velamento

O velamento (Verborgenheit) recusa o desvelamento à aletheia. Nem o admite até como steresis (privação), mas conserva para a aletheia o que lhe é mais próprio, como propriedade. O velamento é, então, pensado a partir da verdade como desvelamento, o não-desvelamento e, desta maneira, a mais própria e mais autêntica não-verdade pertencente à essência da verdade. O velamento do ente em sua totalidade não se afirma como uma consequência secundária do conhecimento sempre parcelado do ente. O velamento do ente em sua totalidade, a não-verdade original, é mais antiga do que toda revelação de tal ou tal ente. É mais antiga mesmo do que o próprio deixar-ser (sein-lassen) que, desvelando, já dissimula e, assim, mantém sua relação com a dissimulação (Verbergung). O que preserva o deixar-ser nesta relação com a dissimulação? Nada menos que a dissimulação do ente como tal, velado em sua totalidade, isto é, o mistério. Não se trata absolutamente de um mistério particular referente a isto ou àquilo, mas deste fato único que o mistério (a dissimulação do que está velado) como tal domina o ser-aí do homem. (MHeidegger – SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE)


O que testemunha, de modo mais convincente, a constante e difundida, ainda que dissimulada, revelação do nada em nosso ser-aí, que a negação? Mas, de nenhum modo, esta aproxima o “não”, como meio de distinção e oposição do que é dado, para, por assim dizer, colocá-lo entre ambos. Como poderia a negação também produzir por si o “não” se ela somente pode negar se lhe foi previamente dado algo que pode ser negado? Como pode, entretanto, ser descoberto algo que pode ser negado e que deve sê-lo enquanto afetado pelo “não” se não fosse realidade que todo o pensamento enquanto tal, já de antemão, tem visado ao “não”? Mas o “não” somente pode revelar-se quando sua origem, o nadificar do nada em geral e com isto o próprio nada foram arrancados de seu velamento. O “não” não surge pela negação, mas a negação se funda no “não” que, por sua vez, se origina do nadificar do nada. Mas a negação é também apenas um modo de uma revelação nadificadora, isto quer dizer, previamente fundado no nadificar do nada. 166 MHeidegger: QUE É METAFÍSICA?

Já antes de suas respostas à questão do ente enquanto tal a metafísica representou o ser. Ela expressa necessariamente o ser e, por isso mesmo, o faz constantemente. Mas a metafísica não leva o ser mesmo a falar, porque não considera o ser em sua verdade e a verdade como o desvelamento e este em sua essência. A essência da verdade sempre aparece à metafísica apenas na forma derivada da verdade do conhecimento e da enunciação. O desvelamento, porém, poderia ser algo mais originário que a verdade no sentido da veritas. Alétheia talvez fosse a palavra que dá o aceno ainda não experimentado para a essência impensada do esse. Se a coisa fosse assim, sem dúvida o pensamento da metafísica que apenas representa jamais poderia alcançar esta essência da verdade, por mais afanosamente que se empenhasse historicamente pela filosofia pré-socrática; pois não se trata de algum renascimento do pensamento pré-socrático — tal projeto seria vão e sem sentido — , trata-se, isto sim, de prestar atenção ao advento da ainda não enunciada essência do desvelamento que é o modo como o ser se anunciou. Entretanto, velada permanece para a metafísica a verdade do ser ao longo de sua história, de Anaximandro (79) a Nietzsche. Por que não pensa a metafísica na verdade do ser? Depende uma tal omissão apenas da espécie de pensamento que é o metafísico? Ou pertence ao destino essencial da metafísica, que se lhe subtraia seu próprio fundamento, porque em toda a eclosão do desvelamento permanece ausente sua essência, o velamento, e isto em favor do que foi desvelado e aparece como o ente? 215 MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA

É preciso deixar aqui de lado a história pré e pós-aristotélica do problema do fundamento. (NT: O que a língua alemã exprime com o mesmo termo Grund deve ser expresso no vernáculo umas vezes por fundamento, outras por razão.). No que se refere à projetada colocação do problema seja, contudo, lembrado o seguinte: através de Leibniz o problema do fundamento é conhecido na forma da questão do principiam rationis sufficientis. Monograficamente foi Chr. A. Crusius o primeiro que tratou do “Princípio da Razão” em sua Dissertatio philosophica de usa et limitibus principii rationis determinantes vulgo suf ficientis (1743) (NA: Vide Opuscula philosophico-theologica antes seorsum edita nunc secundes caris et copiose suas. Lipsiae. 1750, p. 152 ss.) e, por último, Schopenhauer em sua dissertação “Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente” (1813) (NA: Segunda edição, 1847; terceira edição, dirigida por Jul, Frauenstädt, 1864.). Se, porém, o problema do fundamento está imbricado com as questões centrais da metafísica em geral, então deve também estar vivo mesmo lá onde não é tratado expressamente na forma conhecida. Assim Kant, aparentemente, dedicou interesse mínimo ao “princípio da razão”, mesmo que o analise tanto no começo (NA: Principiorum primorum cognitionis metaphisicae nova dilucidatio, 1755.) de seu filosofar como pelo fim (NA: Sobre uma descoberta, segundo a qual toda a crítica nova da razão pura deverá se tornar dispensável através da mais antiga, 1790.) E, contudo, situa-se ele no centro da Crítica da Razão Pura (NA: Vide mais adiante a análise de Kant.). De não menos importância, porém, são, para o problema, as Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana e os Objetos com Ela em Conexão de Schelling (1809) (NA: Vide Obras, vol. 7, p. 333-416.) já a referência a Kant e a Schelling toma problemático se o problema do fundamento coincide com o do “princípio da razão” ou se é com ele, quando muito, posto. Se este não é o caso, então o problema do fundamento precisa ser primeiro levantado, o que não exclui que para isto uma discussão do “princípio da razão” possa dar motivos e proporcionar uma primeira indicação. A exposição e análise do problema é de igual importância à obtenção e delimitação do âmbito, em cujo seio se tratará da essência do fundamento, sem a pretensão de pô-lo, com um só golpe, diante dos olhos. Como sendo tal âmbito será evidenciada a transcendência. Isto quer, ao mesmo tempo, dizer: ela mesma será justamente determinada de modo mais originário e amplo através do problema do fundamento. Toda a clarificação da essência deve enquanto filosofante, quer dizer, como um esforço intimamente finito, testemunhar também sempre necessariamente a desordem (Unwesen) que o conhecimento humano insinua em qualquer essência (Wesen). (NT: Ainda que Wesen designe, de per si, essência e Unwesen (não-essência) desordem, Heidegger carrega os dois termos com um sentido fenomenológico. De acordo com sua compreensão do método fenomenológico, passam a ter força verbal. Wesen significará então: acontecer, imperar, revelar-se, a manifestação fenomenológica; Unwesen (treiben) frustrar e perturbar o acontecer, o imperar, dissimulação do que de si se revela, ocultação “fenomenológica”. Wesen e Unwesen exprimem, assim, de maneira decidida, um traço básico do pensamento heideggeriano. Apontam sobretudo também para a superação da tradição essencialista. A nova carga semântica os transforma numa chave (ou clave) que desloca toda a linguagem do filósofo para dentro de um novo horizonte conotador. Todo o conteúdo ontológico tradicional se torna fenomenológico. Ontologia se toma fenomenologia. Na nova postura se revela, já desde o início, seminalmente, a destruição, transformação, repetição em outro nível, de toda a metafísica ocidental. Esta violenta metamorfose das palavras transfere toda a linguagem filosófica para um novo começo; e dele emerge o impulso do pensamento existencial como Heidegger o compreende. Quem lê então as expressões essência da verdade, essência do fundamento, deve saber transpor-se para dentro desta nova situação. Toda a problemática do fundamento é arrancada de sua perspectiva metafísica essencialista. Fala-se de fundamento não mais buscando razões, causas, mas descobrindo-se nele um acontecer originário ligado à transcendência, melhor, à existência, ao ser-aí. Esta subversão das estruturas podais da ontologia tradicional deixa entrever o impacto radical e, paralelamente, a dificuldade de compreensão da pretensão heideggeriana. Nesta passagem o filósofo aponta a “desordem”, a dissimulação do acontecer do fundamento, provocada pelo conhecimento humano finito. Mais adiante este processo será atribuído também à liberdade finita. O método fenomenológico ocupa-se em desvendar o enigma do velamento e desvelamento que assim acontecem.) 259 MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO

Não é por acaso que o agathón está indeterminado sob o ponto de vista do conteúdo, e de tal maneira que todas as definições e interpretações devem fracassar sob este ponto de vista. Explicações racionalistas fracassam da mesma maneira que a fuga “irracional” para o “mistério”. A clarificação de agathón deve ater-se, de acordo com a indicação que dá o próprio Platão, à tarefa da interpretação essencial da conexão de verdade, compreensão e ser. A interrogação que se volta para a interna possibilidade desta conexão vê-se “forçada” a realizar expressamente a ultrapassagem, que acontece em cada ser-aí necessariamente, mas o mais das vezes de maneira velada. A essência do agathón reside no domínio de si mesmo como Hou héneka — como o em-vista-de… é a fonte da possibilidade como tal. E já que o possível situa-se acima do atual (Possibilidadeatualidade. — Já em Ser e Tempo o filósofo afirma: “Acima da atualidade está a possibilidade”, p. 38. Aqui o repete: “O possível situa-se acima do atual. “A afirmação do primado da possibilidade sobre a atualidade é um dos subterrâneos motivos fundamentais do pensamento heideggeriano. Possível, possibilidade tomam aqui sentido bem diverso do da tradição: dynamis-enérgeia, ato e potência. A categoria da possibilidade refere-se ao ser enquanto velamento e desvelamento; vem contida na ambivalência do termo alétheia, e é, assim uma das chaves para a interpretação do método fenomenológico (Ver E. Stein: Compreensão e Finitude, pp. 39-42). O uso de categorias carregadas de ambigüidade e ambivalência do ponto de vista semântico constitui traço característico e relevante nos textos do filósofo e lhe dá uma ressonância e intensidade raras, hoje em dia, na literatura filosófica. Numa época em que a busca do rigor e da economia na linguagem filosófica exige cada vez maior formalização, perde-se esta ambivalência e polissemia. Os sistemas lógicos puramente extensionais reduzem os valores de verdade a dois: “verdadeiro” e “falso”. Quando, porém, não se busca apenas a significação ou referência (Bedeutung), mas o sentido (Sinn), a intenção do termo ou da proposição, salva-se a possibilidade de um jogo quase ilimitado com a linguagem, ou melhor, salva-se aquela estranha transgressão de limites com que se deparam todas as formalizações no terreno da linguagem. Por vias pouco usuais para as modernas preocupações com a linguagem, Heidegger explora radicalmente a intencionalidade. Ao lado da semântica extencional deve-se pressupor a possibilidade de uma semântica intencional para aceitar as proposições heideggerianas. Com um autor com intenções essencialmente ontológicas, nada pode fazer a lógica extencional. (N. do T.)), é, na verdade, he tou agathou hécsis, a fonte essencial de possibilidade, meizónos timetéon (Ibidem, 509 A. (N. do A.)). 341 MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO

Em que medida reside na transcendência a possibilidade interna para algo tal como fundamento em geral? O mundo se dá ao ser-aí como a respectiva totalidade do em-vista-de-si-mesmo, isto é, do em-vista-de um ente que é co-originariamente: o ser-junto-do…, ente puramente subsistente, o ser-com com… ser-aí de outros e ser-para… si mesmo. O ser-aí só pode, desta maneira, ser para si como para si mesmo, se “se” ultrapassa no em-vista-de. A ultrapassagem com o caráter de em-vista-de somente acontece numa “vontade”, que como tal se projeta sobre possibilidades de si mesmo. Esta vontade, que essencialmente sobre-(pro-)jeta e por isso projeta ao ser-aí o em-vista-de-si-mesmo, não pode, por conseguinte, ser um determinado querer, um “ato de vontade”, à diferença de outros comportamentos (por exemplo, representar, julgar, alegrar-se). Todos os comportamentos radicam na transcendência. Aquela vontade, porém, deve “formar”, como ultrapassagem nela, o próprio em-vista-de. Aquilo, entretanto, que, segundo sua essência, antecipa projetando algo tal como em-vista-de em geral e não o produz também como eventual resultado de um esforço, é o que chamamos liberdade. (A liberdade de que aqui se fala não deve ser confundida com livre-arbítrio. Ela se liga à capacidade de transcendência que acompanha o ser<ser humano enquanto tal. Mas não é uma característica do sujeito. É o lugar de encontro de ser e homem e assim é referida ao Dasein (ser-aí; por favor não se modalize o termo traduzindo-o por eis-aí-ser). Enquanto ligada à transcendência o filósofo pode vincular mais tarde esta liberdade à vontade e à clareira (Lichtung); ver Sobre a Essência da Verdade, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1970. Seria erro hipostasiar liberdade como algo entitativo ou interpretá-la na direção da substância ou da subjetividade da tradição metafísica. O filósofo forja precisamente estas difíceis cargas semânticas para se colocar além de uma visão substancialista ou subjetivista. Na raiz da liberdade, aqui em questão, está o enigma da alétheia como velamento e desvelamento. (N. do T.)) A ultrapassagem para o mundo é a própria liberdade. Por conseguinte, a transcendência não se depara com o em-vista-de como com um valor ou fim por si existente; mas liberdade — é, na verdade, como liberdade — mantém o em-vista-de em-face-de-si (entegegen). Neste manter-em-face-de-si do em-vista-de, pelo transcender, acontece o ser-aí no homem, de tal maneira que, na essência de sua existência, pode ser responsável por si, isto é, pode ser um (si) mesmo livre. Aqui, porém, se desvela a liberdade, ao mesmo tempo, como a possibilitação de compromisso e obrigação em geral. Somente a liberdade pode deixar imperar e acontecer um mundo como mundo (welten). Mundo jamais é, mas acontece como mundo (weltet). 347 MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO

O deixar-ser do ente que dispõe o ser-aí com o ente em sua totalidade penetra e precede todo o comportamento aberto que nele se desenvolve. O comportamento do homem é perpassado pela disposição de humor que se origina da revelação do ente em sua totalidade. Esta “em sua totalidade” aparece, entretanto, à preocupação e ao cálculo cotidiano como o imprevisível e o inconcebível. Este “em sua totalidade” jamais se deixa captar a partir do ente que se manifestou, pertença ele quer à natureza, quer à história. Ainda que este “em sua totalidade” a tudo perpasse constantemente com sua disposição, permanece, contudo, o não-disposto (não-determinado) e o não-disponível (indisponível, indeterminável) e é, desta maneira, confundido, o mais das vezes, com o que é mais corrente e menos digno de nota. Aquilo que assim nos dispõe de maneira alguma é nada, mas uma dissimulação do ente em sua totalidade. Justamente, na medida em que o deixar-ser sempre deixa o ente, a que se refere, ser, em cada comportamento individual, e com isto o desoculta, dissimula ele o ente em sua totalidade. O deixar-ser é, em sisi mesmo, simultaneamente, uma dissimulação. Na liberdade ek-sistente do ser-aí acontece a dissimulação do ente em sua totalidade, é o velamento. 421 MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE

O velamento recusa o desvelamento à alétheia. Nem o admite até como stéresis (privação), mas conserva para a alétheia o que lhe é mais próprio, como propriedade. O velamento é, então, pensado a partir da verdade como desvelamento, o não-desvelamento e, desta maneira, a mais própria e mais autêntica não-verdade pertencente à essência da verdade. O velamento do ente em sua totalidade não se afirma como uma consequência secundária do conhecimento sempre parcelado do ente. O velamento do ente em sua totalidade, a não-verdade original, é mais antiga do que toda revelação de tal ou tal ente. É mais antiga mesmo do que o próprio deixar-ser que, desvelando, já dissimula e, assim, mantém sua relação com a dissimulação. O que preserva o deixar-ser nesta relação com a dissimulação? Nada menos que a dissimulação do ente como tal, velado em sua totalidade, isto é, o mistério. Não se trata absolutamente de um mistério particular referente a isto ou àquilo, mas deste fato único que o mistério (a dissimulação do que está velado) como tal domina o ser-aí do homem. 423 MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE

Instalar-se na vida corrente é, entretanto, em sisi mesmo o não deixar imperar a dissimulação do que está velado. Sem dúvida, também na vida corrente existem enigmas, obscuridades, questões não decididas e coisas duvidosas. Mas todas estas questões, que não surgem de nenhuma inquietude e estão seguras de si mesmas, são apenas transições e situações intermediárias nos movimentos da vida corrente e, portanto, inessenciais. Lá onde o velamento do ente em sua totalidade é tolerado sob a forma de um limite que acidentalmente se anuncia, a dissimulação como acontecimento fundamental caiu no esquecimento. 426 MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE

Entretanto, o que o bom senso, antecipadamente justificado em seu âmbito próprio, pensa da filosofia, não atinge a essência dela. Esta somente se deixa determinar a partir da relação com a verdade originária do ente enquanto tal e em sua totalidade. Mas pelo fato de a plena essência da filosofia incluir sua não-essência e imperar originariamente sob a forma da dissimulação, a filosofia, enquanto põe a questão desta verdade, é ambivalente em si mesma. Seu pensamento é a tranquilidade da mansidão que não se nega ao velamento do ente em sua totalidade. Mas seu pensamento é também, ao mesmo tempo, a decisão enérgica do rigor, que não rompe o velamento, mas que impele sua essência intacta para dentro da abertura da compreensão, e desta maneira, para dentro de sua própria verdade. 439 MHeidegger: SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE

Se esta é a situação do tempo, em que se expressa o horizonte transcendental de ser como poderia ser então caracterizada a experiência fundamental que conduz o ponto de partida de Ser e Tempo? Pode-se já apontar nela um caráter de subtração? A experiência, que, pela primeira vez, se procura expressar em Ser e Tempo, e que na postura interrogativa transcendental deve ainda falar, de certa maneira, a linguagem da metafísica, consiste no fato de, em toda a metafísica, o ser<ser do ente haver sido certamente pensado e conceituado, tornando assim também visível a verdade do ente. Todavia, em todas as manifestações do ser, sua verdade nunca chega a ser questionada; permanece esquecida. A experiência básica de Ser e Tempo é, portanto, o esquecimento do ser. Esquecimento significa, porém, aqui, em sentido grego: velamento e ocultar-se. 862 MHeidegger: PROTOCOLO DO SEMINÁRIO SOBRE A CONFERÊNCIA “TEMPO E SER”

O esquecimento do ser que se mostra como um não-pensar na verdade do ser pode ser facilmente interpretado como uma negligência do pensamento em voga até hoje e, portanto, mal-entendido; ou ser, em todo caso, interpretado como algo a que se pode pôr um fim, assumindo de maneira expressa e realizando a questão do sentido, quer dizer, da verdade do ser. O pensamento heideggeriano poderia ser compreendido — e Ser e Tempo parece sugeri-lo ainda — como a preparação e a abertura do fundamento em que residiu a base de toda metafísica inacessível a ela própria, de maneira que assim o esquecimento do ser até agora reinante possa ser suprimido e extinto. Entretanto, para a compreensão correta, importa aceitar que o não-pensar, até agora imperante, não é resultado de uma negligência, mas que deve ser pensado como consequência do velar-se do ser. O velamento do ser faz parte — como sua privação — da clareira do ser. O esquecimento do ser, que constitui a essência da metafísica e que se tornou o elemento propulsor para Ser e Tempo, faz parte do próprio modo de acontecer o ser. Com isto se impõe a um pensamento que pensa o ser a tarefa de pensar o ser tal maneira que o esquecimento do ser dela faça parte essencial. 863 MHeidegger: PROTOCOLO DO SEMINÁRIO SOBRE A CONFERÊNCIA “TEMPO E SER”

O velamento, porém, que faz parte da metafísica como limite, deve ser propriedade do próprio Ereignis. Isto significa que a subtração, que na figura do esquecimento do ser caracterizou a metafísica, mostra-se agora como a dimensão do próprio velamento. Só que agora este velamento não se oculta, porque o acompanha a atenção do pensamento. 920 MHeidegger: PROTOCOLO DO SEMINÁRIO SOBRE A CONFERÊNCIA “TEMPO E SER”

Com a penetração do pensamento no Ereignis advém, portanto, pela primeira vez, o modo de desvelamento próprio do Ereignis. O Ereignis é, nele mesmo Enteignis, palavra em que se procurou assumir, de maneira historial e a-propriadora, a léthe dos antigos gregos, com o sentimento de velamento. 921 MHeidegger: PROTOCOLO DO SEMINÁRIO SOBRE A CONFERÊNCIA “TEMPO E SER”

No que se refere a Hegel e os gregos isto significa: precede a todas as enunciações certas ou erradas sobre a história, o fato de que Hegel experimentou a essência da história a partir da essência do ser no sentido da subjetividade absoluta. Até o momento não existe uma experiência da história que, sob o ponto de vista filosófico correspondesse a esta experiência hegeliana da história. Mas a determinação especulativo-dialética da história traz justamente como consequência o fato de para Hegel ter sido vedado descobrir a Alétheia e seu imperar propriamente como a questão do pensamento; isto aconteceu exatamente na filosofia que determinara “o reino da pura verdade” como “a meta” da filosofia. Pois Hegel experimenta o ser quando o concebe como o indeterminado imediato, como posto pelo sujeito que determina e compreende. Consequentemente não é ele capaz de libertar o ser no sentido grego, o einai, da referência ao sujeito para então entregá-lo à liberdade de seu próprio acontecer fenomenológico. Este, porém é o pre-sentar, quer dizer, o surgir contínuo desde o velamento para o desvelamento. No pre-sentar se manifesta a desocultação. Ela acontece no Hén e no Lógos, isto é, no jazer-aí unificando e recolhendo — quer dizer no deixar demorar-se como presença. A Alétheia acontece na Idéa e na koinonía das ideias, na medida em que estas se manifestam umas às outras, constituindo, desta maneira, o ente-ser, o óntos ón. A Alétheia acontece na Enérgeia, que nada tem a ver com actus e nada com atividade, mas somente com o érgon experimentado em seu sentido grego e seu caráter de ser-pro-duzido para dentro do pre-sentar. 1059 MHeidegger: HEGEL E OS GREGOS

Mas qual é então a situação desta enigmática Alétheia mesma que se tornou um escândalo para os intérpretes do mundo grego, pelo fato de se aterem apenas a esta palavra isolada e sua etimologia, em vez de pensarem a partir da questão para a qual apontam palavras como desvelamento e velamento? É a Alétheia enquanto desvelamento o mesmo que ser, isto é, pre-sentar? 1063 MHeidegger: HEGEL E OS GREGOS