por ele explicada, denominamos decreto e, quando considerada sob o atributo Extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso, chamamos determinação; o que será patente de maneira ainda mais clara a partir do que se vai dizer. Pois há outra coisa que eu aqui gostaria de observar antes de tudo: nada podemos fazer por decreto da Mente se não o recordamos. P. ex. não podemos falar uma palavra se não a recordamos. Ademais, não está no livre poder da Mente lembrar-se ou esquecer-se de uma coisa. Portanto crê-se estar no poder da Mente apenas isto: podemos, pelo só decreto da Mente, falar ou calar sobre a coisa que recordamos. Entretanto, quando sonhamos falar, cremos fazê-lo por livre decreto da Mente, e contudo não falamos, ou, se falamos, é pelo movimento espontâneo do Corpo. Também sonhamos ocultar algo aos homens, e isso pelo mesmo decreto da Mente pelo qual, na vigília, calamos sobre o que sabemos. Enfim, sonhamos fazer por decreto da Mente algumas coisas que não ousamos na vigília, e por isso eu bem gostaria de saber se na Mente dão-se dois gêneros de decretos, os Fantásticos e os Livres. Porque se não queremos enlouquecer a este ponto, cumpre necessariamente conceder que este tlecreto da Mente tido por livre não se distingue da própria imaginação, ou seja, da memória, e não é nada além daquela afirmação que a ideia, enquanto é ideia, necessariamente envolve (ver Prop. 49 da parte 1). E, por conseguinte, estes decretos da Mente se originam nela com a mesma necessidade que as ideias das coisas existentes em ato. Por isso aqueles que creem que falam, ou calam, ou fazem o que quer que seja, por livre decreto da Mente, sonham de olhos abertos. ÉTICA III Afetos Prop. II

Escólio: Vimos, assim, que a Mente pode padecer grandes mudanças e passar seja a uma perfeição maior, seja a uma menor, e certamente estas paixões nos explicam os afetos [affectus] de Alegria e Tristeza. Assim, por Alegria, entenderei na sequência a paixão pela qual a Mente passa a uma maior perfeição. Por Tristeza, a paixão pela qual ela passa a uma menor perfeição. Em seguida, o afeto [affectus] de Alegria simultaneamente relacionado à Mente e ao Corpo, chamo Carícia ou Hilaridade; o de Tristeza, por sua vez, Dor ou Melancolia. Contudo, cumpre notar que a Carícia e a Dor são referidas ao homem quando uma das partes dele é afetada mais do que as outras; já a Hilaridade e a Melancolia, quando todas as partes são igualmente afetadas. Ademais, o que seja o Desejo, expliquei no Escólio da Proposição 9 desta parte, e não reconheço nenhum outro afeto [affectus] primário além destes três, pois mostrarei na sequência que os restantes se originam deles. Mas, antes de prosseguir, gostaria de explicar mais longamente a Proposição 10 desta parte, para que se entenda com mais clareza de que maneira uma ideia é contrária a uma ideia. ÉTICA III Afetos Prop. XI

Corolário: Só por termos contemplado uma coisa com um afeto [affectus] de Alegria ou Tristeza de que ela própria não é causa eficiente, podemos amá-la ou odiá-la. ÉTICA III Afetos Prop. XV

Demonstração: Pois somente deste fato decorre (pela Prop. 14 desta parte) que a Mente, ao imaginar depois tal coisa, será afetada por um afeto [affectus] de Alegria ou Tristeza, isto é (pelo Esc. da Prop. 11 desta parte), decorre que a potência da Mente e do Corpo será aumentada ou diminuída etc. E, por conseguinte (pela Prop. 11 desta parte), a Mente desejará imaginá-la ou (pelo Corol. da Prop. 13 desta parte) a isso terá aversão, isto é (pelo Esc. da Prop. 13 desta parte), ela a amará ou a odiará. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XV

Demonstração: Aquilo em que se assemelham, nós o havíamos contemplado no próprio objeto (por Hipótese) com um afeto [affectus] de Alegria ou Tristeza; e portanto (pela Prop. 14 desta parte), quando a Mente for afetada pela imagem daquilo, imediatamente será também afetada por um ou outro destes afetos [affectus] e, consequentemente, a coisa que percebemos ter esta semelhança será (pela Prop. 15 desta parte) por acidente causa de Alegria ou Tristeza; e por conseguinte (pelo Corol. preced.), ainda que aquilo em que a coisa se assemelha ao objeto não seja a causa eficiente destes afetos [affectus], contudo a amaremos ou a odiaremos. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XVI

Se imaginamos que uma coisa que costuma nos afetar com um afeto [affectus] de Tristeza tem algo semelhante a uma outra que costuma nos afetar com um igualmente intenso afeto [affectus] de Alegria, nós a odiaremos e a amaremos simultaneamente. ÉTICA III Afetos Prop. XVII

Demonstração: Com efeito (por Hipótese), esta coisa é por si causa de Tristeza e (pelo Esc. da Prop. 13 desta parte), enquanto com este afeto [affectus] a imaginamos, nós a odiamos; além disso, enquanto imaginamos que ela tem algo semelhante a uma outra que costuma nos afetar com um igualmente intenso afeto [affectus] de Alegria, nós a amaremos com um igualmente intenso impulso de Alegria (pela Prop. preced.); e por isso a odiaremos e a amaremos simultaneamente. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XVII

Escólio: Esta constituição da Mente, a saber, a que se origina de dois afetos [affectus] contrários, é chamada flutuação do ânimo, a qual, por conseguinte, está para o afeto [affectus] assim como a dúvida está para a imaginação (ver Esc. Prop. 44 da parte 2); e a flutuação do ânimo e a dúvida não diferem entre si a não ser segundo o Tnais e o menos. Mas cabe notar que, na Proposição precedente, deduzi as flutuações do ânimo de causas que, por si, são causa de um afeto [affectus] e, por acidente, do outro; isto fiz porque assim podiam mais facilmente deduzir-se das precedentes, e não porque negue que as flutuações do ânimo se originem no mais das vezes de um objeto que seja causa eficiente de ambos os afetos [affectus]. Pois o Corpo humano (pelo Post. 1 da parte 2) é composto de muitíssimos indivíduos de natureza diversa, e assim (pelo Ax. 1 após o Lema 3, que vem após a Prop. 13 da parte 2) pode ser afetado de muitíssimas e diversas maneiras por um só e o mesmo corpo; e vice-versa: porque uma só e a mesma coisa pode ser afetada de muitas maneiras, então ela também poderá afetar de muitas e diversas maneiras uma só e a mesma parte do corpo. A partir disso podemos facilmente conceber que um só e o mesmo objeto pode ser causa de múltiplos e contrários afetos [affectus]. ÉTICA III Afetos Prop. XVII

o homem, a partir da imagem de uma coisa passada ou futura, é afetado pelo mesmo afeto [affectus] de Alegria ou Tristeza que a partir da imagem de uma coisa presente. ÉTICA III Afetos Prop. XVIII

Demonstração: Enquanto [quamdiu] o homem for afetado pela imagem de alguma coisa, contemplará a coisa como presente, ainda que não exista (pela Prop. 17 da parte 2. e seu Corol.), e não a imagina como passada ou futura senão enquanto sua imagem está unida à imagem do tempo passado ou futuro (ver Esc. da Prop. 44 da parte 2). Por isso, a imagem da coisa, em si só considerada, é a mesma, quer referida ao tempo futuro ou passado, quer ao presente, isto é (pelo Corol. 2 da Prop. 16 da parte 2), a constituição do Corpo, ou o afeto [affectus], é a mesma, quer a imagem seja de uma coisa passada ou futura, quer de uma coisa presente; e por isso o afeto [affectus] de Alegria e de Tristeza é o mesmo, quer a imagem seja de uma coisa passada ou futura, quer de uma coisa presente. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XVIII

Escólio I: Chamo aqui a coisa de passada ou futura enquanto por ela fomos ou seremos afetados. P. ex., enquanto a vimos ou veremos, nos revigorou ou revigorará, nos lesou ou lesará, etc. Com efeito, enquanto assim a imaginamos, nesta medida afirmamos sua existência, isto é, o Corpo não é afetado por nenhum afeto [affectus] que suprima a existência da coisa; e por isso (pela Prop. 17 da parte 2) o Corpo é afetado pela imagem desta coisa da mesma maneira que seria se a própria coisa se achasse presente. Mas na verdade, porque no mais das vezes ocorre que aqueles experimentados em muitas coisas flutuem enquanto [quamdiu] contemplam a coisa como futura ou passada, e duvidem muito da ocorrência dela (ver Esc. da Prop. 44 da parte 2), daí decorre que os afetos [affectus] que se originam de semelhantes imagens das coisas não são tão constantes, mas, ao contrário, são no mais das vezes perturbados pelas imagens de outras até que os homens estejam mais certos da ocorrência da coisa. ÉTICA III Afetos Prop. XVIII

Demonstração: As imagens das coisas [como demonstramos na Prop. 19 desta parte) que põem a existência da coisa amada favorecem o esforço da Mente pelo qual ela se esforça para imaginar a coisa amada. Mas a Alegria põe a existência da coisa alegre, e tanto mais quanto maior é o afeto [affectus] de Alegria, pois esta é (pelo Esc. da Prop. II desta parte) passagem a uma maior perfeição; logo, a imagem de Alegria da coisa amada favorece no amante o esforço de sua Mente, isto é (pelo Esc. da Prop. II desta parte), afeta o amante de Alegria, e esta é tanto maior quanto maior tenha sido este afeto [affectus] na coisa amada. O que era o primeiro. Depois, enquanto uma coisa é afetada de alguma Tristeza, nesta medida é destruída, e tanto mais quanto de maior Tristeza é afetada (pelo mesmo Esc. da Prop. II desta parte); por isso (pela Prop. 19 desta parte), quem imagina que aquilo a que ama é afetado de Tristeza, também será afetado de Tristeza, e esta é tanto maior quanto maior tenha sido este afeto [affectus] na coisa amada. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XXI

Escólio: A Proposição 11 nos explica o que seja Comiseração, a qual podemos definir como sendo a Tristeza originada do dano a outro. Já quanto ao nome pelo qual chamar a Alegria que se origina do bem do outro, ignoro. Além disso, o Amor por aquele que fez bem ao outro chamaremos Apreço e, ao contrário, o Ódio por aquele que fez mal ao outro, Indignação. Enfim, cabe notar que não nos comiseramos apenas da coisa que amamos (como mostramos na Prop. 21 desta parte), mas também daquela pela qual nunca tivemos nenhum afeto [affectus], contanto que a julguemos semelhante a nós (como abaixo mostrarei). E por isso também temos apreço por aquele que fez bem ao semelhante e, ao contrário, nos indignamos com aquele que trouxe dano ao semelhante. ÉTICA III Afetos Prop. XXII

Escólio: Dificilmente esta Alegria pode ser sólida e sem conflito do ânimo. Pois (como logo mostrarei na Prop. 27 desta parte), enquanto imagina a coisa a si semelhante afetada por um afeto [affectus] de Tristeza, deve nesta medida entristecer-se; e o contrário se imaginá-la afetada de Alegria. Mas aqui só ao Ódio prestaremos atenção. ÉTICA III Afetos Prop. XXIII

Por imaginarmos afetada por algum afeto [affectus] uma coisa semelhante a nós e pela qual jamais nutrimos nenhum afeto [affectus], somos então afetados por um afeto [affectus] semelhante. ÉTICA III Afetos Prop. XXVII

Demonstração: As imagens das coisas são as afecções [affectio] do Corpo humano cujas ideias representam os corpos externos como que presentes a nós (pelo Esc. da Prop. 17 da parte 1), isto é (pela Prop. 16 da parte 2), cujas ideias envolvem a natureza de nosso Corpo e simultaneamente a natureza presente de um corpo externo. Se, portanto, a natureza do corpo externo for semelhante à do nosso Corpo, então a ideia do corpo externo que imaginamos envolverá uma afecção [affectio] de nosso Corpo semelhante à afecção [affectio] do corpo externo; por conseguinte, se imaginarmos alguém semelhante a nós afetado por algum afeto [affectus], essa imaginação exprimirá uma afecção [affectio] de nosso Corpo semelhante àquele afeto [affectus] e, assim, por imaginarmos afetada por algum afeto [affectus] uma coisa semelhante a nós, seremos afetados junto com ela por um afeto [affectus] semelhante. Mas, se odiarmos a coisa semelhante a nós, nesta medida (pela Prop. 23 desta parte) seremos afetados junto com ela por um afeto [affectus] contrário, e não semelhante. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XXVII

Corolário I: Se imaginamos alguém, por quem jamais nutrimos nenhum afeto [affectus], afetar de Alegria uma coisa semelhante a nós, seremos afetados de Amor a ele. Se, ao contrário, o imaginamos afetá-la de Tristeza, seremos afetados de Ódio a ele. ÉTICA III Afetos Prop. XXVII

Também nos esforçaremos para fazer tudo aquilo que imaginamos que os homens [Nota do autor: Por homem, entenda-se aqui e na sequência homens por quem jamais nutrimos afeto [affectus] algum] veem com alegria e, ao contrário, teremos aversão a fazer aquilo que imaginamos dar aversão aos homens. ÉTICA III Afetos Prop. XXIX

Quanto maior o afeto [affectus] por nós com que imaginamos ser a coisa amada afetada, tanto mais nos gloriftcaremos. ÉTICA III Afetos Prop. XXXIV

Demonstração: Esforçamo-nos (pela Prop. preced.), o quanto podemos, para que a coisa amada também nos ame, isto é (pelo Esc. da Prop. 13 desta parte), para que a coisa amada seja afetada de Alegria conjuntamente à ideia de nós mesmos. Portanto, quanto maior imaginamos a Alegria com que a coisa amada é afetada por nossa causa, tanto mais esse esforço é favorecido, isto é (pela Prop. 11 com seu Esc.), tanto maior é a Alegria de que somos afetados. Ora, quando nos alegramos por termos afetado de Alegria outro semelhante a nós, contemplamos a nós mesmos com Alegria (pela Prop. 30 desta parte); logo, quanto maior o afeto [affectus] por nós com que imaginamos ser a coisa amada afetada, tanto maior será a Alegria com que contemplaremos a nós mesmos, ou seja (pelo Esc. da Prop. 30 desta parte), tanto mais nos glorificaremos. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XXXIV

Escólio: Este Ódio à coisa amada unido à Inveja chama-se Ciúme, o qual, por isso, nada outro é que a flutuação do ânimo originada simultaneamente do Amor e do Ódio conjuntamente à ideia do outro a quem se inveja. Além disso, esse Ódio à coisa amada será maior em proporção à Alegria com que o Ciumento costumava ser afetado pelo Amor recíproco da coisa amada, e também em proporção ao afeto [affectus] que tinha por aquele outro ao qual imagina que a coisa amada se une. Pois, se o odiava, por isso mesmo odiará a coisa amada (pela Prop. 24 desta parte), visto imaginar que ela afeta de Alegria aquilo que ele próprio odeia; e também (pelo Corol. da Prop. 13 desta parte) por ser coagido a unir a imagem da coisa amada à imagem daquele que ele odeia, o que tem lugar na maioria das vezes no Amor pela mulher; com efeito, quem imagina a mulher que ama se entregar a outro, não só se entristecerá por ter o seu próprio apetite coibido, mas ainda terá aversão a ela por ser coagido a unir a imagem da coisa amada às partes íntimas e secreções do outro; ao que, por fim, se acrescenta que o Ciumento não é recebido pela coisa amada com o mesmo rosto que ela costumava oferecer-lhe, e também por isso o amante se entristece, como agora mostrarei. ÉTICA III Afetos Prop. XXXV

O desejo originado por Tristeza ou Alegria, por Ódio ou Amor, é tanto maior quanto maior é o afeto [affectus]. ÉTICA III Afetos Prop. XXXVII

Demonstração: Com efeito, se alguém começa a odiar a coisa que ama, tem coibidos mais apetites seus do que se nunca a tivesse amado. Pois o Amor é Alegria (pelo Esc. da Prop. 13 desta parte), que o homem (pela Prop. 28 desta parte) se esforça o quanto pode para conservar; e isso (pelo mesmo Escólio) contemplando a coisa amada como presente, e afetando-a de Alegria o quanto pode (pela Prop. 21 desta parte), esforço que certamente (pela Prop. pre-ced.) é tanto maior quanto maior o amor, assim como o esforço de fazer com que a coisa amada também o ame (pela Prop. 33 desta parte). Ora, esses desejos são coibidos pelo ódio à coisa amada (pelo Corol. da Prop. 13 e pela Prop. 23 desta parte); logo, pelo mesmo motivo o amante (pelo Esc. da Prop. 11 desta parte) será afetado de Tristeza, e tanto maior quanto maior tenha sido o Amor, isto é, além da Tristeza que foi causa de Ódio, outra se origina por ter amado a coisa; e, por consequência, contemplará a coisa amada com um maior afeto [affectus] de Tristeza, isto é, (pelo Esc. da Prop.13 desta parte) nutrir-lhe-á um ódio maior do que se nunca a tivesse amado, e tanto maior quanto maior tenha sido o amor. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XXXVIII

Escólio: Por bem entendo aqui todo gênero de Alegria e, além disso, o que quer que conduza a ela, sobretudo o que satisfaz a carência, seja ela qual for. Por mal entendo todo gênero de Tristeza, sobretudo o que frustra a carência. Com efeito, acima (no Esc. da Prop. 9 desta parte) mostramos que não desejamos nada porque o julgamos bom, mas, ao contrário, chamamos bom ao que desejamos; e, consequentemente, denominamos mau aquilo a que temos aversão; portanto, cada um, por seu afeto [affectus], julga, ou seja, estima o que é bom, mau, melhor, pior e, por fim, o que é ótimo e o que é péssimo. Assim, o Avaro julga a abundância de dinheiro ser o ótimo, e sua escassez, o péssimo. Já o Ambicioso nada deseja tanto quanto a Glória e, ao contrário, nada o aterroriza tanto quanto a Vergonha. Ademais, ao Invejoso nada é mais agradável do que a infelicidade do outro, e nada mais molesto do que a felicidade alheia; e assim cada um, por seu afeto [affectus], julga uma coisa boa ou má, útil ou inútil. De resto, o afeto [affectus] pelo qual o homem é disposto de maneira a não querer o que quer ou a querer o que não quer chama-se Temor, que por isso é nada outro que o medo enquanto por ele o homem é disposto a evitar, por meio de um mal menor, um mal que julga vindouro (ver Prop. 28 desta parte). Mas se o mal temido for uma Vergonha, então o Temor será denominado Pudor. Por fim, se o desejo de evitar um mal futuro é coibido pelo Temor de outro mal, de maneira que não saiba o que quer, então o Medo é chamado Consternação, principalmente se ambos os males temidos forem dos maiores. ÉTICA III Afetos Prop. XXXIX

Corolário II: Se alguém imagina que, por Ódio, fez-lhe algum mal um outro por quem jamais nutriu antes nenhum afeto [affectus], imediatamente se esforçará para retribuir-lhe o mesmo mal. ÉTICA III Afetos Prop. XL

Escólio: Se prevalecer o Ódio, ele se esforçará para fazer mal àquele que o ama, afeto [affectus] que se denomina Crueldade, principalmente se se crê que aquele que ama não deu nenhum motivo comum de Ódio. ÉTICA III Afetos Prop. XLI

Demonstração: Quando alguém imagina aquele a quem odeia ser também afetado de Ódio para consigo, por isso mesmo (pela Prop. 40 desta parte) se origina um novo Ódio, durando ainda (por Hipótese) o primeiro. Mas se, ao contrário, imagina que ele é afetado de amor para consigo, enquanto imagina isto, nesta medida (pela Prop. 30 desta parte) contemplaasiprópriocomAlegriae, nesta medida (pela Prop. 19 desta parte), se esforçará para agradá-lo, isto é (pela Prop. 41 desta parte), nesta medida se esforça para não odiá-lo nem afetá-lo de nenhuma Tristeza; esforço que certamente (pela Prop. 37 desta parte) será maior ou menor na proporção do afeto [affectus] do qual se origina; e, por isso, se for maior que aquele que se origina do ódio e pelo qual se esforça para afetar de Tristeza a coisa odiada (pela Prop. 16 desta parte), prevalecerá sobre ele e apagará do ânimo o Odio. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XLIII

Demonstração: E patente pela só definição de Amor e de Ódio, que se vê no Esc. da Prop. 13 desta parte. Pois a Alegria é chamada Amor e a Tristeza é chamada Ódio a Pedro só porque Pedro é considerado causa deste ou daquele afeto [affectus]. Assim, sendo isto total ou parcialmente suprimido, também o afeto [affectus] a Pedro é total ou parcialmente diminuído. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XLVIII

Demonstração: Uma coisa que imaginamos livre deve (pela Def. 7 da parte x) ser percebida por si sem outras. Se então imaginarmos que ela é causa de Alegria ou de Tristeza, por isso mesmo (pelo Esc. da Prop. 13 desta parte) a amaremos ou odiaremos, e isso (pela Prop. preced.) com o sumo Amor ou Ódio que pode originar-se do afeto [affectus] dado. Todavia, se imaginarmos como necessária a coisa que é causa do mesmo afeto [affectus], então (pela mesma Def. 7 da parte 1) imaginaremos que ela é causa deste afeto [affectus], não sozinha, mas com outras, e por isso (pela Prop. preced.) o Amor e o Ódio a ela serão menores. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. XLIX

Escólio: Assim, vemos que pode ocorrer que o que um ama, o outro odeie, e o que um teme, o outro não tema, e que um só e o mesmo homem ame agora o que antes odiava, e que ouse agora o que antes temia, etc. Ademais, como cada um, por seu afeto [affectus], julga o que é bom e mau, melhor e pior (ver Esc. da Prop. 39 desta parte), segue que os homens podem variar tanto pelo juízo quanto pelo afeto [affectus] [Nota do autor: mostramos no corol. da Prop. II da parte 2 que isto pode ocorrer, embora a Mente humana seja parte do intelecto divino.]; e disso sucede que, quando os comparamos uns com os outros, distingam-se pela só diferença de afetos [affectus], e que denominemos uns intrépidos, outros timoratos, e outros enfim com outro nome. P. ex. chamarei intrépido aquele que despreza um mal que eu costumo temer; e se além disso me ativer ao fato de que seu Desejo de fazer mal a quem odeia e bem a quem ama não é coibido pelo temor de um mal com o qual costumo ser contido, eu o chamarei audaz. Além disso, me parecerá timorato aquele que teme um mal que eu costumo desprezar, e se ainda por cima me ativer ao fato de que seu Desejo é coibido pelo temor de um mal que não pode conter-me, direi que é pusilânime, e assim cada um julgará. Por fim, desta natureza do homem e inconstância de juízo, tanto porque o homem frequentemente julga as coisas só por seu afeto [affectus], quanto porque as coisas que crê fazer para Alegria ou Tristeza, e que por isso (pela Prop. 18 desta parte) se esforça para fazer acontecer ou para afastar, são no mais das vezes apenas imaginárias, sem mencionar o que mostramos na parte 2 sobre a incerteza das coisas, por tudo isso facilmente concebemos que o homem pode frequentemente estar em causa tanto no entristecer-se quanto no alegrar-se, ou seja, que é afetado tanto de Tristeza quanto de Alegria conjuntamente à ideia de si como causa; e portanto facilmente entendemos o que são o Arrependimento e o Contentamento consigo mesmo. A saber, o Arrependimento é a Tristeza conjuntamente à ideia de si como causa e o Contentamento consigo mesmo é a Alegria conjuntamente à ideia de si como causa, e estes afetos [affectus] são veementíssimos, já que os homens creem ser livres (ver Prop. 49 desta parte). ÉTICA III Afetos Prop. LI

Dão-se tantas espécies de Alegria, Tristeza e Desejo e, consequentemente, de cada afeto [affectus] que se compõe deles, como a flutuação do ânimo, ou que deles se deriva, como o Amor, o Ódio, a Esperança, o Medo, etc., quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados. ÉTICA III Afetos Prop. LVI

Demonstração: A Alegria e a Tristeza e, consequentemente, os afetos [affectus] que delas são compostos ou delas derivam, são paixões (pelo Esc. da Prop. 11 desta parte); e nós (pela Prop. 1 desta parte) necessariamente padecemos enquanto temos ideias inadequadas; e, enquanto as temos (pela Prop. 3 desta parte), apenas nesta medida padecemos, isto é (ver Esc. da Prop. 40 da parte 2), necessariamente padecemos apenas enquanto imaginamos, ou seja (ver Prop. 17 da parte 2 com seu Esc.), enquanto somos afetados por um afeto [affectus] que envolve a natureza de nosso Corpo e a natureza de um corpo externo. Portanto, a natureza de cada paixão deve necessariamente ser explicada de tal maneira que seja expressa a natureza do objeto pelo qual somos afetados. Quer dizer, a Alegria que se origina, p. ex., do objeto A envolve a natureza do próprio objeto A, e a Alegria que se origina do objeto B envolve a natureza do próprio objeto B, e por isso estes dois afetos [affectus] de Alegria são diferentes por natureza, já que se originam de causas de natureza diferente. Assim também um afeto [affectus] de Tristeza que se origina de um objeto é diferente, por natureza, da Tristeza que se origina de outra causa; o que cumpre entender também do Amor, do Ódio, da Esperança, do Medo, da Flutuação do ânimo, etc. Por isso são dadas tantas espécies de Alegria, Tristeza, Amor, Ódio, etc. quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados. Ora, o Desejo é a própria essência ou natureza de cada um, enquanto concebida determinada a fazer [agir] algo por uma dada constituição sua, seja qual for (ver Esc. da Prop. 9 desta parte); logo, conforme cada um é afetado por causas externas com esta ou aquela espécie de Alegria, Tristeza, Amor, Ódio, etc., isto é, conforme sua natureza é constituída desta ou daquela maneira, assim seu Desejo será necessariamente um ou outro, e a natureza de um Desejo diferirá da de outro tanto quanto diferem entre si os afetos [affectus] de que cada um se origina. Portanto, dão-se tantas espécies de Desejo quantas são as espécies de Alegria, Tristeza, Amor, etc. e, consequentemente (pelo já mostrado), quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. LVI

Escólio: Entre as espécies de afetos [affectus], que (pela Prop. preced.) devem ser muitíssimas, são insignes a Gula, a Embriaguez, a Lascívia, a Avareza e a Ambição, que não são senão noções do Amor ou do Desejo as quais explicam a natureza de ambos estes afetos [affectus] por meio dos objetos aos quais são referidos. Pois por Gula, Embriaguez, Lascívia, Avareza e Ambição não entendemos nada outro que o Amor ou o Desejo imoderado de comer, de beber, de copular, de riquezas e de glória. Além disso, estes afetos [affectus], enquanto os distinguimos dos outros somente pelo objeto a que são referidos, não têm contrários. Pois a Temperança, a Sobriedade e a Castidade, que costumamos opor respectivamente à Gula, à Embriaguez e à Lascívia, não são afetos [affectus] ou paixões, mas indicam a potência do ânimo que modera estes afetos [affectus]. De resto, não posso explicar aqui as outras espécies de afetos [affectus] (já que há tantas quantas são as espécies de objetos), e nem seria necessário, caso pudesse; pois para aquilo que pretendemos, a saber, determinar as forças dos afetos [affectus] e a potência da Mente sobre eles, basta-nos ter uma definição geral de cada afeto [affectus]. Basta, quero dizer, entender as propriedades comuns dos afetos [affectus] e da Mente para que possamos determinar qual e quão grande é a potência da Mente para moderar e coibir os afetos [affectus]. Assim, embora haja grande diferença entre este ou aquele afeto [affectus] de Amor, Ódio ou Desejo, p. ex. entre o Amor aos filhos e o Amor à mulher, não será preciso conhecer estas diferenças nem indagar ulteriormente da natureza e origem dos afetos [affectus]. ÉTICA III Afetos Prop. LVI

Qualquer afeto [affectus] de cada indivíduo discrepa do afeto [affectus] de outro tanto quanto a essência de um difere da essência do outro. ÉTICA III Afetos Prop. LVII

Todos os afetos [affectus] são referidos ao Desejo, à Alegria ou à Tristeza, como mostram as definições que demos deles. Ora, o Desejo é a própria natureza ou essência de cada um (ver sua Def no Esc. da Prop. 9 desta parte); logo, o Desejo de cada indivíduo discrepa do Desejo de outro tanto quanto a natureza ou essência de um difere da essência de outro. Além disso, a Alegria e a Tristeza são paixões pelas quais a potência de cada um, ou seu esforço de perseverar em seu ser, é aumentado ou diminuído, favorecido ou coibido (pela Prop. II desta parte e seu Esc.). Ora, por esforço de perseverar em seu ser, enquanto referido simultaneamente à Mente e ao Corpo, entendemos o Apetite e o Desejo (ver Esc. da Prop. 9 desta parte); logo, a Alegria e a Tristeza são o próprio Desejo, ou seja, o Apetite, enquanto é aumentado ou diminuído, favorecido ou coibido, por causas externas, isto é (pelo mesmo Esc.), é a própria natureza de cada um; e por isso a Alegria ou a Tristeza de cada um também discrepa da Alegria ou da Tristeza de outro tanto quanto a natureza ou essência de um difere da essência de outro e, consequentemente, qualquer afeto [affectus] de cada indivíduo discrepa do afeto [affectus] de outro tanto quanto etc. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. LVII

Demonstração: Todos os afetos [affectus] são referidos ao Desejo, à Alegria ou à Tristeza, como mostram as definições que demos deles. Por Tristeza entendemos que a potência de pensar da Mente é diminuída ou coibida (pela Prop. 11 desta parte e seu Esc.); por isso, enquanto a Mente se entristece, sua potência de entender, isto é, de agir (pela Prop. 1 desta parte) é diminuída ou coibida, por conseguinte nenhum afeto [affectus] de Tristeza pode ser referido à Mente enquanto age, mas apenas os afetos [affectus] de Alegria e Desejo, que (pela Prop. preced.) nesta medida também são referidos à Mente. C. Q. D. ÉTICA III Afetos Prop. LIX

III. A Tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior a uma menor. Explicação: Digo passagem. Pois a Alegria não é a própria perfeição. Com efeito, se o homem nascesse com a perfeição à qual passa, ele a possuiria sem o afeto [affectus] de Alegria; o que se revela mais claramente a partir do afeto [affectus] de Tristeza, que lhe é contrário. Pois ninguém pode negar que a Tristeza consiste na passagem a uma menor perfeição, e não na própria perfeição menor, visto que o homem, enquanto participa de alguma perfeição, não pode entristecer-se. E também não podemos dizer que a Tristeza consiste na privação de uma maior perfeição; pois a privação nada é, ao passo que o afeto [affectus] de Tristeza é um ato, que por isso não pode ser nenhum outro senão o ato de passar a uma menor perfeição, isto é, o ato pelo qual a potência de agir do homem é diminuída ou coibida (ver o Esc. da Prop. II desta parte). De resto, omito as definições de Hilaridade, Carícia, Melancolia e Dor, já que se referem predominantemente ao Corpo e não são senão Espécies de Alegria ou Tristeza. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

V. O Desprezo é a imaginação de uma coisa que toca tão pouco a Mente que esta é levada, pela presença da coisa, a imaginar antes o que não está na própria coisa do que o que está nela. Ver Esc. da Prop. 52. desta parte. Omito aqui as definições de Veneração e Desdém porque nenhum afeto [affectus], que eu saiba, tira delas seu nome. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

X. A Devoção é o Amor àquele que admiramos. Explicação: Mostramos na Proposição 52 desta parte que a Admiração se origina da novidade da coisa. Se então acontecer de imaginarmos frequentemente aquilo que admiramos, cessaremos de admirá-lo; por conseguinte, vemos que o afeto [affectus] de Devoção facilmente se degenera em simples Amor. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XV. O Desespero é a Tristeza originada da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi suprimida a causa de duvidar. Explicação: Assim, da Esperança se origina a Segurança e do Medo o Desespero quando é suprimida a causa de duvidar da ocorrência da coisa, o que ocorre porque o homem imagina que a coisa passada ou futura está presente e a contempla como tal; ou então porque imagina outras que excluem a existência daquelas coisas que o colocavam em dúvida. Pois, embora nunca possamos estar certos da ocorrência das coisas singulares (pelo Corol. da Prop. 31 da parte 2), pode contudo acontecer que não duvidemos da ocorrência delas. Com efeito, mostramos (ver Esc. da Prop. 49 da parte 2) que uma coisa é não duvidar de algo, outra é ter certeza daquilo; e por isso pode acontecer que, a partir da imagem de uma coisa passada ou futura, sejamos afetados pelo mesmo afeto [affectus] de Alegria ou Tristeza pelo qual seríamos afetados a partir da imagem de uma coisa presente, como demonstramos na Proposição 18 desta parte, a qual deve ser vista juntamente com seus Escólios. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XVIII. A Comiseração é a Tristeza conjuntamente à ideia de um mal que ocorre a outro que imaginamos ser semelhante a nós. Ver Esc. da Prop. 11 e Esc. da Prop. 27 desta parte. Explicação: Entre a Comiseração e a Misericórdia parece não haver nenhuma diferença, senão talvez que a Comiseração diz respeito a um afeto [affectus] singular e a Misericórdia ao hábito deste [afeto [affectus]]. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XXVIII. A Soberba é, por amor de si, estimar-se além da medida. Explicação: Assim, a Soberba difere da Superestima por ser esta referida a um objeto externo, ao passo que a Soberba é referida ao próprio homem, que se estima além da medida. De resto, assim como a Superestima é efeito ou propriedade do Amor, a Soberba o é do Amor-próprio e por isso também pode ser definida como o Amor de si, ou seja, o Contentamento consigo mesmo, enquanto afeta o homem de tal maneira que se estime além da medida (ver Esc. da Prop. 16 desta parte). Não é dado um contrário a este afeto [affectus]. Pois ninguém, por ódio de si, estima-se aquém da medida; mais ainda, ninguém se estima aquém da medida enquanto imagina não poder isto ou aquilo. Pois, o que quer que um homem imagine que não pode, ele necessariamente o imagina e por esta imaginação é disposto de tal maneira que efetivamente não pode fazer o que imagina que não pode. Com efeito, enquanto [quamdiu] imagina que não pode isto ou aquilo, não é determinado a agir e, consequentemente, é-lhe impossível fazê-lo [agir]. Na verdade, se prestarmos atenção ao que depende da só opinião, poderemos conceber que pode ocorrer que o homem se estime aquém da medida, pois pode ocorrer que alguém, quando contempla triste sua debilidade, imagine-se desprezado por todos, e isso quando os outros em nada pensam menos do que em desprezá-lo. Além disso, o homem pode estimar-se aquém da medida se, no presente, nega de si algo em relação ao tempo futuro, do qual está incerto; como ao negar que possa conceber algo de certo e que possa desejar ou fazer algo senão o depravado e o torpe. Ademais, podemos dizer que alguém se estima aquém da medida quando o vemos, por excessivo medo da vergonha, não ousar o que ousam outros iguais a ele. Portanto, podemos opor à Soberba este afeto [affectus] que chamarei de Abjeção, pois assim como a Soberba se origina do Contentamento consigo mesmo, a Abjeção se origina da Humildade, que por isso é por nós assim definida: ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XXXI. A Vergonha é a Tristeza conjuntamente à ideia de uma ação que imaginamos que os outros vituperam. Explicação: Sobre isso, ver o Escólio da Proposição 30 desta parte. Mas cumpre aqui notar a diferença que há entre Vergonha e Pudor. Com efeito, a Vergonha é a Tristeza que segue o feito de que nos envergonhamos. Já o Pudor é o Medo ou Temor da Vergonha pela qual o homem é contido de modo a não cometer algo torpe. O Pudor costuma ser oposto ao Despudor, que na verdade não é um afeto [affectus], como mostrarei em seu lugar; mas os nomes dos afetos [affectus] (como já adverti) dizem respeito mais ao seu uso do que à sua natureza. E com isso concluí os afetos [affectus] de Alegria e Tristeza que me propusera a explicar. Prossigo então àqueles referidos ao Desejo. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XXXII. A Saudade [carência] é o Desejo, ou seja, o Apetite de possuir uma coisa, o qual é alimentado pela memória desta coisa e simultaneamente coibido pela memória das outras coisas que excluem a existência da coisa apetecida. Explicação: Como já dissemos várias vezes, quando recordamos uma coisa somos por isso dispostos a contemplá-la com o mesmo afeto [affectus] que teríamos se a coisa estivesse presente; mas esta disposição ou esforço é no mais das vezes inibida, enquanto estamos acordados, por imagens de coisas que excluem a existência daquela que recordamos. Assim, quando nos lembramos de uma coisa que nos afeta com algum gênero de Alegria, por isso nos esforçamos para contemplá-la como presente com o mesmo afeto [affectus] de Alegria, esforço que é imediatamente inibido pela memória das coisas que excluem a existência dela. Por conseguinte, a carência é na verdade a Tristeza oposta à Alegria que se origina da ausência da coisa que odiamos; sobre isto, ver o Escólio da Proposição 47 desta parte. Mas como o nome carência parece dizer respeito ao Desejo, refiro este afeto [affectus] aos afetos [affectus] de Desejo. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XXXIII. A Emulação é o Desejo de alguma coisa gerado em nós por imaginarmos que outros têm o mesmo Desejo. Explicação: Quem foge porque vê os outros fugirem, ou teme porque vê os outros temerem, ou também quem, por ter visto alguém que queimou a mão, contrai a sua própria e move o corpo como se esta se incendiasse, diremos que certamente imita o afeto [affectus] do outro, mas não que o emula; não porque saibamos que a causa da emulação é uma e a da imitação é outra, mas porque pelo uso ocorreu que chamássemos êmulo somente aquele que imita o que julgamos ser honesto, útil ou belo. De resto, sobre a causa da Emulação, ver a Proposição 17 desta parte com seu Escólio. Sobre por que a este afeto [affectus] se une no mais das vezes a Inveja, ver a Proposição 31 desta parte com seu Escólio. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XXXIV. O Reconhecimento ou Gratidão é o Desejo ou empenho de Amor pelo qual nos esforçamos para fazer bem àquele que nos beneficiou por um igual afeto [affectus] de amor. Ver Prop. 39 com o Esc. da Prop. 41 desta parte. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XXXVII. A Vingança é o Desejo pelo qual somos impelidos, por Ódio recíproco, a fazer mal a quem nos trouxe dano com afeto [affectus] semelhante. Ver o Corol. 2 da Prop. 40 desta parte com seu Esc. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XLI. A Pusilanimidade se diz daquele cujo Desejo é coibido pelo temor de um perigo a que seus iguais ousam expor-se. Explicação: A Pusilanimidade, então, é nada outro que o Medo de algum mal de que a maioria não costuma ter medo; por isso não a refiro aos afetos [affectus] de Desejo. Quis, contudo, explicá-la aqui porque, enquanto prestamos atenção ao Desejo, ela na verdade opõe-se ao afeto [affectus] de Audácia. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

XLIV.A Ambição é o Desejo imoderado de glória. Explicação: A Ambição é o Desejo pelo qual todos os afetos [affectus] (pelas Prop. 27 e 31 desta parte) são fomentados e corroborados; por isso este afeto [affectus] dificilmente pode ser superado. Pois, enquanto [quamdiu] o homem for tomado por um Desejo, em simultâneo será necessariamente tomado por ela. Ótimo, diz Cícero, é aquele que é maximamente conduzido pela glória. Mesmo os Filósofos, nos livros que escrevem sobre o desprezo da glória, inscrevem seus nomes etc. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

Silencio-me sobre as definições de Ciúme e das outras flutuações do ânimo, tanto porque se originam da composição de afetos [affectus] que já definimos, quanto porque na maior parte não têm nomes, o que mostra ser suficiente para o uso da vida conhecê-las somente em gênero. De resto, fica claro, a partir das Definições dos afetos [affectus] que explicamos, que todos se originam do Desejo, da Alegria e da Tristeza, ou melhor, nada são além destes três, os quais costumam ser chamados por vários nomes em função de suas várias relações e denominações extrínsecas. Se agora quisermos prestar atenção a estes afetos [affectus] primitivos e ao que acima dissemos sobre a natureza da Mente, poderemos definir os afetos [affectus], enquanto referidos à só Mente, da seguinte maneira: O Afeto que é dito Pathema do ânimo é uma ideia confusa pela qual a Mente afirma de seu Corpo ou de uma de suas partes uma força de existir maior ou menor do que antes e, dada [esta ideia], a Mente é determinada a pensar uma coisa de preferência a outra. Explicação: Digo, primeiramente, que o Afeto ou paixão do ânimo é uma ideia confusa. Pois mostramos (ver Prop. 3 desta parte) que a Mente padece apenas enquanto tem ideias inadequadas, ou seja, confusas. Digo, em seguida, pela qual a Mente afirma de seu Corpo ou de uma de suas partes uma força de existir maior ou menor do que antes. Com efeito, todas as ideias que temos dos corpos indicam mais a constituição atual de nosso Corpo (pelo Corol.r da Prop. 16 da parte 2.) do que a natureza do corpo externo; ora, aquela que constitui a forma do afeto [affectus] deve indicar ou exprimir a constituição do Corpo ou de uma de suas partes, [constituição] que o próprio Corpo ou uma de suas partes possui por ter aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida sua potência de agir, ou seja, sua força de existir. Porém é de notar que, quando digo uma força de existir maior ou menor do que antes, não entendo que a Mente compara a constituição presente do Corpo com a passada, mas que a ideia que constitui a forma do afeto [affectus] afirma algo sobre o corpo que na verdade envolve mais ou menos realidade do que antes. E como a essência da Mente consiste (pelas Prop. 11 e 13 da parte 2.) em afirmar a existência atual de seu Corpo, e entendemos por perfeição a própria essência da coisa, segue então que a Mente passa a uma maior ou menor perfeição quando lhe acontece afirmar de seu corpo ou de uma parte sua algo que envolve mais ou menos realidade do que antes. Portanto, quando disse acima que a potência de pensar da Mente é aumentada ou diminuída, não quis entender nada outro senão que a Mente formou uma ideia de seu Corpo, ou de uma de suas partes, que exprime mais ou menos realidade do que ela afirmara de seu Corpo. Pois a excelência das ideias e a potência atual de pensar é estimada pela excelência do objeto. Acrescentei, por fim, e, dada [esta ideia], a Mente é determinada a pensar uma coisa de preferência a outra para que, além da natureza da Alegria e da Tristeza, que a primeira parte da definição explica, também exprimisse a natureza do Desejo. ÉTICA III Afetos Definições dos Afetos

VI. O que entenderei por afeto [affectus] para com uma coisa futura, presente e passada, expliquei nos Esc. 1 e 2 da Prop. 18, da parte 3, vê-os. Mas é de notar, além disso, que não podemos imaginar distintamente uma distância tanto de lugar como de tempo a não ser até um limite certo; isto é, assim como a todos os objetos que distam de nós mais de duzentos pés, ou cuja distância do lugar em que estamos supera aquela que imaginamos distintamente, costumamos imaginar que distam igualmente de nós, como se estivessem no mesmo plano; assim também a objetos cujo tempo de existência imaginamos que está afastado do presente por um intervalo maior do que aquele que costumamos imaginar distintamente, imaginamos que distam todos igualmente do presente e os remetemos como que a um só momento do tempo. ÉTICA IV Servidão Definições

A força de uma paixão ou afeto [affectus] pode superar as demais ações ou a potência do homem de tal maneira que o afeto [affectus] adere perti-nazmente ao homem. ÉTICA IV Servidão Prop. VI

Um afeto [affectus] não pode ser coibido nem suprimido a não ser por um afeto [affectus] contrário e mais forte que o afeto [affectus] a ser coibido. ÉTICA IV Servidão Prop. VII

Demonstração: Um afeto [affectus], enquanto referido à Mente, é uma ideia pela qual a Mente afirma de seu corpo uma força de existir maior ou menor que antes (pela Definição geral dos Afetos que se encontra no fim da Terceira Parte). Portanto, quando a Mente se defronta com um afeto [affectus], simultaneamente o Corpo é afetado por uma afecção [affectio], pela qual sua potência de agir é aumentada ou diminuída. Além disso, essa afecção [affectio] do Corpo (pela Prop. ÉTICA IV Servidão Prop. VII

5 desta parte) recebe a força para perseverar em seu ser de sua causa; [essa afecção [affectio]], por conseguinte, não pode ser coibida nem suprimida a não ser por uma causa corpórea (pela Prop. 6 da parte 2) que afete o Corpo com uma afecção [affectio] contrária àquela (pela Prop. 5 da parte 3) e mais forte (pelo Axioma desta parte); e por isso (pela Prop. iz da parte 2) a Mente será afetada pela ideia de uma afecção [affectio] mais forte e contrária à primeira, isto é (pela Definição geral dos Afetos), a Mente será afetada por um afeto [affectus] mais forte e contrário ao primeiro, que excluirá ou suprimirá a existência do primeiro; e, por conseguinte, um afeto [affectus] não pode ser suprimido nem coibido a não ser por um afeto [affectus] contrário e mais forte. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. VII

Corolário: Um afeto [affectus], enquanto referido à Mente, não pode ser coibido nem suprimido a não ser pela ideia de uma afecção [affectio] do Corpo contrária e mais forte que a afecção [affectio] que padecemos. Pois um afeto [affectus] que padecemos não pode ser coibido nem suprimido a não ser por um afeto [affectus] mais forte que ele e contrário (pela Prop. preced.), isto é (pela Definição geral dos Afetos), a não ser pela ideia de uma afecção [affectio] do Corpo mais forte e contrária à afecção [affectio] que padecemos. ÉTICA IV Servidão Prop. VII

o conhecimento do hem e do mal nada outro é que o afeto [affectus] de Alegria ou de Tristeza enquanto dele somos cônscios. ÉTICA IV Servidão Prop. VIII

Demonstração: Chamamos bem ou mal o que serve ou obsta à conservação de nosso ser (pelas Defi 1 e 1 desta parte), isto é (pela Prop. 7 da parte 3), o que aumenta ou diminui, favorece ou coíbe nossa potência de agir. E assim (pelas Definições de Alegria e de Tristeza que se veem no Esc. da Prop. 11 da parte 3), enquanto percebemos que alguma coisa nos afeta de Alegria ou de Tristeza, chamamo-la boa ou má; e por isso o conhecimento do bem e do mal nada outro é que a ideia de Alegria ou de Tristeza que segue necessariamente do próprio afeto [affectus] de Alegria ou de Tristeza (pela Prop. 22 da parte 2). Ora, esta ideia está unida ao afeto [affectus] da mesma maneira que a Mente está unida ao Corpo (pela Prop. 21 da parte 2), isto é (como mostrado no Esc. da mesma Prop.), esta ideia na verdade não se distingue do próprio afeto [affectus], ou seja (pela Definição geral dos Afetos), da ideia da afecção [affectio] do Corpo, a não ser pelo só conceito; logo, esse conhecimento do bem e do mal nada outro é que o próprio afeto [affectus] enquanto dele somos cônscios. ÉTICA IV Servidão Prop. VIII

Um afeto [affectus] cuja causa imaginamos estar agora presente a nós é mais forte do que se imaginássemos a mesma não estar. ÉTICA IV Servidão Prop. IX

Demonstração: A imaginação é uma ideia pela qual a Mente contempla uma coisa como presente [ver sua Defi. no Esc. da Prop. 17 da parte 2), a qual, porém, indica mais a constituição do Corpo humano do que a natureza da coisa externa (pelo Corol. 2 da Prop. 16 da parte 1). Portanto, o afeto [affectus] é (pela Defi geral dos Afetos) uma imaginação, enquanto indica a constituição do corpo. Ora, uma imaginação (pela Prop. 17 da parte 2) é mais intensa enquanto [quamdiu] não imaginamos nada que exclua a existência presente da coisa externa; logo, também o afeto [affectus] cuja causa imaginamos estar agora presente a nós é mais intenso ou mais forte do que se imaginássemos não estar. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. IX

Escólio: Quando acima, na Proposição 18 da parte 3, disse que, a partir da imagem de uma coisa futura ou passada, somos afetados pelo mesmo afeto [affectus] que teríamos se a coisa que imaginamos estivesse presente, adverti expressamente que isso é verdadeiro enquanto prestamos atenção à só imagem da própria coisa; com efeito, ela é de mesma natureza quer tenhamos imaginado as coisas como presentes, quer não; mas não neguei que ela se torna mais fraca quando contemplamos outras coisas presentes a nós que excluem a existência presente da coisa futura; o que não cuidei de advertir naquela Proposição porque havia decidido tratar das forças dos afetos [affectus] nesta Parte. ÉTICA IV Servidão Prop. IX

Corolário: A imagem de uma coisa futura ou passada, isto é, de uma coisa que contemplamos com relação ao tempo futuro ou passado, excluído o presente, é mais fraca (sendo iguais as outras condições) do que a imagem de uma coisa presente; e, consequentemente, o afeto [affectus] para com uma coisa futura ou passada é mais brando (sendo iguais as outras condições) do que um afeto [affectus] para com uma coisa presente. ÉTICA IV Servidão Prop. IX

O afeto [affectus] para com uma coisa que imaginamos como necessária é mais intenso (sendo iguais as outras condições) do que para com uma coisa possível ou contingente, ou seja, não necessária. ÉTICA IV Servidão Prop. XI

Demonstração: Enquanto imaginamos que uma coisa é necessária, nesta medida afirmamos sua existência, e, ao contrário, negamos a existência da coisa enquanto imaginamos que não é necessária (pelo Esc. 1 da Prop. 33 da parte 1), e consequentemente (pela Prop. 9 desta parte) o afeto [affectus] para com a coisa necessária é mais intenso (sendo iguais as outras condições) do que para com a coisa não necessária. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XI

O afeto [affectus] para com uma coisa que sabemos não existir no presente e que imaginamos como possível é mais intenso (sendo iguais as outras condições) do que para com uma coisa contingente. ÉTICA IV Servidão Prop. XII

Demonstração: Enquanto imaginamos uma coisa como contingente, não somos afetados pela imagem de nenhuma outra que ponha a existência dela (pela Def 3 desta parte), mas, ao contrário (segundo a Hipótese), imaginamos algumas que excluem a existência presente dela. Ora, enquanto imaginamos que uma coisa é possível no futuro, nesta medida imaginamos algumas coisas que põem a existência dela (pela Def. 4 desta parte), isto é (pela Prop. 18 da parte 3), que fomentam a Esperança ou o Medo; e por isso o afeto [affectus] para com uma coisa possível é mais veemente. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XII

Corolário: O afeto [affectus] para com uma coisa que sabemos não existir no presente, e que imaginamos como contingente, é muito mais brando do que se imaginássemos que a coisa está agora presente a nós. ÉTICA IV Servidão Prop. XII

Demonstração: O afeto [affectus] para com uma coisa que imaginamos existir no presente é mais intenso do que se a imaginássemos como futura (pelo Corol. da Prop. 9 desta parte), e muito mais veemente do que se imaginássemos o tempo futuro distar muito do presente (pela Prop. 10 desta parte). Assim, o afeto [affectus] para com uma coisa cujo tempo de existir imaginamos distar bastante do presente é muito mais brando do que se a imaginássemos como presente, e contudo (pela Prop. preced.) é mais intenso do que se imaginássemos a mesma coisa como contingente; e por isso o afeto [affectus] para com uma coisa contingente será muito mais brando do que se imaginássemos que a coisa está agora presente a nós. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XII

O afeto [affectus] para com uma coisa contingente que sabemos não existir no presente é mais brando (sendo iguais as outras condições) do que o afeto [affectus] para com uma coisa passada. ÉTICA IV Servidão Prop. XIII

Demonstração: Enquanto imaginamos uma coisa como contingente, não somos afetados pela imagem de nenhuma outra que ponha a existência dela (pela Def. 3 desta parte). Mas, ao contrário (segundo a Hipótese), imaginamos algumas que excluem a existência presente dela. Porém, enquanto a imaginamos com relação ao tempo passado, nesta medida supomos imaginar algo que a restitui à memória, ou seja, que excita a imagem da coisa (ver Prop. 18 da parte 2 com seu Esc.) e, por conseguinte, nesta medida faz que a contemplemos como se fosse presente (pelo Corol. da Prop. 17 da parte 2). Por isso (pela Prop. 9 desta parte), o afeto [affectus] para com uma coisa contingente que sabemos não existir no presente será mais brando (sendo iguais as outras condições) do que o afeto [affectus] para com uma coisa passada. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XIII

O conhecimento verdadeiro do bem e do mal, enquanto verdadeiro, não pode coibir nenhum afeto [affectus], mas apenas enquanto é considerado como afeto [affectus]. ÉTICA IV Servidão Prop. XIV

Demonstração: Um afeto [affectus] é uma ideia pela qual a Mente afirma de seu Corpo uma força de existir maior ou menor do que antes (pela Def. geral dos Afetos); por isso (pela Prop. 1 desta parte), nada tem de positivo que possa ser suprimido pela presença do verdadeiro e, consequentemente, o conhecimento verdadeiro do bem e do mal, enquanto verdadeiro, não pode coibir nenhum afeto [affectus]. Mas enquanto é afeto [affectus] (ver Prop. 8 desta parte), se for mais forte do que o afeto [affectus] a coibir, apenas nesta medida (pela Prop. 7 desta parte) poderá coibi-lo. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XIV

Demonstração: Do conhecimento verdadeiro do bem e do mal, enquanto é afeto [affectus] (pela Prop. 8 desta parte), origina-se necessariamente um Desejo (pela 1. Def. dos Afetos) que é tanto maior quanto maior é o afeto [affectus] do qual se origina (pela Prop. 37 da parte 3). Mas porque (por Hipótese) se origina de entendermos algo verdadeiramente, este Desejo segue em nós enquanto agimos (pela Prop. 3 da parte 3); portanto, deve ser entendido só por nossa essência (pela Def. 2 da parte 3); e, consequentemente (pela Prop. 7 da parte 3), sua força e crescimento devem ser definidos pela só potência humana. Ademais, os Desejos que se originam dos afetos [affectus] com que nos defrontamos são também tanto maiores quanto mais veementes forem estes afetos [affectus]; por isso, a sua força e crescimento (pela Prop. 5 desta parte) devem ser definidos pela potência das causas externas, a qual, se comparada com a nossa, supera-a indefinidamente (pela Prop. 3 desta parte); por conseguinte, os Desejos que se originam de semelhantes afetos [affectus] podem ser mais veementes do que aquele que se origina do conhecimento verdadeiro do bem e do mal, e por isso (pela Prop. 7 desta parte) poderão coibi-lo ou extingui-lo. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XV

Demonstração: O afeto [affectus] para com uma coisa que imaginamos futura é mais brando do que para com uma coisa presente (pelo Corol. da Prop. 9 desta parte). Ora, o Desejo que se origina do conhecimento verdadeiro do bem e do mal, embora este conhecimento verse acerca de coisas que são boas no presente, pode ser coibido ou extinto por algum Desejo temerário (feia Prop. precedente, cuja demonstração é universal); logo, o Desejo que se origina desse mesmo conhecimento, enquanto se reporta ao futuro, poderá ser mais facilmente coibido ou extinto etc. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XVI

Demonstração: O Desejo é a própria essência do homem (pela 1. Def. dos Afetos), isto é (pela Prop. 7. da parte 3), o esforço pelo qual o homem se esforça para perseverar em seu ser. Portanto, o Desejo que se origina da Alegria é favorecido ou aumentado pelo próprio afeto [affectus] de Alegria (pela Def de Alegria, que se pode ver no Esc. da Prop. 11. da parte 5); e aquele que, ao contrário, se origina da Tristeza é diminuído ou coibido pelo próprio afeto [affectus] de Tristeza (pelo mesmo Esc.). Por isso, a força do Desejo que se origina da Alegria deve ser definida pela potência humana e simultaneamente pela potência da causa externa, mas a força do Desejo que se origina da Tristeza deve ser definida só pela potência humana, e assim aquela é mais forte que esta. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XVIII

Demonstração: O conhecimento do bem e do mal é (pela Prop. 8 desta parte) o próprio afeto [affectus] de Alegria ou de Tristeza enquanto dele somos cônscios; por conseguinte (pela Prop. 18 da parte 3), cada um necessariamente apetece o que julga ser bom e, ao contrário, tem aversão ao que julga ser mau. Mas este apetite nada outro é que a própria essência ou natureza do homem (pela Def. do Apetite que deve ser vista no Esc. Prop. 9. da parte 3 e na Def. 1 dos Afetos). Logo, cada um, só pelas leis de sua natureza, necessariamente apetece ou tem aversão etc. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XIX

Demonstração: A natureza ou essência dos afetos [affectus] não pode ser explicada só por nossa essência ou natureza (pelas Def. 1 e 2 parte 3), mas deve ser definida pela potência, isto é (pela Prop. 7 da parte 3), pela natureza das causas externas comparada com a nossa; donde ocorre que se deem tantas espécies de cada afeto [affectus] quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados (ver Prop. 56 da parte 3), e que os homens sejam afetados de diversas maneiras por um só e mesmo objeto (ver Prop. 51 da parte 3) e, nesta medida, discrepem em natureza; e por fim, [ocorre] que um só e mesmo homem (pela mesma Prop. 51 da parte 3) seja afetado de diversas maneiras para com o mesmo objeto, e nesta medida seja variável etc. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XXXIII

Demonstração: Um homem, por exemplo Pedro, pode ser causa de que Paulo se entristeça porque tem algo semelhante a uma coisa que Paulo odeia (pela Prop. 16 da parte 3), ou porque Pedro possui sozinho uma coisa que Paulo também ama (ver Prop. 32 da parte 3 com seu Esc.), ou por outras causas (ver as principais no Esc. da Prop. 55 da parte 3), e por isso daí ocorrerá (pela 7. Def. dos Afetos) que Paulo odeie Pedro e, por conseguinte, ocorrerá facilmente (pela Prop. 40 da parte 3 e seu Esc.) que Pedro também odeie Paulo e, por isso (pela Prop. 39 da parte 3), que se esforcem para fazer mal um ao outro, isto é (pela Prop. 30 desta parte), que sejam contrários um ao outro. Ora, o afeto [affectus] de Tristeza é sempre paixão (pela Prop. 59 da parte 3); logo, enquanto se defrontam com afetos [affectus] que são paixões, os homens podem ser contrários uns aos outros. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XXXIV

Escólio I: Aquele que, só por afeto [affectus], se esforça para que os demais amem o que ele próprio ama e vivam conforme o seu engenho, age só por ímpeto, e por conseguinte é odioso, principalmente para os que se comprazem com outras coisas e por isso também se empenham, e com o mesmo ímpeto se esforçam, para que os demais, ao contrário, vivam conforme o engenho deles. Além disso, visto que o sumo bem que os homens apetecem por afeto [affectus] é frequentemente tal que apenas um deles pode possuí-lo, daí ocorre que os que amam perdem a cabeça e, ao se regozijarem tecendo louvores à coisa amada, temem ser acreditados. Por seu turno, quem se esforça para conduzir os outros pela razão, não age por ímpeto, mas humana e benignamente, e tem a cabeça no lugar. Ademais, tudo que desejamos e fazemos [agimos] do qual somos causa enquanto temos a ideia de Deus, ou seja, enquanto conhecemos Deus, refiro à Religião. Já o Desejo de fazer bem que é engendrado por vivermos sob a condução da razão, chamo Piedade. Em seguida, o Desejo que toma o homem que vive sob a condução da razão, levando-o a unir-se aos demais por amizade, chamo Honestidade, e aquilo que os homens que vivem sob a condução da razão louvam, chamo honesto, e aquilo que, ao contrário, repugna à reunião das amizades, torpe. Além disso, mostrei também quais são os fundamentos da cidade. Ademais, a diferença entre a verdadeira virtude e a impotência é facilmente percebida pelo que foi dito acima, a saber, que a verdadeira virtude não é nada outro que viver sob a só condução da razão; e por isso a impotência consiste somente em que o homem padeça ser conduzido por coisas que estão fora , dele e por elas seja determinado a fazer [agir] o que postula a constituição comum das coisas externas, e não a própria natureza dele considerada em si mesma. E foi isso que no Escólio da Proposição 18 desta parte eu havia prometido demonstrar, donde transparece que aquela lei de não sacrificar os animais está mais fundada em vã superstição e misericórdia feminina do que na sá razão. Certamente, o princípio de buscar o nosso útil ensina a necessidade de nos unirmos aos homens, e não aos animais ou às coisas cuja natureza é diversa da natureza humana. Por outro lado, temos sobre elas o mesmo direito que elas têm sobre nós. E mais ainda, como o direito de cada um é definido pela sua virtude ou potência, os homens têm muito maior direito sobre os animais do que estes sobre os homens. E não nego que os animais sintam, mas nego que por causa disso não seja lícito cuidar de nossa utilidade e usar deles ao nosso gosto, tratando-os conforme mais nos convenha, visto que não convêm conosco em natureza e seus afetos [affectus] são por natureza diversos dos afetos [affectus] humanos (ver Esc. da Prop. 57 da parte 3). Resta-me explicar o que é o justo, o injusto, o pecado e enfim o mérito. Mas sobre isso veja-se o seguinte Escólio. ÉTICA IV Servidão Prop. XXXVII

Escólio II: No Apêndice da Primeira Parte, prometi explicar o que são o louvor e o vitupério, o mérito e o pecado, o justo e o injusto. No que tange ao louvor e ao vitupério, expliquei-os no Escólio da Proposição 19 da parte 3; quanto aos restantes, será este o lugar de falar deles. Mas antes cumpre dizer umas poucas palavras sobre o estado natural e o estado civil do homem. Cada um existe por sumo direito de natureza e, consequentemente, por sumo direito de natureza faz [age] aquilo que segue da necessidade de sua natureza; e por isso por sumo direito de natureza cada um julga o que é bom, o que é mau, e cuida do que lhe tem utilidade conforme seu engenho (ver Prop. 19 e 20 desta parte), vinga-se (ver Corol. 1 da Prop. 40 da parte 3) e esforça-se para conservar o que ama e destruir o que odeia (ver Prop. 18 da parte 3). E se os homens vivessem sob a condução da razão, cada um possuiria (pelo Corol. 1 da Prop. 35 desta parte) este seu direito sem nenhum dano para outro. Porém, como estão submetidos aos afetos [affectus] (pelo Corol. da Prop. 4 desta parte), que de longe superam a potência ou virtude humana (pela Prop. 6 desta parte), por isso frequentemente são arrastados em direções diversas (pela Prop. 33 desta parte), e são contrários uns aos outros (pela Prop. 34 desta parte) quando precisam de auxílio mútuo (pelo Esc. da Prop. 35 desta parte). Portanto, para que os homens possam viver em concórdia e auxiliar uns aos outros, é necessário que cedam seu direito natural e tornem uns aos outros seguros de que nada haverão de fazer que possa causar dano a outro. Mas de que maneira pode ocorrer que os homens, que são necessariamente submetidos aos afetos [affectus] (pelo Corol. da Prop. 4 desta parte), inconstantes e variáveis (pela Prop. 33 desta parte), possam tornar seguros uns aos outros e ter confiança uns nos outros, é patente pela Proposição 7 desta parte e pela Proposição 39 da parte 3. A saber, nenhum afeto [affectus] pode ser coibido a não ser por um afeto [affectus] mais forte e contrário ao afeto [affectus] a ser coibido, e cada um abstém-se de causar dano por temor de um dano maior. E portanto por esta lei que a Sociedade poderá firmar-se, desde que reivindique para si o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bem e o mal; e por isso tenha o poder de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e firmá-las não pela razão, que não pode coibir os afetos [affectus] (pelo Esc. da Prop. 17 desta parte), mas por ameaças. E esta Sociedade, que se firma pelas leis e pelo poder de se conservar, é denominada Cidade, e aqueles que são defendidos pelo direito dela, Cidadãos. Disso facilmente entendemos que nada é dado no estado natural que seja bom ou mau pelo consenso de todos, visto que cada um que está no estado natural cuida apenas do que lhe tem utilidade, e discerne o que é bom ou mau por seu engenho e enquanto tem por princípio apenas sua utilidade, e por nenhuma lei é obrigado a obedecer a ninguém senão a si mesmo. Por isso não pode ser concebido o pecado no estado natural, mas certamente no estado Civil, onde o que é bom ou mau é discernido pelo consenso comum e cada um tem que obedecer à Cidade. Portanto, o pecado não é nada outro que a desobediência, a qual por conseguinte é punida só pelo direito da Cidade e, inversamente, a obediência é creditada ao Cidadão como mérito, porque por esse motivo é julgado digno aquele que goza das comodidades da Cidade. Ademais, no estado natural ninguém é Senhor de coisa alguma por consenso comum, nem na Natureza é dado algo que possa ser dito deste homem e não daquele, mas tudo é de todos; e por isso no estado natural não pode ser concebida nenhuma vontade de atribuir a cada um o que é seu ou de arrancar de alguém o que é seu, isto é, nada pode ser dito justo ou injusto no estado natural, mas certamente no estado civil, onde o que é deste ou daquele é discernido pelo consenso comum. Disso transparece que o justo e o injusto, o pecado e o mérito são noções extrínsecas, e não atributos que expliquem a natureza da Mente. Mas basta sobre isso. ÉTICA IV Servidão Prop. XXXVII

Demonstração: A Alegria (pela Prop. 11 da parte 3, com seu Esc.) é um afeto [affectus] pelo qual a potência de agir do corpo é aumentada; a Tristeza, ao contrário, é um afeto [affectus] pelo qual a potência de agir do corpo é diminuída ou coibida; e por isso (pela Prop. 38 desta parte) a Alegria é diretamente boa, etc. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XLI

Demonstração: A Carícia é a Alegria que, enquanto se refere ao Corpo, consiste em que uma ou algumas de suas partes são mais afetadas do que outras (ver sua Def. no Esc. da Prop. 11 da parte 3), e a potência deste afeto [affectus] pode ser tanta que supera as outras ações do Corpo (pela Prop. 6 desta parte) e adere a ele pertinazmente, impedindo, portanto, que o Corpo esteja apto a ser afetado de outras múltiplas maneiras, e por isso (pela Prop. 38 desta parte) pode ser má. Por sua vez, a Dor, que, ao contrário, é uma Tristeza, não pode ser boa considerada em si mesma (pela Prop. 41 desta parte). Na verdade, visto que sua força e crescimento são definidos pela potência da causa externa comparada com a nossa (pela Prop. 5 desta parte), podemos conceber infinitos graus e modos das forças deste afeto [affectus] (pela Prop. 3 desta parte); e por isso podemos concebê-lo tal que possa coibir a Carícia para que não tenha excesso, e nesta medida (pela primeira parte desta Prop.) fazer com que o corpo não se torne menos apto; por conseguinte, nesta medida a Dor será boa. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XLIII

Demonstração: O Amor (pela 6. Def. dos Afetos) é a Alegria conjuntamente à ideia de causa externa, portanto a Carícia (pelo Esc. da Prop. 11 da parte 3) conjuntamente à ideia de causa externa é Amor; e por isso o Amor (pela Prop. preced.) pode ter excesso. Ademais, o Desejo é tanto maior quanto maior é o afeto [affectus] de que se origina (pela Prop. 37 da parte 3). Logo, como um afeto [affectus] (pela Prop. 6 desta parte) pode superar as outras ações do homem, assim também o Desejo que se origina deste afeto [affectus] pode superar os outros Desejos, e por isso poderá ter o mesmo excesso que mostramos na Proposição precedente ter a Carícia. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. XLIV

Escólio: A Hilaridade, que eu disse ser boa, é mais fácil de conceber do que de observar. Pois os afetos [affectus] que defrontamos cotidianamente referem-se, em sua maioria, a uma parte do Corpo que é afetada mais do que as outras, e por isso os afetos [affectus] têm frequentemente excesso, detendo a Mente de tal maneira na só contemplação de um objeto, que não pode pensar nos outros; e embora os homens estejam submetidos a muitos afetos [affectus], e sejam raros os que se defrontem sempre com um só e mesmo afeto [affectus], não faltam aqueles a quem um só e mesmo afeto [affectus] adere pertinazmente. Com efeito, vemos às vezes homens serem afetados por um objeto de tal maneira que, embora não esteja presente, contudo creem tê-lo diante dos olhos; e, quando isto acontece a um homem que não está dormindo, dizemos que delira ou en-doidece; e aqueles que ardem de Amor e sonham dia e noite com a mesma amante ou meretriz, não é porque costumam causar-nos riso que deixamos de considerá-los doidos. E quando o avaro não pensa em outra coisa além de lucro ou dinheiro, e o ambicioso em glória, etc., não se crê que deliram, já que costumam ser molestos e estimados dignos de Ódio. Mas, na verdade, a Avareza, a Ambição, a Lascívia, etc. são espécies de delírio, ainda que não sejam enumeradas entre as doenças. ÉTICA IV Servidão Prop. XLIV

Escólio: Quem souber corretamente que tudo segue da necessidade da natureza divina e é feito segundo as leis e regras eternas da natureza, certamente nada encontrará que seja digno de Ódio, Riso ou Desprezo, nem se comiserará de ninguém; mas, tanto quanto o conduz a virtude humana, ele se esforçará para agir bem, como dizem, e alegrar-se. A isto acrescente-se que aquele que é facilmente tocado pelo afeto [affectus] de Comiseração e comovido pela miséria ou pelas lágrimas de outro, frequentemente faz algo de que depois se arrepende, tanto porque por afeto [affectus] não fazemos nada que sabemos certamente ser bom, quanto porque facilmente somos enganados por falsas lágrimas. E aqui falo expressamente do homem que vive sob a condução da razão. Pois quem não é movido pela razão nem pela comiseração a auxiliar os outros, este é corretamente denominado desumano, visto que (pela Prop. 27 da parte 3) parece não ter semelhança com o homem. ÉTICA IV Servidão Prop. L

Demonstração: A primeira parte desta Proposição se demonstra como a precedente. Já a segunda é patente a partir da só definição deste afeto [affectus] (ver 27. Def. dos Afetos). Pois [quem se arrepende] padece uma derrota, primeiro para um Desejo depravado, depois para a Tristeza. ÉTICA IV Servidão Prop. LIV

Escólio: A abjeção, porém, pode ser mais facilmente corrigida do que a soberba, visto que esta é afeto [affectus] de Alegria, ao passo que aquela, de Tristeza; e por isso (pela Prop. 18 desta parte) esta é mais forte do que aquela. ÉTICA IV Servidão Prop. LVI

Embora a Abjeção seja contrária à Soberba, o abjeto é contudo próximo do soberbo. Pois, visto que sua Tristeza se origina de julgar sua impotência a partir da potência ou virtude dos outros, sua Tristeza será portanto aliviada, isto é, ele se alegrará, se sua imaginação for ocupada com a contemplação de vícios alheios, donde nasceu aquele provérbio: o consolo dos infelizes é ter companheiros miseráveis, e, inversamente, tanto mais se entristecerá quanto mais crer-se inferior aos outros; donde ocorre que ninguém seja mais propenso à Inveja do que os abjetos, e que estes se esforcem ao máximo em observar os feitos dos homens mais para recriminá-los do que para corrigi-los, e que por fim louvem só a Abjeção e com ela se glorifiquem, mas de tal maneira que ainda pareçam abjetos. E isto segue da natureza deste afeto [affectus] tão necessariamente quanto da natureza do triângulo segue que seus três ângulos são iguais a dois retos; e já disse que chamo estes afetos [affectus] e outros semelhantes de maus enquanto presto atenção à só utilidade humana. Porém, as leis da natureza dizem respeito à ordem comum da natureza, de que o homem é parte; o que aqui de passagem quis advertir para que não julgassem que eu queria narrar os vícios e feitos absurdos dos homens, e não demonstrar a natureza e as propriedades das coisas. Pois, como disse no Prefácio da Terceira Parte, considero os afetos [affectus] humanos e suas propriedades tal como as outras coisas naturais. E certamente os afetos [affectus] humanos, se não indicam a potência e o artifício humanos, indicam ao menos a potência e o artifício da natureza, não menos do que muitas outras coisas que admiramos e em cuja contemplação nos deleitamos. Mas prossigo observando sobre os afetos [affectus] essas coisas que são de utilidade ao homem ou que lhe causam dano. ÉTICA IV Servidão Prop. LVII

A todas as ações às quais somos determinados a partir de um afeto [affectus] que é uma paixão, podemos, sem ele, ser determinados pela razão. ÉTICA IV Servidão Prop. LIX

Demonstração: Agir pela razão não é nada outro (pela Prop. 3 e Def. 2 da Parte 3) que fazer [agir] algo que segue da necessidade da nossa natureza em si só considerada. Ora, a Tristeza é má apenas enquanto diminui ou coíbe esta potência de agir (pela Prop. 41 desta parte); logo, a partir deste afeto [affectus] não podemos ser determinados a nenhuma ação que não poderiamos fazer se conduzidos pela razão. Além disso, a Alegria é má apenas enquanto impede que o homem seja apto a agir (pelas Prop. 41 e 43 desta parte), e, assim, também a partir dela não podemos ser determinados a nenhuma ação que não poderiamos fazer se conduzidos pela razão. Finalmente, enquanto a Alegria é boa, nesta medida convém com a razão (com efeito, consiste em que a potência de agir do homem é aumentada ou favorecida), e não é uma paixão senão enquanto a potência de agir do homem não é aumentada a ponto de que ele conceba a si e a suas ações adequadamente (pelo Prop. 3 da parte 3 com seu Esc.). Por isso, se o homem afetado de Alegria fosse conduzido a tal perfeição que concebesse a si e a suas ações adequadamente, ele seria apto, e até mais apto, a essas mesmas ações às quais ele é agora determinado a partir de afetos [affectus] que são paixões. Ora, todos os afetos [affectus] referem-se à Alegria, à Tristeza, ou ao Desejo (ver explicação da 4. Def. dos Afetos), e o Desejo (pela I. Def dos Afetos) não é nada outro que o próprio esforço de agir; logo, a todas as ações às quais somos determinados a partir de um afeto [affectus] que é uma paixão, podemos, sem ele, ser conduzidos apenas pela razão. C. Q. D. Doutra Maneira: Uma ação qualquer é dita má apenas enquanto se origina de sermos afetados de Ódio ou de algum afeto [affectus] mau (ver Corol. I da Prop. 45 desta parte). Ora, nenhuma ação, em si só considerada, é boa ou má (como mostramos no Prefácio desta parte), mas uma e a mesma ação ora é boa, ora é má; logo, à mesma ação que agora é má, ou seja, que se origina de algum afeto [affectus] mau, podemos ser conduzidos pela razão (pela Prop. 19 desta parte). C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. LIX

Escólio: Explica-se isto mais claramente por um exemplo: a ação de bater, enquanto é considerada fisicamente e só prestamos atenção a que um homem levanta o braço, fecha a mão e move com força todo o braço de cima para baixo, é uma virtude que é concebida pela estrutura do Corpo humano. Se então um homem, movido pela Ira ou Ódio, é determinado a fechar a mão ou mover o braço, isso ocorre, como mostramos na Segunda Parte, porque uma e a mesma ação pode unir-se a quaisquer imagens de coisas; e, assim, tanto a partir daquelas imagens das coisas que concebemos confusamente quanto daquelas que concebemos clara e distintamente, podemos ser determinados a uma e mesma ação. Fica claro, assim, que todo Desejo que se origina de um afeto [affectus] que é uma paixão, não seria de nenhuma utilidade se os homens pudessem ser conduzidos pela razão. Vejamos agora por que chamamos cego o Desejo que se origina de um afeto [affectus] que é uma paixão. ÉTICA IV Servidão Prop. LIX

Demonstração: Suponhamos, p. ex., que a parte A do Corpo é corroborada de tal maneira pela força de uma causa externa, que ela prevaleça sobre as demais (pela Prop. 6 desta parte). Esta parte não se esforçará por isso em perder suas forças para que as demais partes do Corpo desempenhem seu ofício. Com efeito, ela deveria ter a força ou potência de perder suas forças, o que (pela Prop. 6 da parte 3) é absurdo. Portanto, aquela parte, e por consequência (pelas Prop. 7 e 12 da Parte 3) também a Mente, se esforçará para conservar aquele estado; e, assim, o Desejo originado de tal afeto [affectus] de Alegria não leva em conta o todo. Se, ao contrário, supomos que a parte A é coibida de maneira que as demais prevaleçam, demonstra-se igualmente que também o Desejo que se origina da Tristeza não leva em conta o todo. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. LX

Escólio: Se nós pudéssemos ter um conhecimento adequado da duração das coisas, e determinar pela razão os tempos de existência delas, contemplaríamos com o mesmo afeto [affectus] as coisas futuras e presentes; e o bem que a Mente concebesse como futuro, ela o apeteceria da mesma maneira que o bem presente; por conseguinte, negligenciaria necessariamente um bem presente menor em prol de um bem futuro maior e apeteceria ao mínimo aquilo que fosse um bem no presente, mas causa de algum mal futuro, como logo demonstraremos. Mas nós não podemos ter da duração das coisas senão um conhecimento extremamente inadequado (pela Prop. 31 da parte 2), e só determinamos os tempos de existência das coisas pela imaginação (pelo Esc. da Prop. 44 da parte 2), que não é afetada igualmente pela imagem da coisa presente e da futura; donde ocorre que o conhecimento verdadeiro que temos do bem e do mal não é senão abstrato, ou seja, universal, e o juízo que fazemos da ordem das coisas e do nexo das causas, para podermos determinar o que no presente é bom ou mau para nós, é antes imaginário que real; e assim não é de admirar se o Desejo que se origina do conhecimento do bem e do mal, enquanto este visa o futuro, pode ser mais facilmente coibido pelo desejo das coisas agradáveis no presente (sobre isso veja-se a Prop. 16 desta parte). ÉTICA IV Servidão Prop. LXII

Demonstração: Pois o Desejo que se origina da razão só pode originar-se (pela Prop. 59 da parte 3) de um afeto [affectus] de Alegria que não é paixão, isto é, da Alegria que não pode ter excesso (pela Prop. 61 desta parte), e não da Tristeza; e por conseguinte este Desejo (pela Prop. 8 desta parte) origina-se do conhecimento do bem, e não do conhecimento do mal; e assim, pelo ditame da razão apetecemos diretamente o bem, e apenas nesta medida fugimos do mal. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. LXIII

Demonstração: Se a Mente pudesse ter um conhecimento adequado da coisa futura, seria afetada para com ela pelo mesmo afeto [affectus] que para com a presente (pela Prop. 61 desta parte); por isso, enquanto prestamos atenção à própria razão, como supomos fazer nesta Proposição, é o mesmo supor um maior bem ou mal futuro ou presente; e por conseguinte (pela Prop. 65 desta parte) apeteceremos um bem maior futuro frente a um bem menor presente etc. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. LXVI

Escólio: Portanto, se confrontamos isto com o que mostramos sobre os afetos [affectus] dos homens nesta parte até a Proposição 18, facilmente veremos o que separa o homem conduzido pelo só afeto [affectus] ou opinião e o homem conduzido pela razão. Com efeito, o primeiro, queira ele ou não, faz [age] aquilo que ignora ao máximo; o segundo, porém, não se comporta à maneira de ninguém, a não ser à sua própria, e faz [age] somente o que sabe ser o primordial na vida e que por isso ele deseja ao máximo; por isso, ao primeiro chamo servo, mas ao segundo chamo livre, sobre cujo engenho e maneira de viver gostaria de fazer ainda algumas observações. ÉTICA IV Servidão Prop. LXVI

Demonstração: Um afeto [affectus] não pode ser coibido nem suprimido a não ser por um afeto [affectus] contrário e mais forte do que o afeto [affectus] a ser coibido (pela Prop. 7 destapar-te). Ora, a Audácia cega e o Medo são afetos [affectus] que podem ser concebidos igualmente grandes (pelas Prop. 5 e 3 desta parte). Logo, é requerida uma igualmente grande virtude ou fortaleza do ânimo (cuja Def. deve ser vista no Esc. da Prop. 39 da parte 3) tanto para coibir a Audácia quanto para coibir o Medo, isto é (pelas 40. e 41. Def. dos Afetos), o homem livre evita os perigos com a mesma virtude do ânimo com que tenta superá-los. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. LXIX

Demonstração: Cada um julga por seu próprio engenho o que é bom (ver Esc. da Prop. 39 da parte 3); portanto, o ignorante que beneficiou a alguém estimará o benefício por seu engenho, e se vê que o benefício é subestimado por quem o recebeu, ele se entristecerá (pela Prop. 42 da parte 3). Ora, o homem livre se empenha em unir os outros homens a si por amizade (pela Prop. 3737 desta parte), e não em retribuir aos homens benefícios equivalentes segundo o afeto [affectus] deles, mas em conduzir a si e aos outros pelo livre juízo da razão, e fazer [agir] somente o que ele próprio sabe ser primordial; logo, o homem livre, para que não seja odiado pelos ignorantes nem se curve ao apetite deles, mas à só razão, se esforçará o quanto pode para evitar os benefícios dados por eles. C. Q. D. ÉTICA IV Servidão Prop. LXX

Escólio: O Reconhecimento que os homens que são conduzidos pelo Desejo cego têm uns pelos outros é no mais das vezes antes um negócio ou uma arapuca do que reconhecimento. Ademais, a ingratidão não é um afeto [affectus], mas é torpe porque no mais das vezes indica que um homem é afetado de Ódio, Ira, Soberba ou Avareza etc. Pois quem, por estultícia, não sabe recompensar os dons recebidos, não é ingrato; e muito menos é ingrato aquele que não é movido pelas ofertas de uma meretriz a servir à lascívia dela, nem, pelas de um ladrão, a esconder os furtos, ou por outros semelhantes. Pois, ao contrário, mostra ter um ânimo constante aquele que por nenhuma oferta se deixa corromper, para sua ruína ou para a ruína comum. ÉTICA IV Servidão Prop. LXXI

Capítulo X: Enquanto os homens são levados uns contra os outros pela Inveja ou por algum afeto [affectus] de Ódio, nesta medida são contrários uns aos outros e, por conseguinte, são tanto mais a temer quanto podem mais do que os outros indivíduos da natureza. ÉTICA IV Servidão Apêndice

Capítulo XXV: A Modéstia, isto é, o Desejo de agradar aos homens que é determinado pela razão, se refere à Piedade (como dissemos no Esc. 1 da Prop. 37 da parte 4). Porém, se se origina do afeto [affectus], é Ambição, ou seja, o Desejo pelo qual os homens, sob uma falsa imagem de Piedade, no mais das vezes incitam as sedições e discórdias. Pois quem deseja favorecer os outros, com conselhos ou obras, para que fruam simultaneamente o sumo bem, se empenhará, sobretudo, em promover o Amor deles a si, e não em suscitar-lhes admiração para que uma doutrina receba o seu nome, nem, absolutamente, em dar-lhes motivos de Inveja. Ademais, nas conversações cotidianas, evitará recensear os vícios dos homens e cuidará em não falar da impotência humana senão com parcimônia. Por outro lado, cuidará em falar amplamente da virtude ou potência humanas e da maneira como pode ser aperfeiçoada para que assim os homens, não por Medo ou aversão, mas movidos pelo só afeto [affectus] de Alegria, se esforcem, o quanto está em suas forças, para viver de acordo com a prescrição da razão. ÉTICA IV Servidão Apêndice

Capítulo XXX: Como boas são aquelas coisas que favorecem as partes do Corpo para que cumpram suas funções e a Alegria consiste em que a potência do homem, enquanto consta de Mente e Corpo, é favorecida ou aumentada, logo todas as coisas que trazem Alegria são boas. Como, porém, as coisas não agem com o fim de nos afetar de Alegria e nem sua potência de agir é temperada segundo nossa utilidade e, finalmente, como a Alegria, no mais das vezes, refere-se antes a uma única parte do Corpo, logo, no mais das vezes os afetos [affectus] de Alegria (se a razão e a vigilância não estão presentes), e consequentemente os Desejos que são gerados a partir deles, têm excesso. Acrescente-se a isso que pelo afeto [affectus] consideramos primeiro o que é agradável no presente e não podemos estimar com igual ânimo as coisas futuras. Ver Esc. da Prop. 44 e Esc. da Prop. 60 da parte 4. ÉTICA IV Servidão Apêndice

Se afastarmos uma comoção do ânimo, ou afeto [affectus], do pensamento da causa externa e unirmos a outros pensamentos, então o Amor ou Ódio à causa externa, assim como as flutuações do ânimo que destes se originam, serão destruídos. ÉTICA V Intelecto Prop. II

O afeto [affectus] que é uma paixão deixa de ser paixão tão logo formemos uma ideia clara e distinta dele. ÉTICA V Intelecto Prop. III

Demonstração: O afeto [affectus] que é uma paixão é uma ideia confusa (pela Def. ger. dos Afetos). Portanto, se deste afeto [affectus] formarmos uma ideia clara e distinta, esta ideia só se distinguirá do próprio afeto [affectus], enquanto referido apenas à Mente, por [uma distinção de] razão (pela Prop. 11 da parte 1 com seu Esc.); e por isso (pela Prop. 3 da parte 3) o afeto [affectus] deixará de ser paixão. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. III

Corolário: Portanto, um afeto [affectus] está tanto mais em nosso poder, e a Mente tanto menos dele padece, quanto mais ele nos é conhecido. ÉTICA V Intelecto Prop. III

Corolário: Daí segue que não há nenhum afeto [affectus] de que não possamos formar um conceito claro e distinto. Pois o afeto [affectus] é a ideia de uma afecção [affectio] do Corpo (pela Def. ger. dos Afetos), que por causa disso (pela Prop. preced.) deve envolver um conceito claro e distinto. ÉTICA V Intelecto Prop. IV

Escólio: Visto que nada é dado de que não siga algum efeito (pela Prop. 36 da parte 1), e que entendemos clara e distintamente tudo que segue da ideia que em nós é adequada (pela Prop. 40 da parte 2), daí segue que cada um tem o poder de entender clara e distintamente a si e a seus afetos [affectus] (se não absolutamente, ao menos em parte) e, por conseguinte, de fazer com que os padeça menos. É, pois, primordial dar-se ao trabalho de conhecer clara e distintamente, o quanto possível, cada afeto [affectus], para que assim a Mente seja determinada pelo afeto [affectus] a pensar nas coisas que ela percebe clara e distintamente e com as quais se contenta plenamente e, por isso, para que o próprio afeto [affectus] seja separado do pensamento da causa externa e unido aos pensamentos verdadeiros; donde ocorrerá que não apenas o Amor, o Ódio, etc. sejam destruídos (pela Prop. 2 desta parte), mas que também os apetites ou Desejos que costumam originar-se de tal afeto [affectus] não possam ter excesso (pela Prop. 61 da parte 4). Pois antes de tudo cumpre notar que é por um e o mesmo apetite que o homem é dito tanto agir quanto padecer. Por exemplo: mostramos ter sido disposto pela natureza humana que cada um apetece que os outros vivam conforme seu engenho (ver Corol. da Prop. 31 da parte 3); este apetite, no homem não conduzido pela razão, decerto é uma paixão que se chama Ambição e não discrepa muito da Soberba, e, ao contrário, no homem que vive pelo ditame da razão, é uma ação ou virtude denominada Piedade (ver Esc. 1 da Prop. 37 da parte 4 e 2. Dem. da mesma Prop.). E, desta maneira, todos os apetites ou Desejos são paixões apenas enquanto se originam de ideias inadequadas; ao passo que os mesmos são associados à virtude quando excitados ou gerados por ideias adequadas. Com efeito, todos os Desejos pelos quais somos determinados a agir podem originar-se tanto de ideias adequadas quanto de inadequadas (ver Prop. 59 da parte 4). E (para voltar ao ponto de onde fiz a digressão) não se pode excogitar para os afetos [affectus] nenhum outro remédio, que dependa de nosso poder, mais excelente do que este que consiste no conhecimento verdadeiro, visto que não se dá nenhuma outra potência da Mente além da de pensar e formar ideias adequadas, como mostramos acima (pela Prop. 3 da parte 3). ÉTICA V Intelecto Prop. IV

O afeto [affectus] para com uma coisa que imaginamos simplesmente, e não como necessária, nem como possível, nem como contingente, é (sendo iguais as outras condições) o maior de todos. ÉTICA V Intelecto Prop. V

Demonstração: O afeto [affectus] para com uma coisa que imaginamos livre é maior do que para com uma necessária (pela Prop. 49 da parte 3) e, consequentemente, é ainda maior do que para com aquela que imaginamos como possível ou contingente (pela Prop. 11 da parte 4). Ora, imaginar uma coisa como livre não é nada outro que imaginar a coisa simplesmente, ignorando as causas pelas quais ela foi determinada a agir (por aquilo que mostramos no Esc. da Prop. 35 da parte 2); logo, o afeto [affectus] para com uma coisa que imaginamos simplesmente é (sendo iguais as outras condições) maior do que para com uma necessária, possível ou contingente, e, por conseguinte, é o maior. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. V

Demonstração: Não contemplamos uma coisa como ausente a partir do afeto [affectus] pelo qual a imaginamos, mas porque o Corpo é afetado por um outro afeto [affectus] que exclui a existência da coisa (pela Prop. 17 da parte 1). Por conseguinte, não é da natureza do afeto [affectus] referido a uma coisa que contemplamos como ausente superar as outras ações e a potência do homem (sobre isso, ver Prop. 6 da parte 4); mas, ao contrário, é de sua natureza poder ser coibido de alguma maneira pelos afetos [affectus] que excluem a existência de sua causa externa (pela Prop. 9 da parte 4). Ora, o afeto [affectus] que se origina da razão refere-se necessariamente às propriedades comuns das coisas (ver a Def. de razão no Esc. 1 da Prop. 40 da parte 1), que contemplamos sempre como presentes (pois não pode ser dado nada que exclua a existência presente delas), e que imaginamos sempre da mesma maneira (pela Prop. 38 da parte 2). Portanto, tal afeto [affectus] permanece sempre o mesmo e, consequentemente (pelo Ax. 1 desta parte), os afetos [affectus] que lhe são contrários e que não são fomentados pelas respectivas causas externas deverão adaptar-se mais e mais a ele, até que não lhe sejam mais contrários, e nesta medida o afeto [affectus] que se origina da razão é mais potente. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. VII

Quanto mais um afeto [affectus] é excitado por muitas causas simultaneamente concorrentes, tanto maior ele é. ÉTICA V Intelecto Prop. VIII

Demonstração: Muitas causas simultâneas podem mais do que se fossem menos causas (pela Prop. 7 da parte 3); logo (pela Prop. 5 da parte 4), quanto mais um afeto [affectus] é excitado por muitas causas simultaneamente, tanto mais forte ele é. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. VIII

Um afeto [affectus] referido a muitas e diversas causas, que a Mente contempla simultaneamente com o próprio afeto [affectus], é menos nocivo, nós o padecemos menos e somos menos afetados em relação a cada causa, do que um outro afeto [affectus] igualmente grande referido a uma só ou a menos causas. ÉTICA V Intelecto Prop. IX

Demonstração: Um afeto [affectus] é mau ou nocivo apenas enquanto a Mente é por ele impedida de poder pensar (pela Prop. 26 e 27 da parte 4); e por isso aquele afeto [affectus] pelo qual a Mente é determinada a contemplar simultaneamente muitos objetos é menos nocivo do que um outro afeto [affectus] igualmente grande que detenha a Mente na só contemplação de um único ou de poucos objetos, de tal modo que não possa pensar em outros, o que era o primeiro. Ademais, como a essência da Mente, isto é (pela Prop. 7 da parte 3), sua potência, consiste somente no pensamento (pela Prop. 11 da parte 2), logo a Mente padece menos um afeto [affectus] pelo qual é determinada a contemplar simultaneamente muitas coisas do que um afeto [affectus] igualmente grande que mantenha a Mente ocupada na só contemplação de um único ou poucos objetos, o que era o segundo. Por fim, este afeto [affectus] (pela Prop. 48 da parte 3), enquanto referido a muitas causas externas, é também menor em relação a cada uma. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. IX

Escólio: Por este poder de corretamente ordenar e concatenar as afecções [affectio] do Corpo, podemos fazer com que não sejamos facilmente afetados por afetos [affectus] maus. Pois (pela Prop. 7 desta parte) requer-se uma maior força para coibir Afetos ordenados e concatenados segundo a ordem do intelecto do que para coibir os incertos e vagos. Portanto, o melhor que podemos fazer enquanto [quamdiu] não temos o conhecimento perfeito de nossos afetos [affectus] é conceber uma reta regra de viver ou certos dogmas de vida, confiá-los à memória e aplicá-los continuamente às coisas particulares que frequentemente se apresentam na vida, para que assim nossa imaginação seja largamente afetada por eles e eles nos estejam sempre à mão. P. ex.: pusemos entre os dogmas de vida (ver Prop. 46 da parte 4 com seu Esc.) vencer o Ódio com Amor ou Generosidade, e não compensá-lo com Ódio recíproco. E para que tenhamos esta prescrição da razão sempre à mão quando for preciso, cumpre pensar e meditar frequentemente nas injúrias comuns dos homens, bem como na maneira e na via pela qual são repelidas otimamente pela Generosidade; com efeito, assim uniremos a imagem da injúria à imaginação deste dogma, e ele nos estará sempre à mão (pela Prop. 18 da parte 2) quando sofrermos injúria. De fato, se também tivermos à mão a regra do que nos é verdadeiramente útil, bem como do bem que segue da amizade mútua e da sociedade comum, e, além disso, levarmos em conta que da reta regra de viver se origina o sumo contentamento do ânimo (pela Prop. 52 da parte 4), e que os homens, como o resto, agem pela necessidade da natureza; então a injúria, ou seja, o Ódio que dela costuma originar-se, ocupará uma parte mínima da imaginação e será facilmente superada; e se a Ira, que costuma originar-se das maiores injúrias, não for tão facilmente superada, contudo, ainda que com flutuação do ânimo, ela será superada em um espaço de tempo muito menor do que se não tivéssemos meditado previamente sobre estas coisas, como é patente pelas Prop. 6, 7 e 8 desta parte. Do mesmo modo, cumpre pensar na Firmeza para que se derrube o Medo; a saber, cumpre enumerar e imaginar frequentemente os perigos comuns da vida e a maneira como podem ser otimamente evitados e superados pela presença de espírito e pela fortaleza. É de notar, porém, que ao ordenar nossos pensamentos e imagens, cumpre-nos sempre prestar atenção (pelo Corol. da Prop. 63 da parte 4 e Prop. 59 da parte 3) àquilo que é bom em cada coisa, para que assim sejamos determinados a agir sempre pelo afeto [affectus] de Alegria. P.ex.: se alguém vê que persegue excessivamente a glória, que ele pense em seu uso correto, no fim em vista do qual cabe persegui-la e nos meios para poder adquiri-la, mas não em seu abuso, vanidade, na inconstância dos homens ou em outras coisas deste tipo, sobre as quais ninguém pensa senão por perturbação do ânimo; com efeito, tais pensamentos afligem ao máximo os maximamente ambiciosos quando estes desesperam de alcançar a honra que ambicionam; e, ao vomitar Ira, querem parecer sábios. Por isso é certo que são ao máximo desejosos de glória aqueles que ao máximo clamam contra o seu abuso e a vanidade do mundo. E isto não é próprio somente aos ambiciosos, mas é comum a todos aos quais a fortuna é adversa e que são impotentes de ânimo. Pois, sendo pobre, também o avaro não cessa de falar do abuso do dinheiro e dos vícios dos ricos, e não faz outra coisa senão afligir-se e mostrar aos outros que suporta com dificuldade não apenas sua pobreza, mas igualmente as riquezas alheias. Assim também aqueles que são mal recebidos pela amante não pensam em nada além da inconstância das mulheres, de seu ânimo falaz e de seus outros decantados vícios, os quais eles rapidamente devolvem ao esquecimento tão logo voltem a ser acolhidos pela amante. Portanto, quem se empenha em moderar seus afetos [affectus] e apetites pelo só amor da Liberdade, aplica-se, o quanto pode, em conhecer as virtudes e suas verdadeiras causas, e em encher o ânimo do gozo que se origina do verdadeiro conhecimento delas; mas de jeito nenhum em contemplar os vícios humanos, difamar os homens e regozijar-se com uma falsa espécie de liberdade. E aquele que diligentemente observar estas coisas (e, de fato, não são difíceis) e exercitá-las, em breve espaço de tempo poderá dirigir suas ações, no mais das vezes, pelo império da razão. ÉTICA V Intelecto Prop. X

Demonstração: Com efeito, quanto mais uma imagem, ou afeto [affectus], é referida a muitas coisas, tanto mais causas são dadas pelas quais pode ser excitada e fomentada, e a Mente [por Hipótese) contempla todas elas simultaneamente com o próprio afeto [affectus]; e por isso o afeto [affectus] é tanto mais frequente ou tanto mais frequentemente se aviva, e (pela Prop. 8 desta parte) tanto mais ocupa a Mente. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. XI

Deus é isento de paixões e não é afetado por nenhum afeto [affectus] de Alegria ou Tristeza. ÉTICA V Intelecto Prop. XVII

Demonstração: Todas as ideias, enquanto referidas a Deus, são verdadeiras (pela Prop. 32 da parte 2), isto é (pela Def. 4 da parte 2), adequadas; e por isso (pela Def ger. dos Afetos) Deus é isento de paixões. Ademais, Deus não pode passar nem a uma maior nem a uma menor perfeição (pelo Corol. 2 da Prop. 20 da parte 1); portanto (pelas 2. e 3. Def. dos Afetos) não é afetado por nenhum afeto [affectus] de Alegria nem de Tristeza. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. XVII

Corolário: Propriamente falando, Deus não ama nem odeia ninguém. Pois Deus (pela Prop. preced.) não é afetado por nenhum afeto [affectus] de Alegria nem de Tristeza e, consequentemente (pelas 6. e 7. Def. dos Afetos), também não ama nem odeia ninguém. ÉTICA V Intelecto Prop. XVII

Este Amor a Deus não pode ser manchado nem pelo afeto [affectus] de Inveja, nem pelo de Ciúme, mas é tanto mais fomentado quanto mais imaginamos mais homens unidos a Deus pelo mesmo vínculo de Amor. ÉTICA V Intelecto Prop. XX

Demonstração: Este Amor a Deus é o sumo bem que podemos apetecer pelo ditame da razão (pela Prop. 28 da parte 4), é comum a todos os homens (pela Prop. 36 da parte 4) e desejamos que todos gozem dele (pela Prop. 37 da parte 4); por isso (pela 23. Def. dos Afetos) não pode ser maculado pelo afeto [affectus] de Inveja, e nem tampouco (pela Prop. 18 desta parte epela definição de Ciúme, que se vê no Esc. da Prop. 35 da parte 3) pelo afeto [affectus] de Ciúme; mas, ao contrário (pela Prop. 31 da parte 3), deve ser tanto mais fomentado quanto mais imaginamos mais homens gozarem dele. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. XX

Escólio: Da mesma maneira podemos mostrar que não se dá nenhum afeto [affectus] que seja diretamente contrário a este Amor e pelo qual ele possa ser destruído, e por isso podemos concluir que este Amor a Deus é o mais constante de todos os afetos [affectus] e, enquanto é referido ao Corpo, não pode ser destruído senão com o próprio Corpo. De qual natureza ele seja enquanto é referido à só Mente, veremos depois. E com isto abarquei todos os remédios para os afetos [affectus], ou seja, tudo que a Mente, considerada em si mesma, pode frente aos afetos [affectus]; donde transparece que a potência da Mente sobre os afetos [affectus] consiste: Iº No próprio conhecimento dos afetos [affectus] (ver Esc. da Prop. 1 desta parte). IIº Em separar os afetos [affectus] do pensamento da causa externa que imaginamos confusamente (ver Prop. I com o mesmo Esc. da Prop. 4 desta parte). IIIº No tempo pelo qual as afecções [affectio] que são referidas a coisas que entendemos superam aquelas referidas a coisas que concebemos confusa ou mutiladamente (ver Prop. 7 desta parte). IVº Na multidão das causas pelas quais são fomentadas as afecções [affectio] que são referidas às propriedades comuns das coisas ou a Deus (ver Prop. 9 e 11 desta parte). Vº Por fim, na ordem pela qual a Mente pode ordenar seus afetos [affectus] e concatená-los uns com os outros (ver Esc. da Prop. 10 e, além disso, as Prop. iz, 13 e 14 desta parte). Mas, para que seja melhor entendida esta potência da Mente sobre os afetos [affectus], cabe notar, antes de tudo, que chamamos os afetos [affectus] de grandes quando comparamos o afeto [affectus] de um homem com o afeto [affectus] de outro e vemos que um se defronta mais do que o outro com o mesmo afeto [affectus], ou quando comparamos uns com os outros os afetos [affectus] de um mesmo homem e constatamos que ele é mais afetado, ou seja, movido, por um afeto [affectus] do que por outro. Com efeito (pela Prop. 5 da parte 4), a força de um afeto [affectus] qualquer é definida pela potência da causa externa comparada à nossa. Ora, a potência da Mente é definida pelo só conhecimento, ao passo que a impotência ou paixão é estimada pela só privação de conhecimento, isto é, por meio daquilo pelo que as ideias são ditas inadequadas; donde segue que padece ao máximo aquela Mente cuja maior parte é constituída por ideias inadequadas, de maneira que é discernida mais pelo que ela padece do que pelo que ela faz [age]; e, ao contrário, age ao máximo a Mente cuja maior parte é constituída por ideias adequadas, de maneira que, embora nesta estejam tantas ideias inadequadas quanto naquela, contudo é discernida mais pelas que são atribuídas à virtude humana do que pelas que denunciam a impotência humana. Ademais, é de notar que as enfermidades e infortúnios do ânimo têm sua origem principalmente no Amor excessivo a uma coisa que está submetida a muitas variações e de que nunca podemos ser possuidores. Com efeito, ninguém fica agitado ou ansioso senão pela coisa que ama, e nem se originam injúrias, suspeitas, inimizades etc. senão do Amor às coisas que ninguém deveras pode possuir. Por conseguinte, disso facilmente concebemos o que o conhecimento claro e distinto – e precipuamente aquele terceiro gênero de conhecimento (sobre o qual, ver Esc. da Prop. 47 da parte 2), cujo fundamento é o próprio conhecimento de Deus – pode sobre os afetos [affectus], aos quais, enquanto são paixões, se ele não suprime absolutamente (ver Prop. 3 com o Esc. da Prop. 4 desta parte), ao menos faz com que constituam uma parte mínima da Mente (ver Prop. 14 desta parte). Além disso, gera Amor à coisa imutável e eterna (ver Prop. 15 desta parte), da qual somos deveras possuidores (ver Prop. 45 da parte 2), [Amor] que por isso não pode ser manchado por nenhum dos vícios que estão no Amor comum, mas pode ser sempre cada vez maior (pela Prop. 15 desta parte), ocupar a maior parte da Mente (pela Prop. 16 desta parte) e afetá-la amplamente. E com isto terminei tudo que diz respeito a esta vida presente, pois o que eu disse no princípio deste Escólio, a saber, que com estas poucas [proposições] reuni todos os remédios para os afetos [affectus], poderá ver facilmente cada um que prestar atenção ao que dissemos neste Escólio e simultaneamente às definições da Mente e de seus afetos [affectus], e por fim às Proposições 1 e 3 da Parte 3. Portanto é chegado o tempo de passar àquelas coisas que pertencem à duração da Mente sem relação ao Corpo. ÉTICA V Intelecto Prop. XX

Demonstração: A imaginação é a ideia pela qual a Mente contempla alguma coisa como presente (ver sua Def. no Esc. da Prop. 17 da parte 2), ideia que, porém, indica mais a constituição presente do Corpo humano do que a natureza da coisa externa (pelo Corol. 2 da Prop. 16 da parte 2). Portanto, o afeto [affectus] é uma imaginação (pela Def. geral dos Afetos) enquanto ele indica a constituição presente do Corpo; e assim (pela Prop. 21 desta parte) a Mente não está submetida aos afetos [affectus] que se referem a paixões a não ser enquanto dura o corpo. C. Q. D. ÉTICA V Intelecto Prop. XXXIV