Phänomen
Por mais que a compreensão de ser oscile, flutue e se mova rigorosamente no limiar de um mero conhecimento da palavra esse estado indeterminado de uma compreensão de ser já sempre à disposição é, em sisi mesmo, um FENÔMENO positivo que necessita de esclarecimento. Contudo, uma investigação sobre o sentido de ser não pode pretender dar uma tal explicação no início. A interpretação dessa compreensão mediana de ser só pode conquistar um fio condutor com a elaboração do conceito de ser. É à luz desse conceito e dos modos de compreensão explícita nela inerentes que se deverá decidir o que significa essa compreensão de ser obscura e ainda não esclarecida e quais espécies de obscurecimento ou impedimento são possíveis e necessários para um esclarecimento explícito do sentido de ser. STMSC: §2
Em contrapartida, deve-se mostrar, com base no questionamento explícito da questão sobre o sentido do ser, que e como a problemática central de toda ontologia se funda e lança suas raízes no FENÔMENO do tempo, desde que se explique e se compreenda devidamente como isso acontece. STMSC: §5
De acordo com a tendência positiva da destruição, deve-se perguntar de saída se, e até onde, no curso da história da ontologia, a interpretação de ser está tematicamente articulada com o FENÔMENO do tempo e se, e até onde, a problemática da temporaneidade, aqui necessária, foi e podia ter sido elaborada em princípio. Kant foi o primeiro e o único a dar um passo no caminho da investigação para a dimensão da temporaneidade. Ou melhor, Kant foi o primeiro que se deixou encaminhar, nesse caminho, pela pressão dos próprios fenômenos. Pois é somente depois de fixar a problemática da temporaneidade que se pode lançar alguma luz sobre a obscuridade da doutrina do esquematismo. Seguindo esse caminho é que se poderá mostrar por que, em suas dimensões próprias e em sua função ontológica central, esse âmbito teve de manter-se fechado para Kant. Ele próprio sabia que estava se aventurando num âmbito obscuro: “Esse esquematismo de nosso entendimento, no tocante aos fenômenos e à sua forma, é uma arte escondida nas profundezas da alma humana, cujos mecanismos verdadeiros dificilmente poderíamos arrancar à natureza para colocá-los a descoberto diante de nossos olhos”. Para que a expressão “ser” venha a adquirir um sentido comprovável, deve-se esclarecer, em princípio e explicitamente, diante de que Kant, por assim dizer, recua. Em última instância, são justamente os fenômenos da “temporaneidade”, a serem explicitados na presente analítica, que constituem os juízos mais secretos da “razão universal”, cuja analítica foi apresentada por Kant como o “ofício dos filósofos”. STMSC: §6
Seguindo a tarefa da destruição, orientada pela problemática da temporaneidade, o presente tratado busca interpretar o capítulo do esquematismo e, a partir daí, a doutrina kantiana do tempo. Também se haverá de mostrar por que Kant fracassou na tentativa de adentrar a problemática da temporaneidade. Duas coisas o impediram: em primeiro lugar, a falta da questão do ser e, em íntima conexão com isso, a falta de uma ontologia explícita da presença (Dasein) ou, em terminologia kantiana, a falta de uma analítica prévia das estruturas que integram a subjetividade do sujeito. Ao invés disso, Kant aceita dogmaticamente a posição de Descartes, apesar de todos os progressos essenciais que fez. Ademais, a análise do tempo, embora tenha reconduzido o FENÔMENO para o sujeito, permanece orientada pela concepção vulgar do tempo, herdada da tradição. É o que, em última instância, impede Kant de elaborar o FENÔMENO de “uma determinação transcendental do tempo”, em sua própria estrutura e função. Devido a essa dupla influência da tradição, a conexão decisiva entre o “tempo” e o “eu penso” permaneceu envolta na mais completa escuridão, não chegando sequer uma vez a ser problematizada. STMSC: §6
O tratado de Aristóteles sobre o tempo é a primeira interpretação desse FENÔMENO, legada pela tradição. Ele determinou, de maneira essencial, toda concepção posterior do tempo, inclusive a de Bergson. Ademais, pela análise do conceito aristotélico de tempo, tornar-se-á claro, retrospectivamente, que a concepção kantiana do tempo se move dentro das estruturas apresentadas por Aristóteles. Isso significa que a orientação ontológica fundamental de Kant é grega, não obstante todas as diferenças que uma nova investigação comporta. STMSC: §6
O termo tem dois componentes: FENÔMENO e logos; ambos remontam a étimos gregos. Exteriormente, o termo fenomenologia corresponde, no que respeita a sua formação, à teo-logia, bio-logia, socio-logia, termos traduzidos por ciência de Deus, da vida, da sociedade. Fenomenologia seria, portanto, a ciência dos fenômenos. Vamos expor uma concepção preliminar da fenomenologia de duas maneiras: primeiro, caracterizando o que designam os dois componentes do termo, a saber, “FENÔMENO” e “logos” e, segundo, fixando o sentido da expressão, resultante de sua composição. A história da palavra, que apareceu segundo se presume na Escola de Wolff, não tem aqui importância. STMSC: §7
A expressão grega phainomenon, a que remonta o termo “FENÔMENO”, deriva do verbo phainesthai. phainesthai significa: mostrar-se e, por isso, phainomenon diz o que se mostra, o que se revela. Já em sisi mesmo, porém, phainesthai é a forma média de phaino – trazer para a luz do dia, pôr no claro. phaino pertence à raiz pha, como phos, a luz, a claridade, isto é, o elemento, o meio, em que alguma coisa pode vir a se revelar e a se tornar visível em si mesma. Deve-se manter, portanto, como significado da expressão “FENÔMENO” o que se revela, o que se mostra em sisi mesmo. Ta phainomena, “os fenômenos”, constituem, pois, a totalidade do que está à luz do dia ou se pode pôr à luz, o que os gregos identificavam, algumas vezes, simplesmente com ta onta (os entes), a totalidade de tudo que é. Ora, o ente pode-se mostrar por si mesmo de várias maneiras, segundo sua via e modo de acesso. Há até a possibilidade de o ente mostrar-se como aquilo que, em sisi mesmo, ele não é. Neste modo de mostrar-se, o ente “se faz ver assim como…” Chamamos de aparecer, parecer e aparência (Scheinen) a esse modo de mostrar-se. Em grego, a expressão phainomenon, “FENÔMENO”, possui também o significado do que “se faz ver assim como”, da “aparência”, do que “parece e aparece”; phainomenon agathon designa um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que “na realidade” não é assim como se dá e apresenta. A compreensão posterior de FENÔMENO depende de uma visão de como ambos os significados de FENÔMENO (FENÔMENO como o que se mostra, e FENÔMENO como aparecer, parecer e aparência) se inter-relacionam em sua estrutura. Somente na medida em que algo pretende mostrar-se em seu sentido, isto é, ser FENÔMENO, é que pode mostrar-se como algo que ele mesmo não é, pode “apenas se fazer ver assim como…” No significado de aparecer, parecer e aparência, também está incluído o significado originário de FENÔMENO como o que se revela, significado que fundamenta e sustenta o anterior. Terminologicamente reservamos a palavra FENÔMENO para designar o significado positivo e originário, distinguimos FENÔMENO de aparecer, parecer e aparência, entendidos como uma modificação privativa de FENÔMENO. O que ambos exprimem, porém, nada tem a ver, em princípio, com o que se chama de “manifestação” (Erscheinung) e muito menos com “mera manifestação” (blosse Erscheinung). STMSC: §7
Apesar de “manifestar-se” não ser nunca um mostrar-se no sentido de FENÔMENO, manifestar-se só é possível com base no mostrar-se de algo. Este mostrar-se, que também torna possível a manifestação, não é, porém, a própria manifestação. Manifestar-se é anunciar-se mediante algo que se mostra. Assim, quando se diz que com a palavra “manifestação” indicamos em que direção alguma coisa se manifesta sem que seja em si mesma uma manifestação, o conceito de FENÔMENO não é delimitado mas pressuposto. Essa pressuposição permanece, contudo encoberta porque, nessa determinação de “manifestação”, o uso da palavra manifestar-se é ambíguo. Pois, “aquilo em que alguma coisa se manifesta” diz somente aquilo em que uma coisa se anuncia, isto é, não se mostra; e na locução “sem que seja em si mesma uma manifestação”, manifestação significa mostrar-se em si mesma. É que este mostrar-se pertence essencialmente àquilo em que alguma coisa se anuncia. Desse modo, fenômenos nunca são manifestações, toda manifestação está remetida a um FENÔMENO. Quando se define, portanto, o FENÔMENO com a ajuda de um conceito ainda não esclarecido de “manifestação” tudo fica de pernas para o ar, e uma crítica da fenomenologia nestas bases é, sem dúvida alguma, um empreendimento bastante curioso. STMSC: §7
A palavra “manifestação” ainda pode significar por si mesma duas coisas: uma, o manifestar-se no sentido de anunciar-se, como um não mostrar-se em sisi mesmo, e outra, o que se anuncia em sisi mesmo, aquilo que, em seu mostrar-se, aponta e indica algo que não se mostra. E, por fim, pode-se ainda usar manifestação para dizer o FENÔMENO em seu sentido autêntico, como um mostrar-se. Ao se designar essas três acepções distintas com a palavra “manifestação”, torna-se inevitável a confusão. STMSC: §7
Essa confusão se agrava ainda mais já que “manifestação” e “manifestar-se” podem assumir ainda um outro significado. O que anuncia indica, em seu mostrar-se, o que não se revela, entendido como o que emerge naquilo mesmo que não se revela, como o que dele irradia, de tal maneira que se pense o que se revela como o que, essencialmente, nunca se pode revelar. Nesse caso, manifestação e manifestar-se exprimem o mesmo que produção e produto, o que, no entanto, não constitui o ser próprio do que produz: manifestação, no sentido de “mera manifestação”. O que assim produzido anuncia, mostra-se, sem dúvida, em sisi mesmo, embora, enquanto irradiação daquilo que anuncia, constantemente o encubra em sisi mesmo. Entretanto, esse não mostrar-se que esconde não é, por isso, aparecer, parecer e aparência. Kant utiliza o termo manifestação (Erscheinung) nesta combinação de significados. Para ele, manifestações são, de um lado, os objetos da intuição empírica, o que se mostra na intuição. O que assim se mostra (FENÔMENO, portanto, em sentido originário e autêntico) é, ao mesmo tempo, “manifestação” enquanto irradiação que anuncia algo que se vela nas manifestações. STMSC: §7
Como um FENÔMENO é constitutivo da “manifestação”, no sentido de um anúncio através de algo que se mostra, e uma vez que o FENÔMENO pode sempre transformar-se privativamente em aparência, também a manifestação pode tornar-se simples aparência. Assim, num determinado tipo de iluminação, alguém pode aparecer como se tivesse o rosto vermelho. O rosto vermelho pode ser tomado como anúncio de febre que, por sua vez, é indício de um distúrbio no organismo. STMSC: §7
FENÔMENO mostrar-se em sisi mesmo, significa um modo privilegiado de encontro. Manifestação, ao contrário, indica no próprio ente uma remissão referencial, de tal maneira que o referente (o que anuncia) só pode satisfazer a sua possível função de referência se for um “FENÔMENO”, ou seja, caso se mostre em sisi mesmo. Manifestação e aparência se fundam, de maneira diferente, no FENÔMENO. Essa multiplicidade confusa dos “fenômenos” que se apresenta nas palavras FENÔMENO, aparência, aparecer, parecer, manifestação, mera manifestação, só pode deixar de nos confundir quando se tiver compreendido, desde o princípio, o conceito de FENÔMENO: o que se mostra em sisi mesmo. STMSC: §7
Se, nesta apreensão do conceito de FENÔMENO, ficar indeterminado que ente está sendo chamado de FENÔMENO e se ficar em aberto se o que se mostra é um ente ou um caráter ontológico de um ente, então ter-se-á apenas um conceito formal de FENÔMENO. Mas se, por aquilo que se mostra, compreende-se o ente, que no sentido de Kant se torna acessível na intuição empírica, então consegue-se usar devidamente o conceito formal de FENÔMENO. Neste uso, o FENÔMENO satisfaz o significado do conceito vulgar de FENÔMENO. O conceito vulgar, porém, não é o conceito fenomenológico de FENÔMENO. Dentro da problemática de Kant, o que, fenomenologicamente, se entende por FENÔMENO, pode-se elucidar, com ressalva das demais diferenças, através das seguintes palavras: o que já sempre se mostra nas manifestações, no FENÔMENO em sentido vulgar, de maneira prévia e concomitante, embora não temática, pode mostrar-se tematicamente. E o que assim se mostra em sisi mesmo (“formas da intuição”) são fenômenos da fenomenologia. Pois é evidente que, se Kant, ao afirmar que o espaço é o continente a priori de uma ordem, pretende fazer uma afirmação transcendental fundamentada, espaço e tempo devem poder mostrar-se assim, ou seja, devem poder tornar-se fenômenos. STMSC: §7
Compreender o sentido do conceito formal de FENÔMENO e de seu uso devido na acepção vulgar é uma pressuposição indispensável para se compreender o conceito fenomenológico de FENÔMENO, prescindindo de como se deva determinar mais precisamente o que se mostra. Antes de se fixar a concepção preliminar de fenomenologia, deve-se definir o significado de logos, a fim de se esclarecer em que sentido a fenomenologia pode ser “ciência dos” fenômenos. STMSC: §7
O que já não possui a forma de realização de um puro deixar e fazer ver, mas que, para demonstrar, recorre sempre a uma outra coisa e assim deixa e faz ver cada vez algo como algo, assume, junto com esta estrutura sintética, a possibilidade de en-cobrir. A “verdade do juízo”, porém, é somente a contrapartida deste encobrir, isto é, um FENÔMENO de verdade derivado em muitos aspectos. STMSC: §7
Apresentando-se concretamente os resultados da interpretação de “FENÔMENO” e “logos”, salta aos olhos a íntima conexão que os liga. Pode-se formular em grego a expressão fenomenologia com as palavras: legein ta phainomena; legein, porém, significa apophainesthai. Fenomenologia diz, então: apophainesthai ta phainomena – deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo. É este o sentido formal da pesquisa que traz o nome de fenomenologia. Com isso, porém, não se faz outra coisa do que exprimir a máxima formulada anteriormente – “para as coisas elas mesmas!” STMSC: §7
O termo fenomenologia tem, portanto, um sentido diferente das designações como teologia, etc. Estas evocam os objetos de suas respectivas ciências, em seu conteúdo quididativo. O termo “fenomenologia” não evoca o objeto de suas pesquisas nem caracteriza o seu conteúdo quididativo. A palavra se refere exclusivamente ao modo como se demonstra e se trata o que nesta ciência deve ser tratado. Ciência “dos” fenômenos significa: apreender os objetos de tal maneira que se deve tratar de tudo que está em discussão, numa demonstração e procedimento diretos. O mesmo sentido possui a expressão, no fundo tautológica, de “fenomenologia descritiva”. Descrição não indica aqui um procedimento nos moldes, por exemplo, da morfologia botânica. A expressão tem novamente um sentido proibitivo: afastar toda determinação que não seja demonstrativa. O caráter da própria descrição, o sentido específico do logos, só poderá ser estabelecido a partir da “própria coisa” que deve ser descrita, ou seja, só poderá ser determinado cientificamente segundo o modo em que os fenômenos vêm ao encontro. Considerado formalmente, o significado do conceito formal e vulgar de FENÔMENO legitima a denominação de fenomenologia a toda demonstração de um ente tal como se mostra em sisi mesmo. STMSC: §7
A pergunta agora é como se deve desformalizar o conceito formal de FENÔMENO e transformá-lo em conceito fenomenológico, e como o conceito fenomenológico de FENÔMENO se distingue do conceito vulgar. O que será que a fenomenologia deve “deixar e fazer ver”? O que é que se deve chamar de “FENÔMENO” num sentido privilegiado? O que, em sua essência, é necessariamente tema de uma demonstração explícita? Justo o que não se mostra numa primeira aproximação e na maioria das vezes, mantendo-se velado frente ao que se mostra numa primeira aproximação e na maioria das vezes, mas que, ao mesmo tempo, pertence essencialmente ao que se mostra numa primeira aproximação e na maioria das vezes a ponto de constituir {CH: verdade de ser} o seu sentido e fundamento. STMSC: §7
No entanto, como se mostrou nas considerações precedentes, o que, num sentido extraordinário, se mantém velado ou volta novamente a encobrir-se ou ainda só se mostra “distorcido” não é este ou aquele ente, mas o ser dos entes. O ser pode-se encobrir tão profundamente que chega a ser esquecido, e a questão do ser e de seu sentido se ausentam. O que, portanto, num sentido privilegiado e em seu conteúdo mais próprio, exige tornar-se FENÔMENO é o que a fenomenologia tematicamente tomou em suas “garras” como objeto. STMSC: §7
A fenomenologia é a via de acesso e o modo de comprovação para se determinar o que deve constituir tema da ontologia. Ontologia só é possível como fenomenologia. O conceito fenomenológico de FENÔMENO propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificações e derivados. Pois, o mostrar-se não é um mostrar-se qualquer e, muito menos, uma manifestação. O ser dos entes nunca pode ser uma coisa “atrás” da qual esteja outra coisa “que não se manifesta”. STMSC: §7
“Atrás” dos fenômenos da fenomenologia não há absolutamente nada. Contudo, aquilo que deve tornar-se FENÔMENO pode velar-se. A fenomenologia é necessária justamente porque, numa primeira aproximação e na maioria das vezes, os fenômenos não estão dados. O conceito oposto de “FENÔMENO” é o conceito de encobrimento. STMSC: §7
Diferentes são os possíveis modos de encobrimento dos fenômenos. Um FENÔMENO pode manter-se encoberto por nunca ter sido descoberto. Dele, pois, não há nem conhecimento nem desconhecimento. Um FENÔMENO pode estar obstruído. Isto significa: antes tinha sido descoberto, mas, depois, voltou a encobrir-se. Este encobrimento pode ser total ou, como geralmente acontece, o que antes se descobriu ainda se mantém visível, embora como aparência. No entanto, há tanta aparência quanto “ser”. Este encobrimento na forma de “distorção” é o mais frequente e o mais perigoso, pois as possibilidades de engano e desorientação são particularmente severas e persistentes. As estruturas de ser e seus respectivos conceitos disponíveis, embora velados em sua consistência, reivindicam os seus direitos talvez dentro de um “sistema”. Mas, em razão do encadeamento construtivo num sistema, eles se apresentam como algo que é “claro” e não carece de justificações ulteriores, podendo, por isso, servir de ponto de partida para uma dedução contínua. STMSC: §7
Em sentido fenomenológico, FENÔMENO é somente o que constitui o ser, e ser é sempre ser de um ente. Por isso, ao se visar a uma liberação do ser, deve-se, preliminarmente, aduzir de modo devido o próprio ente. Este ente também deve mostrar-se no modo de acesso que genuinamente lhe pertence. E, deste modo, o conceito vulgar de FENÔMENO torna-se fenomenologicamente relevante. A tarefa preliminar de assegurar “fenomenologicamente” o acesso ao ente exemplar como ponto de partida da própria analítica já se acha sempre delineada a partir da própria meta. STMSC: §7
Sem dúvida, para o propósito da analítica, essa exemplificação histórica é também desviante. Uma das primeiras tarefas da analítica será, pois, mostrar que o princípio de um eu e sujeito, dados como ponto de partida, deturpa, de modo fundamental, o FENÔMENO da presença (Dasein). Toda ideia de “sujeito” – enquanto permanecer não esclarecida preliminarmente mediante uma determinação ontológica de seu fundamento – reforça, do ponto de vista ontológico, o ponto de partida do subjectum (hypokeimenon), por mais que, do ponto de vista ôntico, se possa vivamente polemizar contra a “substância da alma” ou a “coisificação da consciência”. Para que se possa perguntar o que deve ser entendido positivamente ao se falar de um ser não coisificado do sujeito, da alma, da consciência, do espírito, da pessoa, é preciso já se ter verificado a proveniência ontológica da coisificação. Todos estes termos designam regiões de fenômenos, bem determinadas e passíveis de “ulterior formação”, embora o seu uso ocorra sempre junto a uma curiosa indiferença frente à necessidade de se questionar o ser dos entes assim denominados. Não é, portanto, por capricho terminológico que evitamos o uso desses termos bem como das expressões “vida” e “homem” para designar o ente que nós mesmos somos. STMSC: §10
Por mais fácil que seja a delimitação formal da problemática ontológica face às pesquisas ônticas, a execução e, sobretudo, o ponto de partida de uma analítica existencial da presença (Dasein) não está desprovida de dificuldades. Em sua tarefa, inclui-se uma exigência, que de há muito inquieta a {CH: absolutamente! Pois o conceito de mundo não foi de modo algum concebido} filosofia, embora as tentativas de satisfazê-la sempre tenham fracassado: a saber, elaborar a ideia de um “conceito natural de mundo”. A abundância de conhecimentos disponíveis das culturas e formas de presença (Dasein) mais diversas e mais distantes parece favorecer o desenvolvimento frutífero dessa tarefa. No entanto, isto é apenas uma aparência. No fundo, tal acúmulo de conhecimento leva apenas a se desconhecer o problema propriamente dito. A comparação sincrética de tudo com tudo e a redução de tudo a tipos ainda não garante de per si um conhecimento autêntico da essência. A possibilidade de se dominar a multiplicidade variada dos fenômenos num quadro de conjunto não assegura uma compreensão real do que é assim ordenado. O princípio autêntico de ordenamento tem seu próprio conteúdo que nunca poderá ser encontrado pelo ordenamento, já que este já o pressupõe. Assim, para o ordenamento das concepções de mundo, faz-se necessária uma ideia explícita de mundo em geral. E, no caso de “mundo” já ser em sisi mesmo um constitutivo da presença (Dasein), a elaboração conceitual do FENÔMENO do mundo requer uma visão penetrante das estruturas básicas da presença (Dasein). STMSC: §11
A expressão composta “ser-no-mundo”, já na sua cunhagem, mostra que pretende referir-se a um FENÔMENO de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu todo. A impossibilidade de dissolvê-la em elementos, que podem ser posteriormente compostos, não exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compõem esta constituição. O achado fenomenal indicado nesta expressão comporta, de fato, uma tríplice visualização. Ao se examinar esse achado, mantendo-se previamente a totalidade do FENÔMENO, pode-se ressaltar o seguinte: STMSC: §12
3. O ser-em como tal; deve-se expor a constituição ontológica do próprio em (cf cap. 5 desta seção). Todo destaque de um destes momentos constitutivos significa destacar também os demais, isto é, significa ver, cada vez, todo o FENÔMENO. O ser-no-mundo é, sem dúvida, uma constituição necessária e a priori da presença (Dasein), mas de forma nenhuma suficiente para determinar por completo o seu ser. Antes das análises temáticas particulares destes três fenômenos, devemos buscar uma caracterização orientadora do momento constitutivo por último mencionado. STMSC: §12
Mas será que a determinação desta constituição de ser, fornecida até aqui, não se move exclusivamente em proposições negativas? Só ouvimos o que não é este ser-em, pretensamente fundamental. De fato. Mas esta predominância de caracteres negativos não é mero acaso. Ao contrário, indica a peculiaridade do FENÔMENO e, portanto, num sentido autêntico e correspondente ao próprio FENÔMENO, algo de positivo. A demonstração fenomenológica do ser-no-mundo tem o caráter de uma recusa de encobrimentos e distorções porque este FENÔMENO já é sempre, de certo modo, “visto” em toda presença (Dasein). E isto ocorre porque ele participa da constituição fundamental da presença (Dasein) na medida em que, com o seu ser, já se abriu à sua própria compreensão de ser. O FENÔMENO é, porém, na maioria das vezes, profundamente mal compreendido ou insuficientemente interpretado {CH: de fato! Ele não é absolutamente na medida do ser}, do ponto de vista ontológico. Todavia, a esse “ver de certo modo e na maioria das vezes compreender mal” também se funda na constituição de ser da presença (Dasein) ela mesma, segundo a qual a presença (Dasein), numa primeira aproximação, compreende ontologicamente a si mesma (e, portanto, também o seu ser-no-mundo) a partir dos entes e de seu ser, que ela mesma não é, mas que lhe vêm ao encontro {CH: uma significação retroativa} “dentro” de seu mundo. STMSC: §12
Não apenas na epistemologia, mas na maior parte das vezes, toma-se o conhecimento do mundo exclusivamente como exemplo do FENÔMENO de ser-em, pois se entende a atitude prática como “não teórica” e “ateórica”. Porque este primado do conhecimento desorienta a compreensão do modo de ser mais próprio do conhecimento, deve-se ressaltar, de maneira ainda mais precisa, o ser-no-mundo, no tocante ao conhecimento do mundo, e torná-lo visível como uma “modalidade” existencial do ser-em. STMSC: §12
Se ser-no-mundo é uma constituição fundamental da presença (Dasein) em que ela se move não apenas em geral mas, sobretudo, no modo da cotidianidade, então a presença (Dasein) já deve ter sido sempre experimentada onticamente. Permanecer totalmente velada seria incompreensível, principalmente porque a presença (Dasein) dispõe de uma compreensão ontológica de si mesma, por mais indeterminada que seja. Mas logo que “o FENÔMENO do conhecimento do mundo” se apreende em sisi mesmo, sempre recai numa interpretação formal e “externa”. Um indicador disso é a suposição, hoje tão corrente, do conhecimento como uma “relação de sujeito e objeto”, que se mostra tão “verdadeira” quanto vazia. Sujeito e objeto não coincidem, porém a com presença (Dasein) e mundo {CH: na verdade não! Tão pouco que, já na composição, o que recusa é fatal}. STMSC: §13
Partindo dessa suposição, não se vê o que já está implicitamente dito na tematização mais provisória do FENÔMENO do conhecimento, a saber, que conhecer é um modo de ser da presença (Dasein) enquanto ser-no-mundo, isto é, que o conhecer tem seu fundamento ôntico nesta constituição de ser. Contra esta indicação do achado fenomenal de que conhecer é um modo ontológico do ser-no-mundo, poder-se-ia objetar que, com uma tal interpretação do conhecimento, aniquila-se o problema do conhecimento; pois o que ainda haveria de se questionar, quando se pressupõe que o conhecimento já está em seu mundo e que, na verdade, ele só poderia ser alcançado, transcendendo o sujeito? Mesmo não se considerando que, na questão assim formulada, reaparece, mais uma vez, o “ponto de vista” construtivista, não demonstrado nos fenômenos, há de se perguntar que instância decide se e em qual sentido deve haver um problema do conhecimento, a não ser o próprio FENÔMENO do conhecimento e o modo de ser de quem conhece. STMSC: §13
Em primeiro lugar, deve-se tornar visível o ser-no-mundo no tocante ao momento estrutural “mundo”. O cumprimento desta tarefa parece tão fácil e trivial que sempre se acredita poder-se dela prescindir. O que poderia significar descrever o “mundo” como FENÔMENO? Seria deixar e fazer ver o que se mostra no “ente” dentro do mundo. O primeiro passo consistiria, então, em elencar tudo o que se dá no mundo: casas, árvores, homens, montes, estrelas. Podemos retratar a “configuração” desses entes e contar o que neles e com eles ocorre. Mas é evidente que tudo isso permanecerá um “ofício” pré-fenomenológico que, do ponto de vista fenomenológico, não pode ser relevante. A descrição fica presa aos entes. É ôntica. O que, porém, se procura é o ser. Em sentido fenomenológico, determinou-se a estrutura formal de “FENÔMENO” como o que se mostra enquanto ser e estrutura de ser. STMSC: §14
Mas será que, investigando desse modo, questionamos ontologicamente o “mundo”? A problemática assim caracterizada é, sem dúvida, ontológica. Entretanto, mesmo que se lograsse a mais pura explicação do ser da natureza, através das afirmações fundamentais da física matemática, esta ontologia nunca alcançaria o FENÔMENO “mundo”. Em si mesma, a natureza é um ente que vem ao encontro dentro do mundo e que pode ser descoberto, seguindo-se caminhos e graus diferentes. STMSC: §14
Nem um retrato ôntico dos entes intramundanos e nem a interpretação ontológica do ser desses entes alcançariam, como tais, o FENÔMENO do “mundo “. Em ambas as vias de acesso para o ser “objetivo” já se “pressupõe”, e de muitas maneiras, o “mundo”. STMSC: §14
Não será então que, em última instância, se poderia dizer “mundo” simplesmente como determinação desses entes? Na verdade, chamamos esses entes de seres intramundanos. Será o “mundo” um caráter do ser da presença (Dasein)? Toda presença (Dasein) não terá sempre seu mundo? Mas com isso “mundo” não seria algo “subjetivo”? Como, então, seria possível um mundo “comum” “em” que nós, sem dúvida, somos e estamos? E quando se coloca a questão do “mundo”, que mundo está subentendido? Nem este e nem aquele, e sim a mundanidade do mundo em geral. Através de que caminho deparamo-nos com tal FENÔMENO? STMSC: §14
“Mundanidade” é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo de ser-no-mundo. Este, nós o conhecemos como uma determinação existencial da presença (Dasein). Assim, a mundanidade já é em si mesma um existencial. Quando investigamos ontologicamente o “mundo”, não abandonamos, de forma nenhuma, o campo temático da analítica da presença (Dasein). Do ponto de vista ontológico, “mundo” não é determinação de um ente que a presença (Dasein) em sua essência não é. “Mundo” é um caráter da própria presença (Dasein). Isto não exclui que o caminho de investigação do FENÔMENO “mundo” deva seguir os entes intramundanos e seu ser. A tarefa de “descrição” fenomenológica do mundo é tão pouco clara que já a sua determinação suficiente exige esclarecimentos ontológicos essenciais. STMSC: §14
Um passar de olhos pela ontologia tradicional mostrará que, junto com a ausência da constituição da presença (Dasein) como ser-no-mundo, também se salta por cima do FENÔMENO da mundanidade. Em seu lugar, tenta-se interpretar o mundo a partir do ser de um ente intramundano e, ademais, de um ente intramundano não descoberto como tal, ou seja, a partir da natureza {CH: “natureza” aqui entendida kantianamente, no sentido da física moderna}. Entendida em sentido ontológico-categorial, a natureza é um caso limite do ser de um possível ente intramundano. A presença (Dasein) só pode descobrir o ente como natureza num determinado modo de seu ser-no-mundo. Esse conhecimento tem o caráter de uma determinada desmundanização do mundo. Enquanto conjunto categorial das estruturas de ser de um ente determinado, que vem ao encontro dentro do mundo, a “natureza” nunca poderá tornar {CH: mas o contrário!} compreensível a mundanidade. Do mesmo modo, o FENÔMENO “natureza”, no sentido do conceito romântico de natureza, só poderá ser apreendido ontologicamente a partir do conceito de mundo, ou seja, através da analítica da presença (Dasein). STMSC: §14
No que diz respeito ao problema de uma análise ontológica da mundanidade do mundo, a ontologia tradicional, mesmo quando dele se dá conta, movimenta-se num beco sem saída. Por outro lado, uma interpretação da mundanidade da presença (Dasein), das possibilidades e modos de sua mundanização, haverá de mostrar por que, em seu modo de conhecer o mundo, a presença (Dasein) salta por cima do FENÔMENO da mundanidade, tanto do ponto de vista ôntico como ontológico. Saltar por cima já indica também a necessidade de precauções especiais para se obter um ponto de partida fenomenal conveniente, que não salte por cima do FENÔMENO da mundanidade. STMSC: §14
O mundo mais próximo da presença (Dasein) cotidiana é o mundo circundante. Para se chegar à ideia de mundanidade, a investigação seguirá o caminho que parte desse caráter existencial do ser-no-mundo mediano. Passando por uma interpretação ontológica dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo circundante, poderemos buscar a mundanidade do mundo circundante (circumundanidade). A expressão mundo circundante aponta no “circundante” para uma espacialidade. O “circundar”, constitutivo do mundo circundante, não possui, de maneira nenhuma, um sentido primordialmente “espacial”. O caráter espacial que pertence indiscutivelmente ao mundo circundante há de ser esclarecido, ao contrário, a partir da estrutura da mundanidade. Somente a partir daí poder-se-á ver o FENÔMENO da espacialidade da presença (Dasein), esboçado no §12. Ora, a ontologia tentou justamente interpretar o ser do “mundo” como res extensa, partindo da espacialidade. É em Descartes que se mostra a tendência mais extremada para uma ontologia do “mundo” desta espécie, ontologia edificada em contraposição à res cogitans que, porém, não coincide, nem do ponto de vista ôntico, nem do ontológico, com a presença (Dasein). Pode-se esclarecer a análise da mundanidade aqui tentada, distinguindo-a desta tendência ontológica cartesiana. É o que se haverá de cumprir em três etapas: A. Análise da mundanidade circundante e da mundanidade em geral. B. Esclarecimento da análise da mundanidade por contraposição à ontologia do “mundo” de Descartes. C. O circundante do mundo circundante e a “espacialidade” da presença (Dasein). STMSC: §14
Embora em toda abertura e explicação de ser o tema seja propriamente o ser, o ente sempre acompanha previamente a tematização. No âmbito da presente análise, o ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante. Aqui, o ente não é objeto de um conhecimento teórico do “mundo” e sim o que é usado, produzido, etc. O ente que assim vem ao encontro é visualizado pré-tematicamente por um “conhecimento” que, sendo fenomenológico, aspira primordialmente ao ser e, partindo dessa tematização de ser, tematiza igualmente o ente em causa. Essa interpretação fenomenológica não é, pois, um conhecimento de propriedades entitativas dos entes, mas uma determinação da estrutura de seu ser. Enquanto investigação do ser, ela realiza, porém, de maneira explícita e autônoma, a compreensão de ser que, desde sempre, pertence à presença (Dasein) e se “aviva” em todo modo de lidar com o ente. O ente fenomenologicamente pré-temático, ou seja, o usado, o que se acha em produção, torna-se acessível ao transferirmo-nos para tais ocupações. A rigor, seria errôneo falar de transferência, pois não precisamos nos transferir para esse modo de ser e de lidar da ocupação. A presença (Dasein) cotidiana já está sempre nesse modo quando, por exemplo, ao abrir a porta, faço uso do trinco. Para se conquistar um acesso fenomenológico ao ente que assim vem ao encontro, é preciso, contudo, afastar as tendências de interpretação afluentes e concorrentes que encobrem o FENÔMENO dessa “ocupação”. Pois o que com isso se encobre é, sobretudo, o ente tal como ele, a partir de si mesmo, vem ao encontro na ocupação e para ela. Esses desvios capciosos aparecem quando, agora numa investigação, perguntamos: Que ente há de ser pré-tematizado e estabelecido como base pré-fenomenal? STMSC: §15
Rigorosamente, um instrumento nunca “é”. O instrumento só pode ser o que e num todo instrumental que sempre pertence a seu ser. Em sua essência, todo instrumento é “algo para…” Os diversos modos de “ser para” (Um-zu) como serventia, contribuição, aplicabilidade, manuseio constituem uma totalidade instrumental. Na estrutura “ser para” (Um-zu), acha-se uma referência de algo para algo. Apenas nas análises seguintes é que o FENÔMENO indicado por esse termo se fará visível em sua gênese ontológica. Provisoriamente, trata-se somente de obter uma visão da multiplicidade dos fenômenos de referência. O instrumento sempre corresponde a seu caráter instrumental a partir da pertinência a outros instrumentos: instrumento para escrever, pena, tinta, papel, suporte, mesa, lâmpada, móvel, janela, portas, quarto. Essas “coisas” nunca se mostram primeiro por si, para então encherem um quarto como um conjunto de coisas reais. Embora não apreendido tematicamente, o que primeiro vem ao encontro é o quarto, não como o “entre quatro paredes”, no sentido de espaço geométrico, mas como instrumento de habitação. É a partir dele que se mostra a “instalação” e, nela, os diversos instrumentos “singulares”. Antes deles, sempre já se descobriu uma totalidade instrumental. STMSC: §15
Entretanto, por mais que, no desenvolvimento da interpretação ontológica, a manualidade se resguarde como modo de ser dos entes intramundanos primeiro descobertos e por mais que a sua originariedade frente ao ser simplesmente dado possa se deixar e fazer comprovar, não será que com o que se explicou até agora conquistamos um mínimo para o entendimento ontológico do FENÔMENO do mundo? Na interpretação desse ente intramundano, o mundo já é sempre “pressuposto”. O “mundo”, porém, não resulta da reunião desses entes como uma soma. Será, pois, que do ser desse ente se descortina um caminho para a demonstração do FENÔMENO do mundo? STMSC: §15
O mundo ele mesmo não é um ente intramundano, embora o determine de tal modo que, ao ser descoberto e encontrado em seu ser, o ente intramundano só possa mostrar-se porque mundo “se dá”. Como, porém, “dá-se” mundo? Se a presença (Dasein) se constitui onticamente pelo ser-no-mundo e se também pertence essencialmente ao seu ser uma compreensão do ser de si mesmo, por mais indeterminada que seja, não haveria, pois, uma compreensão de mundo, uma compreensão pré-ontológica, que pudesse dispensar uma visão ontológica explícita e assim o fizesse? Será que para o ser-no-mundo que se acha na ocupação do ente intramundano, ou seja, a sua intramundanidade, não se mostra algo assim como mundo? Não será que esse FENÔMENO sempre se apresenta numa visão pré-fenomenológica? Não será que sempre se dá numa tal visão, mesmo sem exigir tematicamente uma interpretação ontológica? A própria presença (Dasein), no âmbito de seu empenho ocupacional com o instrumento manual, não possui uma possibilidade ontológica em que, de certo modo, a mundanidade se lhe evidencia junto com o ente intramundano da ocupação? STMSC: §16
Caso essas possibilidades ontológicas da presença (Dasein) se possam apontar no modo de lidar da ocupação, abre-se então um caminho para a investigação e aproximação do FENÔMENO assim evidenciado e, ao mesmo tempo, pode-se tentar “colocá-lo”, por assim dizer, e interrogá-lo no mostrar-se de suas estruturas. STMSC: §16
O que, no entanto, significa para o esclarecimento do FENÔMENO do mundo essa visualização do encontro modificado com o manual em que se desvela o seu modo de ser simplesmente dado? Mesmo com a análise dessa modificação ainda estamos no ser dos entes intramundanos e ainda não nos avizinhamos do FENÔMENO do mundo. Embora ainda não tenha sido apreendido, dispomos agora da possibilidade de ver o FENÔMENO. STMSC: §16
As expressões privativas como não-surpresa, não importuno, não impertinente indicam um caráter fenomenal positivo do ser que está imediatamente à mão. Esse “não” indica o caráter de manter-se em si do manual. É o que temos em mente com a expressão ser-em-si e que, de maneira característica, atribuímos primeiramente ao ser simplesmente dado, passível de constatação temática. Uma orientação exclusiva ou primordial pelo que é simplesmente dado não pode esclarecer ontologicamente o “em-si”. Caso se recorra com razão fenomenal e ênfase ôntica ao em-si do ser, então faz-se necessária uma interpretação. Esse recurso ôntico, no entanto, não preenche a exigência pretensamente dada de um enunciado ontológico. A análise empreendida até agora mostra claramente que só se pode apreender ontologicamente o ser-em-si dos entes intramundanos com base no FENÔMENO do mundo. STMSC: §16
Para responder a essas questões que visam a uma elaboração do FENÔMENO e problema da mundanidade, toma-se necessária uma análise mais concreta das estruturas em que as questões colocadas tecem o nexo de seu questionamento. STMSC: §16
Na interpretação provisória da estrutura de ser do manual (dos “instrumentos”), tornou-se visível o FENÔMENO da referência, se bem que de maneira tão esquemática, que é preciso acentuar a necessidade de se descobrir o FENÔMENO apenas indicado em sua proveniência ontológica. Tornou-se também claro que referência e totalidade referencial são, em algum sentido, constitutivas da própria mundanidade. Até o presente momento, vimos o mundo evidenciar-se somente para e em determinados modos da ocupação no mundo circundante do que está à mão, e este com sua manualidade. Quanto mais aprofundarmos, portanto, a compreensão de ser deste ente intramundano, tanto mais ampla e segura tornar-se-á a base fenomenal para a liberação do FENÔMENO do mundo. STMSC: §17
Partiremos mais uma vez do manual, só que agora com o propósito de apreender mais precisamente o FENÔMENO da própria referência. Para este fim, tentaremos uma análise ontológica do instrumento em que se podem constatar vários sentidos de “referência”. Tal “instrumento” nós o encontramos nos sinais. Com esta palavra designam-se muitas coisas: não apenas diversas espécies de sinal, mas o próprio ser sinal de… pode ser formalizado e transformado numa espécie de relação universal. Deste modo, a própria estrutura de sinal apresenta um fio ontológico capaz de orientar uma “caracterização” de todo e qualquer ente. STMSC: §17
Se a presente análise se limita a interpretar a diferença entre sinal e o FENÔMENO de referência, então, dentro dessa limitação, não se poderá investigar adequadamente a multiplicidade de todos os sinais possíveis. Dentre os sinais, existem anúncios, prenúncios, vestígios, marcas, distintivos cuja ação de mostrar difere em cada caso, mesmo abstraindo-se daquilo que cada vez serve como sinal. Dentre esses “sinais”, devem-se distinguir-se rastro, resto, monumento, documento, testemunho, símbolo, expressão, manifestação, significado. Tendo em vista seu caráter formal de relação, esses fenômenos se deixam facilmente formalizar; hoje, temos a tendência de submeter todos os entes a uma “interpretação” sob o fio condutor de “relação”. Trata-se de uma interpretação que sempre “dá certo” porque, no fundo, não diz nada como, por exemplo, o esquema de forma e conteúdo, usado com tanta facilidade. STMSC: §17
Poder-se-ia ficar tentado a ilustrar o papel primordial do sinal na ocupação cotidiana para a própria compreensão do mundo com o uso abundante de “sinais”, característico da presença (Dasein) primitiva, ou seja, com o fetiche e a magia. Decerto, a criação de sinais à base desse tipo de uso de sinais não se faz segundo uma intenção teórica nem através de uma especulação teórica. O uso de sinais permanece inteiramente no âmbito de um ser-no-mundo “imediato”. Num exame mais minucioso, porém, torna-se claro que a interpretação de fetiche e magia feita pela ideia de sinal não é, de modo algum, suficiente para apreender o modo de “estar à mão” dos entes que vêm ao encontro no mundo primitivo. No que concerne ao FENÔMENO do sinal, poder-se-ia fazer a seguinte interpretação: para o homem primitivo, o sinal e o assinalado coincidem. O próprio sinal pode representar o assinalado não somente no sentido de substituí-lo, mas, sobretudo, no sentido de que o próprio sinal é sempre o assinalado. Essa estranha coincidência de sinal e assinalado não reside, contudo, em a coisa sinal já ter feito a experiência de uma certa “objetivação”, sendo experimentada como pura coisa e, desse modo, transferida com o assinalado para o mesmo âmbito ontológico do simplesmente dado. A “coincidência” não é identificação do que antes estava isolado mas um sinal que ainda-não-está-livre do designado. Esse uso de sinal desaparece inteiramente em ser para o assinalado, a ponto de ainda não se poder separar um sinal como tal. A coincidência não se funda numa primeira objetivação mas na total falta de objetivação. Isso significa, no entanto, que os sinais não foram descobertos como instrumento e que, por fim, o “manual” intramundano ainda não possui de forma alguma o modo de ser do instrumento. Presumivelmente, esse diapasão ontológico (manualidade e instrumento), bem como a ontologia da coisalidade, não podem contribuir em nada para uma interpretação do mundo primitivo. Se, no entanto, uma compreensão de ser é constitutiva da presença (Dasein) primitiva e do mundo primitivo em geral, então torna-se ainda mais urgente a elaboração da ideia “formal” de mundanidade, ou seja, de um FENÔMENO que é de tal maneira passível de modificações que todos os enunciados ontológicos, seja no contexto fenomenal prefixado do que ainda não é isso ou do que já não é mais isso, recebam um sentido fenomenal positivo a partir do que não é. STMSC: §17
Conjuntura é o ser dos entes intramundanos em que cada um deles já, desde sempre, liberou-se. Junto com ele, enquanto ente, sempre se dá uma conjuntura. Dar uma conjuntura constitui a determinação ontológica do ser deste ente e não uma afirmação ôntica que sobre ele se possa fazer. Aquilo junto a que possui uma conjuntura é o para quê (Wozu) da serventia, o em quê (Wofür) da possibilidade de emprego. Com o para quê (Wozu) da serventia pode-se dar, novamente, uma conjuntura própria; por exemplo, junto com esse manual que chamamos, por isso mesmo, de martelo, age a conjuntura de pregar, junto com o pregar dá-se a proteção contra as intempéries; esta “é” em virtude do abrigo da presença (Dasein), ou seja, está em virtude de uma possibilidade de seu ser. A partir da totalidade conjuntural, sempre se delineia que conjuntura se dá com um manual. A totalidade conjuntural que constitui, por exemplo, o manual em sua manualidade numa oficina é “anterior” a cada instrumento singular, da mesma forma que a totalidade conjuntural de uma estância com todos os aparelhos e apetrechos. A própria totalidade conjuntural remonta, em última instância, a um para quê (Wozu) onde já não se dá nenhuma conjuntura, que em sisi mesmo já não é um ente segundo o modo de ser do manual dentro de um mundo, mas um ente cujo ser se determina como ser-no-mundo onde a própria mundanidade pertence à sua constituição de ser. Esse para quê (Wozu) primordial não é um ser para isso (Dazu), no sentido de um possível estar junto numa conjuntura. O “para quê” (Wozu) primordial é um ser em virtude de. “Em virtude de”, porém, sempre diz respeito ao ser da presença (Dasein), uma vez que, sendo, está essencialmente em jogo seu próprio ser. Nesse primeiro momento, não se deve aprofundar o contexto indicado que conduz da estrutura da conjuntura para o ser da presença (Dasein) enquanto função única e própria. Antes disso é preciso esclarecer, de modo mais amplo, o “deixar e fazer em conjunto”, a fim de apreendermos a determinação do FENÔMENO da mundanidade e, assim, podermos colocar seus respectivos problemas. STMSC: §18
O deixar e fazer previamente junto… com… funda-se num compreender de algo como deixar e fazer em conjunto, numa compreensão de ser e estar junto e de estar com de uma conjuntura. Isso e o que lhe subjaz mais remotamente como o ser para isso, em cuja conjuntura se dá o em virtude de para onde retorna, em última instância, todo para quê (Wozu), tudo isso já deve estar previamente aberto numa compreensibilidade. Mas em que a presença (Dasein) se compreende pré-ontologicamente como ser-no-mundo? Ao compreender o contexto de remissões supramencionado, a presença (Dasein) já se referiu a um ser para, a partir de um poder ser explícito ou implícito, próprio ou impróprio, em virtude do qual ela mesma é. Assim, delineia-se um ser para isso, como possível estar junto de um deixar e fazer em conjunto, o qual estruturalmente deixa e faz entrar junto com alguma coisa. A partir de um em virtude de, a presença (Dasein) sempre se refere ao estar com de uma conjuntura, ou seja, já permite sempre, em sendo, que o ente venha ao encontro como manual. A perspectiva dentro da qual se deixa e se faz o encontro prévio dos entes constitui o contexto em que a presença (Dasein) se compreende previamente segundo o modo de referência. O FENÔMENO do mundo é o em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um deixar e fazer encontrar um ente no modo de ser da conjuntura. A estrutura da perspectiva em que a presença (Dasein) se refere constitui a mundanidade do mundo. STMSC: §18
Só gradativamente a investigação poderá assegurar-se do conceito de mundanidade e das estruturas incluídas nesse FENÔMENO. Porque a interpretação de mundo parte, inicialmente, de um ente intramundano e logo perde de vista o FENÔMENO do mundo em geral, tentaremos esclarecer ontologicamente esse ponto de partida em sua realização, talvez, mais extremada. Não nos contentaremos apenas com uma exposição sumária das coordenadas fundamentais da ontologia do “mundo” de Descartes. Questionaremos as suas pressuposições e procuraremos caracterizá-las à luz do que se obteve até aqui. Esta discussão há de possibilitar o reconhecimento de que as interpretações do mundo posteriores e, sobretudo, as anteriores a Descartes movem-se em “fundamentos” ontológicos não discutidos em princípio. STMSC: §18
Impõe-se uma questão crítica: Será que esta ontologia de “mundo” investiga o FENÔMENO do mundo? Se não o faz, será que ao menos determina um ente intramundano a ponto de tornar visível a sua determinação mundana? Ambas as perguntas devem ser respondidas negativamente. O ente que, em princípio, Descartes tenta apreender de maneira ontológica com a extensio é um ente que só pode ser descoberto mediante a passagem por um ente intramundano imediatamente à mão. Contudo, por mais que isso seja correto e por mais equivocada que seja a própria caracterização ontológica deste determinado ente intramundano (natureza) – tanto a ideia de substancialidade quanto o sentido de existit e ad existendum assumido em sua definição – subsiste a possibilidade de se colocar e desenvolver de algum modo o problema ontológico do mundo, através de uma ontologia fundada na distinção radical entre Deus, eu e “mundo”. Se, porém, mesmo essa possibilidade não se der, então deve-se apresentar uma comprovação explícita de que Descartes não apenas fornece uma determinação ontológica falha, mas que a sua interpretação e seus fundamentos levaram a que se saltasse por cima do FENÔMENO do mundo, bem como do ser dos entes intramundanos que estão imediatamente à mão. STMSC: §21
Na exposição do problema da mundanidade (§14), indicou-se a importância de se obter uma via de acesso adequada ao FENÔMENO. Na discussão crítica do ponto de partida cartesiano teremos, pois, de perguntar: Que modo de ser da presença (Dasein) é fixado como a via de acesso adequada ao que, enquanto extensio, Descartes identifica com o ser do “mundo”? A única via de acesso autêntica para esse ente é o conhecer, a intellectio, no sentido do conhecimento físico-matemático. O conhecimento matemático vale como o modo de apreensão dos entes, capaz de propiciar sempre uma posse mais segura do ser dos entes nele apreendidos. Em sentido próprio, só é aquilo que tem o modo de ser<ser capaz de satisfazer o ser acessível no conhecimento matemático. Este ente é aquilo que sempre é o que é; por isso, ao experimentar o modo de ser do mundo, o que constitui o seu ser propriamente dito é aquilo que pode mostrar o caráter de permanência constante, como remanens capax mutationum. Propriamente só é o que sempre permanece. E é isso o que a matemática conhece. O que no ente se torna acessível pela matemática constitui, portanto, o seu ser. Assim, de uma determinada ideia de ser, inserida no conceito de substancialidade e a partir da ideia de um conhecimento relativo ao ente assim conhecido, dita-se, por assim dizer, ao “mundo” o seu ser. Descartes não retira o modo de ser dos entes intramundanos deles mesmos. Com base numa ideia de ser, velada em sua origem e não demonstrada em sua legitimidade (ser = constância do ser simplesmente dado), ele prescreve ao mundo o seu ser “próprio”. Não é, portanto, principalmente o apoiar-se numa ciência particular e, por acaso, especialmente estimada, a matemática, o que determina {CH: mas direcionamento pelo matemático como tal, mathema e ón} a ontologia do mundo, mas uma orientação fundamentalmente ontológica pelo ser enquanto constância do ser simplesmente dado, cuja apreensão é lograda, de modo excepcional, pelo conhecimento matemático. Descartes cumpre, assim, de maneira filosoficamente explícita, a virada das influências da ontologia tradicional sobre a física matemática moderna e os seus fundamentos transcendentais. STMSC: §21
Será que com essas discussões críticas não se estará exigindo de Descartes uma tarefa – a qual se “comprova” não ter sido por ele solucionada – que se encontra totalmente fora de seu horizonte? Como Descartes poderia identificar com o mundo um determinado ente intramundano e seu ser, se desconhece inteiramente o FENÔMENO do mundo e, com isso, também qualquer intramundanidade? STMSC: §21
No âmbito de uma discussão de princípio não se deve ficar preso apenas a teses apreendidas doxograficamente. A discussão deve orientar-se pela tendência real da problemática, mesmo que esta não ultrapasse uma compreensão vulgar. Resulta claro de suas Meditações (sobretudo da I e VI) que Descartes não somente quis colocar o problema do “eu e mundo”, mas que pretendeu dar-lhe uma solução radical. As discussões anteriores visaram mostrar que a orientação fundamental pela tradição, desprovida ontologicamente de qualquer crítica positiva, impossibilitou que ele liberasse uma problemática ontológica originária da presença (Dasein). Essa orientação turvou-lhe a visão do FENÔMENO do mundo, forçando a ontologia do “mundo” a entrar na ontologia de um ente intramundano determinado. STMSC: §21
Mas será que neste caminho, que faz abstração do problema específico do mundo, ainda se poderá alcançar ontologicamente o ser do que nos vem imediatamente ao encontro dentro do mundo? Não será que com esta determinação material da coisa se estabelece implicitamente como ponto de partida um ser – a constância do ser simplesmente dado das coisas – que não experimenta nenhuma complementação ontológica através do aparelhamento posterior dos entes com predicados de valor, em que esses predicados permanecem apenas determinações ônticas de um ente que possui o modo de ser de coisa? O acréscimo de predicados de valor não é capaz de propiciar em nada uma nova perspectiva sobre o ser dos bens, mas apenas pressupõe para estes o modo de ser de puras coisas simplesmente dadas. Valores são determinações simplesmente dadas de uma coisa. Em última instância, os valores têm sua origem ontológica unicamente no ponto de partida prévio da realidade das coisas como nível fundamental. A experiência pré-fenomenológica, no entanto, já mostra nos entes entendidos como coisa algo que não pode ser inteiramente compreendido por meio desse caráter. O ser coisa necessita, pois, de uma complementação. Do ponto de vista ontológico, o que significa o ser dos valores, ou seja, “a sua validade”, que Lotze compreendia como um modus de “afirmação”? O que significa ontologicamente esta “aderência” dos valores às coisas? Enquanto estas determinações não forem esclarecidas, a reconstrução das coisas de uso a partir das coisas naturais continuará sendo um empreendimento ontológico duvidoso, para não se dizer nada da distorção de princípio que sofre a problemática. E essa reconstrução de uma coisa de uso inicialmente “descascada” não necessitaria sempre de uma visão prévia e positiva do FENÔMENO cuja totalidade deve ser reproduzida na reconstrução! Se, porém, a sua própria constituição de ser não tiver sido explicitada previamente de modo adequado, a reconstrução procederá sem qualquer projeto. Como a reconstrução e a “complementação” da ontologia tradicional do “mundo” chegam, em seu resultado, ao mesmo ente do qual partiu a análise acima referida da manualidade de instrumental e da totalidade conjuntural, surge a impressão de se ter esclarecido, de fato, o ser deste ente ou, ao menos, de tê-lo tomado como problema. Da mesma forma que Descartes não alcança o ser da substância com a extensio enquanto proprietas, assim também o recurso para as qualificações de “valor” não é capaz de visualizar o ser como mera manualidade e muito menos de elevá-lo à esfera de um tema ontológico. STMSC: §21
Para isso, deve-se mostrar (veja parte I, seção III): 1. Por que, no início da tradição filosófica, para nós decisiva, explicitamente desde Parmênides – saltou-se por cima do FENÔMENO do mundo? De onde provém o contínuo retorno desse saltar por cima? 2. Por que o ente intramundano se torna tema ontológico para esse FENÔMENO por cima do qual se está sempre saltando? 3. Por que este ente encontra-se, de início, na “natureza”? 4. Por que a complementação desta ontologia de mundo, experienciada como necessária, cumpre-se em se recorrendo ao FENÔMENO dos valores? Somente respondendo a essas questões poder-se-á alcançar uma compreensão positiva da problemática do mundo, demostrar a origem de seus desvios e comprovar o fundamento de direito para se recusar a ontologia tradicional do mundo. STMSC: §21
Deve-se, porém, considerar que o direcionamento próprio do distanciamento funda-se no ser-no-mundo. Assim, a direita e a esquerda não são coisas “subjetivas” das quais o sujeito possui uma sensação, mas sim direções do direcionamento, dentro de um mundo já sempre à mão. “Pelo puro sentimento da diferença de meus dois lados”, nunca poderia localizar-me corretamente no mundo. O sujeito com “puros sentimentos” desta diferença é um ponto de partida construtivo que desconsidera a verdadeira constituição do sujeito, a saber, que para poder orientar-se, a presença (Dasein) já está e já deve estar num mundo junto com esse “puro sentimento”. É o que aparece claramente no exemplo com que Kant tenta esclarecer o FENÔMENO da orientação. STMSC: §23
Dis-tanciamento e direcionamento enquanto características constitutivas do serem determinam a espacialidade da presença (Dasein) de estar no espaço intramundano, descoberto na circunvisão das ocupações. A explicação dada ate aqui sobre a espacialidade do manual intramundano e a espacialidade do ser-no-mundo propicia as pressuposições para se elaborar o FENÔMENO da espacialidade do mundo e se colocar o problema ontológico do espaço. STMSC: §23
O espaço assim aberto com a mundanidade do mundo ainda não tem nada a ver com o puro conjunto das três dimensões. Neste abrir-se mais imediato, o espaço enquanto puro continente de uma ordem métrica de posições e de uma determinação métrica de postos ainda permanece velado. Com o FENÔMENO de região, indicamos a perspectiva em que o espaço se descobre previamente na presença (Dasein). Entendemos região como o para onde a que possivelmente pertence o conjunto instrumental à mão, que poderá vir ao encontro segundo direções e distanciamentos, isto é, em um lugar. A pertinência determina-se a partir da significância constitutiva do mundo e articula, num possível para onde, o para aqui e o para lá. O para onde (Wohin) em geral acha-se prelineado pela totalidade referencial estabelecida num para onde da ocupação, em cujo seio a ação liberadora de deixar e fazer em conjunto instaura referências. Numa região sempre se estabelece uma conjuntura com o que vem ao encontro enquanto manual. A conjuntura regional do espaço pertence à totalidade conjuntural que constitui o ser do que está à mão no mundo circundante. Com base nesta totalidade conjuntural do espaço é que se pode encontrar e determinar a forma e a direção do que está à mão. De acordo com a possível transparência da circunvisão ocupacional, distancia-se e direciona-se o manual intramundano junto ao ser fático da presença (Dasein). STMSC: §24
De acordo com o seu ser-no-mundo, a presença (Dasein) já sempre dispõe previamente, embora de forma implícita, de um espaço já descoberto. Em contrapartida, o espaço em sisi mesmo fica, de início, encoberto no tocante às possibilidades puras de simples espacialidades de alguma coisa. Por mostrar-se essencialmente num mundo, o espaço não decide sobre a modalidade de seu ser. O espaço não precisa ter o modo de ser espacial do que se acha à mão nem o modo de algo simplesmente dado. O ser do espaço também não possui o modo de ser da presença (Dasein). Porque o próprio ser do espaço não pode ser concebido como res extensa, não se segue que deva ser determinado ontologicamente como “FENÔMENO” desta res – na verdade, ele não seria dela distinto – nem que o ser do espaço pudesse ser equiparado ao da res cogitans e compreendido como puramente “subjetivo”, mesmo que se desconsiderasse toda a problemática referente ao ser deste sujeito. STMSC: §24
A aporia ainda hoje presente nas interpretações do ser do espaço funda-se não tanto num conhecimento insuficiente dos conteúdos do próprio espaço, mas na falta de uma clareza de princípio a respeito das possibilidades de ser e de sua interpretação ontológica. O decisivo para uma compreensão do problema ontológico do espaço consiste em libertar a questão sobre o ser do espaço da estreiteza dos conceitos ontológicos disponíveis e em sua maioria não elaborados. E, além disso, em esclarecer pelas possibilidades do ser em geral a problemática do ser do espaço, no tocante ao próprio FENÔMENO e às diversas espacialidades fenomenais. STMSC: §24
No FENÔMENO do espaço, não se pode encontrar nem a única e nem a determinação ontológica primordial do ser dos entes intramundanos. Tampouco ele constitui o FENÔMENO do mundo. O espaço só pode ser concebido recorrendo-se ao mundo. Não se tem acesso ao espaço, de modo exclusivo ou primordial, através da desmundanização do mundo circundante. A espacialidade só pode ser descoberta a partir do mundo e isso de tal maneira que o próprio espaço se mostra também um constitutivo do mundo, de acordo com a espacialidade essencial da presença (Dasein), no que respeita à sua constituição fundamental de ser-no-mundo. STMSC: §24
Da mesma forma que a evidência ôntica do ser-em-si dos entes intramundanos desencaminha para a convicção de uma evidência ontológica do sentido deste ser, saltando por cima do FENÔMENO do mundo, assim também a evidência ôntica de que a presença (Dasein) é sempre minha desvia a problemática ontológica que lhe pertence. Inicialmente o quem da presença (Dasein) não é apenas um problema ontológico, mantendo-se também onticamente encoberto. STMSC: §25
Se o ser-com constitui existencialmente o ser-no-mundo, ele deve poder ser interpretado pelo FENÔMENO da cura, da mesma forma que o modo de lidar da circunvisão com o manual intramundano que, previamente, concebemos como ocupação. Pois esse FENÔMENO determina o ser da presença (Dasein) em geral (cf cap. VI desta seção). O caráter ontológico da ocupação não é próprio do ser-com, embora esse modo de ser seja um ser para os entes que vem ao encontro dentro do mundo como ocupação. O ente, com o qual a presença (Dasein) se relaciona enquanto ser-com, também não possui o modo de ser do instrumento à mão, pois ele mesmo é presença (Dasein). Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa.(177) STMSC: §26
Mas assim como o revelar-se e o fechar-se fundam-se nos modos de ser respectivos da convivência, de tal maneira que ele nada mais é do que isso mesmo, também a abertura explicitada na preocupação nasce meramente do ser-com primordial. Essa abertura temática e não teórica ou psicológica do outro evidencia-se facilmente para a problemática teórica do compreender da “vida psíquica do outro” enquanto o FENÔMENO que é primeiro visualizado. O que, fenomenalmente, apresenta “numa primeira aproximação” um modo de convivência compreensiva torna-se, ao mesmo tempo, aquilo que, assim considerado, possibilita e constitui, “em princípio” e originariamente, o ser para os outros. Esse FENÔMENO que, de maneira não muito feliz, denomina-se “ empatia” deve, por assim dizer, construir ontologicamente uma ponte entre o próprio sujeito isolado e o outro sujeito, de início, inteiramente fechado. STMSC: §26
Que “empatia” não constitua um FENÔMENO existencial originário e nem um conhecer, isso não significa, porém, que ela não coloque problemas a seu respeito. Sua hermenêutica específica terá de mostrar como as diversas possibilidades ontológicas da própria presença (Dasein) desviam e impedem a convivência e seu respectivo conhecimento, de tal modo que um seu “compreender” autêntico se vê sufocado, e a presença (Dasein) passa a recorrer a seus sucedâneos; ademais, terá também de mostrar a possibilidade que supõe a condição existencial positiva de uma compreensão adequada do outro. A análise mostrou: o ser-com é um constitutivo existencial do ser-no-mundo. A co-presença (Dasein) se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Porque a presença (Dasein) é, ela possui o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários “sujeitos”. O deparar-se com o contingente numérico de “sujeitos” só é possível quando os outros que vêm ao encontro na co-presença (Dasein) são tratados meramente como “números”. Tal contingente só se descobre por meio de um determinado ser-com e para os outros. Esse ser-com “desconsiderado” “conta” os outros sem “levá-los em conta” seriamente, sem querer “ter algo a ver” com eles. STMSC: §26
Na verdade, o impessoal, assim como a presença (Dasein), não é algo simplesmente dado. Quanta mais visivelmente gesticula o impessoal, mais difícil é percebê-lo e apreendê-lo e menos ele se torna um nada. Para uma “visão” ôntico-ontológica, destituída de preconceitos, o impessoal se revela como “o sujeito mais real” da cotidianidade. Que ele não seja acessível, como uma pedra simplesmente dada, isso nada decide sobre o seu modo de ser. Assim, não se deve decretar apressadamente que o impessoal seja “propriamente” nada como não se deve favorecer a opinião de que o FENÔMENO do impessoal já esteja ontologicamente interpretado quando é “esclarecido” como resultado da soma posterior de vários sujeitos simplesmente dados em conjunto. A elaboração dos conceitos de ser deve orientar-se, ao contrário, por estes fenômenos irrecusáveis. STMSC: §27
O impessoal é um existencial e, enquanto FENÔMENO originário, pertence à constituição positiva da presença (Dasein). A presença (Dasein) possui em si mesma diversas possibilidades de concretizar-se. As imposições e expressões de seu domínio podem variar historicamente. STMSC: §27
A presença (Dasein) cotidiana retira a interpretação pré-ontológica de seu ser do modo de ser mais imediato do impessoal. A interpretação ontológica segue inicialmente esta tendência e entende a presença (Dasein) a partir do mundo, onde a encontra como ente intramundano. E não somente isto; a ontologia “mais imediata” da presença (Dasein) recebe previamente do “mundo” o sentido do ser em virtude do qual estes “sujeitos” se compreendem. Entretanto, uma vez que neste concentrar-se no mundo salta-se por cima do próprio FENÔMENO do mundo, em seu lugar aparece o que é simplesmente dado dentro do mundo: as coisas. O ser dos entes em sua co-presença (Dasein) é então compreendido como ser simplesmente dado. Dessa maneira, a demonstração do FENÔMENO positivo do ser-no-mundo mais cotidiano possibilita adentrar as raízes da interpretação ontologicamente desviada desta constituição de ser. É ela mesma que, em seu modo de ser cotidiano, de início se encobre e não é encontrada. STMSC: §27
A antecipação desse momento estrutural básico surgiu da intenção de se manter, desde o princípio, a análise dos diversos momentos singulares numa visão prévia de toda a estrutura e assim evitar qualquer fragmentação e disseminação da unidade do FENÔMENO. Agora, porém, trata-se de reconduzir a interpretação ao FENÔMENO do ser-em, conservando o que se adquiriu nas análises concretas do mundo e do quem. Deve-se não apenas considerá-la ainda uma vez de maneira mais profunda e visualizar com mais segurança a totalidade da estrutura ser-no-mundo, numa perspectiva fenomenológica, mas também abrir um caminho para se apreender o ser originário da própria presença (Dasein), isto é, da cura. STMSC: §28
O que ainda se deve mostrar no ser-no-mundo, além das remissões essenciais de ser-junto-ao-mundo (ocupação), de ser-com (preocupação) e de ser-si-mesmo (quem)? Com efeito, pode-se sempre ainda ampliar a análise no sentido de se distinguir a presença (Dasein) dos entes não dotados do caráter de presença (Dasein), mediante uma caracterização comparativa dos desdobramentos da ocupação e sua circunvisão, da preocupação e sua consideração, e através de uma explicação mais apurada do ser de todos os entes intramundanos possíveis. Sem dúvida, nesta direção há muitas tarefas a serem cumpridas. O que se explicitou até aqui ainda carece de complementos no tocante a uma elaboração completa do a priori existencial de uma antropologia filosófica. Mas esse não é o propósito da presente investigação. O seu escopo é uma ontologia fundamental. Se é assim que questionamos tematicamente o ser-em, sem dúvida não poderemos pretender esgotar a originariedade deste FENÔMENO, derivando-o de outros, isto é, mediante uma análise inadequada, no sentido de uma solução. Todavia, a impossibilidade de se derivar o que é originário não exclui uma variedade multiforme de características ontológicas constitutivas. Quando elas se mostram, são igualmente originárias do ponto de vista existencial. O FENÔMENO da igualdade originária dos momentos constitutivos foi, muitas vezes, desconsiderado na ontologia, em consequência de uma tendência metodológica incontrolável para comprovar a proveniência de tudo e de todos a partir de um “fundamento primordial” único e simples. STMSC: §28
Em que direção deve-se olhar para que se possa caracterizar fenomenalmente o ser-em como tal? A resposta encontra-se, quando se recorda o que, na indicação do FENÔMENO, já foi confiado a visão fenomenológica: o ser-em difere da interioridade de algo simplesmente dado “em” um outro; o ser-em não é propriedade de um sujeito simplesmente dado, separada ou apenas provocada pelo ser simplesmente dado do “mundo”; ao contrário, o ser-em é um modo de ser essencial do próprio sujeito. Que mais se apresentaria neste FENÔMENO do que um commercium simplesmente dado entre um sujeito simplesmente dado e um objeto simplesmente dado? Esta interpretação aproximar-se-ia dos dados fenomenais se dissesse: a presença (Dasein) é o ser deste “entre”. Mesmo assim, a orientação pelo “entre” continuaria provocando mal-entendidos, pois impediria de se ver a indeterminação ontológica do ponto de partida de um ente em meio ao qual “é e está” este entre como tal. Nesse caso, o entre já estaria sendo concebido como resultado da conveniência entre duas coisas simplesmente dadas. O seu ponto de partida prévio já explode o FENÔMENO e seria insensato tentar recompô-lo novamente a partir de seus fragmentos. Não é apenas que falte a “argamassa”. Também o “esquema”, segundo o qual a integração pode realizar-se, foi explodido ou jamais se desvendou. Do ponto de vista ontológico, é decisivo evitar previamente a fragmentação do FENÔMENO, o que significa assegurar o seu teor fenomenal positivo. Que sejam necessárias muitas circunstâncias para que isso se cumpra ontologicamente, isso foi, ontologicamente desvirtuado em tais proporções no modo tradicional de tratar o “problema do conhecimento” que chegou a se distorcer, a ponto de se tornar invisível. STMSC: §28
Em B (o ser cotidiano do pre (das Da) e a decadência da presença (Dasein)), de acordo com o FENÔMENO constitutivo da fala, da visão inserida na compreensão e, de acordo com a interpretação pertinente (significado), serão analisados, enquanto modos existenciais do ser cotidiano do pre (das Da): a falação (§35), a curiosidade (§36), a ambiguidade (§37). Nesses fenômenos, torna-se visível um modo fundamental de ser do pre (das Da) que interpretamos como decadência. Trata-se de uma “cadência”, que mostra um modo existencial próprio de movimentação (§38). STMSC: §28
O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor, o estar afinado num humor. Antes de qualquer psicologia dos humores, ainda bastante primitiva, trata-se de ver este FENÔMENO como um existencial fundamental e delimitar sua estrutura. STMSC: §29
Significaria um grande equívoco fenomenal identificar o que se abre na afinação do humor e como ele o faz com o que a presença (Dasein) “simultaneamente” aí conhece, sabe e acredita. Mesmo que a presença (Dasein) estivesse “segura” na crença de seu “para onde” (Wohin) ou pretendesse saber o seu de onde, mediante um esclarecimento racional, nada disso diminuiria o seguinte FENÔMENO: o humor coloca a presença (Dasein) diante desse que de seu pre (das Da), o qual se lhe impõe como enigma inexorável. Do ponto de vista ontológico-existencial, não há nenhuma razão para se desprezar a “evidência” da disposição, comparando-a com a certeza apodítica de um conhecimento teórico acerca do que é simplesmente dado. Também não é menos falso abrigar esses fenômenos no âmbito do irracional. O irracionalismo – enquanto o outro lado do racionalismo – fala apenas estrabicamente daquilo para o que o racionalismo é cego. STMSC: §29
É um mérito da pesquisa fenomenológica ter recriado uma visão mais livre desses fenômenos. E não apenas isso; instigado por Santo Agostinho e Pascal, Scheler orientou a problemática para o nexo de fundamentação entre os atos de “representação” e os de “interesse”. No entanto, mesmo aqui, os fundamentos ontológico-existenciais do FENÔMENO do ato ainda permanecem inteiramente obscuros. STMSC: §29
A disposição não apenas abre a presença (Dasein) em seu estar-lançado e dependência do mundo já descoberto em seu ser, mas ela própria e o modo de ser existencial em que a presença (Dasein) permanentemente se abandona ao “mundo” e por ele se deixa tocar de maneira a se esquivar de si mesma. A constituição existencial desse esquivar-se será evidenciada no FENÔMENO da decadência. STMSC: §29
O FENÔMENO da disposição, no modo determinado do medo, será demonstrado agora de modo ainda mais concreto numa relação com uma disposição fundamental da presença (Dasein), a angústia, que será interpretada posteriormente (cf §40). STMSC: §29
O FENÔMENO do medo pode ser considerado segundo três perspectivas: analisaremos o de que (Wovor) se tem medo, o ter medo e o pelo que (Worum) se tem medo. Essas perspectivas possíveis e copertinentes não são casuais. Com elas vem à luz a estrutura da disposição. A análise se completará com a indicação das possíveis modificações do medo e de seus vários momentos estruturais. STMSC: §30
Os momentos constitutivos de todo o FENÔMENO do medo podem variar. Nessas variações, surgem diferentes possibilidades de ser do ter medo. A aproximação na proximidade pertence à estrutura de encontro daquilo que ameaça. Como uma ameaça, em seu “na verdade ainda não, mas a qualquer momento sim” subitamente se abate sobre o ser-no-mundo da ocupação, o medo se transforma em pavor. Desse modo, deve-se distinguir na ameaça: a aproximação mais próxima do que ameaça e o modo de encontro com a própria aproximação, o súbito. O referente do pavor e, de início, algo conhecido e familiar. Se, ao contrário, o que ameaça possuir o caráter de algo totalmente não familiar, o medo transforma-se em horror. E somente quando o que ameaça vem ao encontro com o caráter de horror, possuindo ao mesmo tempo o caráter de pavor, a saber, o súbito, o medo torna-se, então, terror. Outras variações do medo nos são conhecidas como timidez, acanhamento, receio e estupor. Enquanto possibilidades da disposição, todas as modificações do medo indicam que, como ser-no-mundo, a presença (Dasein) é “medrosa”. Essa “medrosidade” não deve ser compreendida onticamente no sentido de uma predisposição fatual e “singular”, mas como possibilidade existencial da disposição essencial de toda presença (Dasein) que, de certo modo, não é única. STMSC: §30
A disposição é uma das estruturas existenciais em que o ser do “pre” (das Da) da presença (Dasein) se sustenta. De maneira igualmente originária, também o compreender constitui esse ser. Toda disposição sempre possui a sua compreensão, mesmo quando a reprime. O compreender está sempre afinado pelo humor. Interpretando o compreender como um existencial {CH: de modo ontológico-fundamental, isto é, a partir da remissão da verdade de ser} fundamental, mostra-se que esse FENÔMENO é concebido como modo fundamental de ser da presença (Dasein). No sentido, porém, de um modo possível de conhecimento entre outros, que se distingue, por exemplo, do “esclarecer”, o “compreender” deve ser interpretado juntamente com aquele, como um derivado existencial do compreender primordial, que também constitui o ser do pre (das Da) da presença (Dasein). STMSC: §31
No compreender, a presença (Dasein) projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para possibilidades em compreendendo é um poder-ser que repercute sobre a presença (Dasein) as possibilidades enquanto aberturas. O projetar inerente ao compreender possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração. Nela, o compreender apropria-se do que compreende. Na interpretação, o compreender vem a ser ele mesmo e não outra coisa. A interpretação funda-se existencialmente no compreender e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas no compreender. De acordo com o teor dessa análise preparatória da presença (Dasein) cotidiana, investigaremos o FENÔMENO da interpretação no compreender de mundo, ou seja, no compreender impróprio, e isso no modo de sua autenticidade. STMSC: §32
Como se deve conceber o caráter desse “prévio”? Seria suficiente dizer que é formalmente um “a priori”? Por que essa estrutura apropria-se do compreender, por nos caracterizado como existencial básico da presença (Dasein)? De que maneira a estrutura-”como” do que se interpreta se comporta em relação a ela? Decerto esse FENÔMENO não pode ser dissolvido “em partes”. Será então que exclui uma analítica originária? Devemos supor tais fenômenos como “realidades derradeiras”? Nesse caso, ainda seria preciso perguntar: por quê? Ou será que a estrutura prévia do compreender e a estrutura-como da interpretação estabelecem um nexo ontológico-existencial com o FENÔMENO do projeto? Esse remeteria, portanto, a uma constituição de ser originária da presença (Dasein)? STMSC: §32
Antes de responder a tais questões, e também porque os recursos conceituais usados até aqui não seriam suficientes, deve-se investigar se aquilo que pode ser visto como estrutura prévia do compreender e estrutura-como da interpretação já não representa em sisi mesmo um FENÔMENO unitário, amplamente usado na problemática filosófica sem que, no entanto, lhe corresponda a originariedade de uma explicação ontológica. STMSC: §32
O “círculo” do compreender pertence a estrutura do sentido, cujo FENÔMENO tem suas raízes na constituição existencial da presença (Dasein), enquanto um compreender que interpreta. O ente em que está em jogo seu próprio {CH: esse “seu próprio ser”, porém, é determinado em si pela compreensão de ser, isto é, por in-sistir na claridade da vigência em que nem a claridade como tal e nem a vigência como tal são temas de representação} ser como ser-no-mundo possui uma estrutura de círculo ontológico. Deve-se, no entanto, observar que, se do ponto de vista ontológico, o “círculo” pertence a um modo de ser do que e simplesmente dado, deve-se evitar caracterizar ontologicamente a presença (Dasein) mediante esse FENÔMENO. STMSC: §32
Em primeiro lugar, pode-se mostrar no enunciado de que maneira a estrutura-”como”, constitutiva de todo compreender e interpretação, e suscetível de modificação. Com isso, o compreender e a interpretação aparecem com maior nitidez. Em segundo lugar, a análise do enunciado ocupa um lugar privilegiado na problemática de uma ontologia fundamental, uma vez que, no início decisivo da antiga ontologia, somente o logos constituía o fio condutor do acesso ao ente propriamente dito e da determinação do ser dos entes. Por fim, ha muito tempo, o enunciado vale como o “lugar” próprio e primário da verdade. Esse FENÔMENO se acha tão intimamente acoplado ao problema do ser que a presente investigação terá de se deparar necessariamente, em seu curso, com o problema da verdade. Ela já se encontra, embora implicitamente, na dimensão desse problema. A análise do enunciado também pretende servir de prepare para esta problemática. STMSC: §33
Atribuiremos a seguir três significados a palavra enunciado. São significados hauridos do FENÔMENO por ela designado, interrelacionados entre si e que, em sua unidade, delimitam a estrutura completa do enunciado. STMSC: §33
Não discutiremos em maiores detalhes a teoria do “juízo”, hoje predominantemente orientada pelo FENÔMENO da “validade”. Basta uma indicação da problematicidade variada do FENÔMENO da “validade” que, desde Lotze, apresenta-se como FENÔMENO originário”, ou seja, um FENÔMENO que já não e mais passível de uma análise ulterior. Este deve-se somente a sua falta de clareza ontológica. A “problemática” concentrada em torno dessa palavra idolatrada não e menos obscura. Validade indica, por um lado, a “forma” da realidade, atribuída ao conteúdo do juízo enquanto o que permanece inalterado frente ao processo “psíquico” de julgamento, esse em contínua transformação. No estado da questão do ser, caracterizado na introdução desse tratado, não se poderá esperar que a “validade” se distinga, enquanto “ser ideal”, por uma clareza ontológica especial. Por outro lado, validade também significa que o sentido do juízo de valor vale para o seu “objeto”, assumindo assim o significado de “validade objetiva” e objetividade em geral. O sentido “válido” dos entes e válido em si, mesmo “independente do tempo”, vale ainda também no sentido de ter valor para todos os que julgam racionalmente. Validade significa agora constringência, “validade universal”. Se ainda se defende uma epistemologia “crítica”, para a qual o sujeito propriamente “não sai de si” para alcançar o objeto, então, nesse caso, a validade como objetividade, a validade do objeto, funda-se na existência válida do sentido verdadeiro (!). Os três significados explicitados de “valer”, como modo de ser do ideal, como objetividade e como constringência, não são apenas em si desprovidos de transparências, mas confundem-se constantemente entre si. Por precaução metodológica não se pode escolher conceitos tão bruxuleantes para guia de interpretação. Não restringimos previamente o conceito de sentido ao significado de “conteúdo do juízo”, mas o entendemos como FENÔMENO existencial já caracterizado, onde se torna visível o aparelhamento formal do que se pode abrir no compreender e articular na interpretação. STMSC: §33
Reunindo esses três significados de “enunciado” numa visão unitária de todo o FENÔMENO, teremos a seguinte definição: o enunciado é um mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo, que determina e comunica. Todavia, ainda é preciso perguntar: com que direito entendemos o enunciado como modo de interpretação? Nesse caso, as estruturas essenciais da interpretação devem reaparecer no enunciado. O mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo no enunciado se dá com base no que já se abriu no compreender e descobriu na circunvisão. O enunciado não paira no ar, desligado e solto, a ponto de poder por si mesmo abrir pela primeira vez o ente como tal; mas já se detém no ser-no-mundo. O que antes se esclareceu a respeito do conhecimento do mundo vale também para o enunciado. O enunciado necessita de uma posição prévia do que se abriu, a fim de mostrá-lo a partir de si mesmo e por si mesmo segundo os modos de determinação. Ademais, já reside no ponto de partida da determinação uma perspectiva orientada para o que se vai enunciar. A perspectiva a partir da qual se encara o ente preliminarmente dado assume, no processo de determinação, a função de determinante. O enunciado necessita de uma visão prévia que desloque, por assim dizer, o predicado a ser explicitado e indicado, incluindo-o implicitamente no próprio ente. Uma articulação do significado daquilo que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo pertence ao enunciado enquanto comunicação determinante. É por isso que ela se move numa determinada conceituação: o martelo é pesado, o peso é do martelo, o martelo tem a propriedade de ser pesado. A concepção prévia sempre presente em todo enunciado permanece, na maior parte das vezes, sem surpresas, pois toda língua já guarda em si uma conceituação elaborada. Tanto o enunciado quanto a interpretação têm necessariamente seus fundamentos existenciais numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. STMSC: §33
No conhecimento progressivo da estrutura do não se podia evitar que o FENÔMENO do “como” apofântico viesse a ser percebido de alguma forma. A maneira em que foi visto pela primeira vez não foi mero acaso e, por isso, suas consequências estão presentes em toda a história posterior da lógica. STMSC: §33
Para a consideração filosófica, o próprio logos é um ente e, segundo a orientação da antiga ontologia, um ente simplesmente dado. Simplesmente dadas, numa primeira aproximação, ou seja, prejacentes como coisas, são as palavras, as combinações de palavras em que ele se pronuncia. A primeira investigação da estrutura do logos simplesmente dado constata o simplesmente dar-se em conjunto de várias palavras. O que gera a unidade desse conjunto? Como sabia Platão, a unidade reside em que o logos é sempre logos tinos. Sob a perspectiva dos entes revelados no logos, as palavras se compõem em um conjunto verbal. Aristóteles viu mais radicalmente: todo logos é synthesis (ligação) e diairesis (separação) ao mesmo tempo e não ora um – por exemplo, como juízo positivo – ora outro – como juízo negativo. Todo enunciado, ao contrário, quer afirmativo ou negativo, verdadeiro ou falso, é de maneira igualmente originária synthesis e diairesis. A demonstração é, ao mesmo tempo, uma conjunção e uma disjunção. Sem dúvida, Aristóteles não levou a questão analítica até ao seguinte problema: na estrutura do logos, que FENÔMENO permite e exige que se caracterize todo enunciado como síntese e diaírese? STMSC: §33
Do ponto de vista fenomenal, o que se deveria encontrar nas estruturas formais de “ligação” e “separação”, mais precisamente em sua unidade, é o FENÔMENO de “algo como algo”. De acordo com esta estrutura, algo só é compreendido desde algo – isto é, numa conjunção, de tal modo que a confrontação que compreende e interpreta articulando mantenha, ao mesmo tempo, disjunto o que era conjunto. Se, no entanto, o FENÔMENO do “como” permanecer encoberto e, sobretudo, se a sua origem existencial a partir do “como” hermenêutico continuar velada, então o ponto de partida fenomenológico de Aristóteles na análise do logos decai para uma “teoria do juízo” meramente exterior, segundo a qual julgar não passa da ligação e separação de conceitos e representações. STMSC: §33
O FENÔMENO da cópula mostra até que ponto esta problemática ontológica influi na interpretação do logos e, inversamente, até que ponto o conceito de “juízo” repercute, numa reação curiosa, na problemática ontológica. Este “elo” revela, em primeiro lugar, que já de saída se pressupõe evidente a estrutura sintética, mantendo-a, então, numa função decisiva na interpretação do logos. Entretanto, caso as características formais de “relação” e “ligação” não possam contribuir em nada para o FENÔMENO da análise do conteúdo estrutural do logos, então o FENÔMENO da cópula, em última instância, nada tem a ver com elo e ligação. O “é” e sua interpretação, quer se exprima linguisticamente ou se indique nas desinências verbais, só entra no contexto dos problemas da analítica existencial se os enunciados e a compreensão de ser forem em si mesmas possibilidades existenciais da própria presença (Dasein). A elaboração da questão do ser (cf parte I, seção III) vai encontrar-se, pois, novamente, dentro do logos com esse FENÔMENO ontológico característico. STMSC: §33
Disposição e compreender são os existenciais fundamentais que constituem o ser do pre (das Da), ou seja, a abertura do ser-no-mundo. O compreender guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de uma apropriação do que se compreende. Sendo disposição e compreender igualmente originários, a disposição se mantém numa certa compreensão. Corresponde-lhe também uma certa possibilidade de interpretação. O enunciado tornou visível um derivado extremo da interpretação. O esclarecimento do terceiro significado de enunciado como comunicação (declaração) levou ao conceito de dizer e pronunciar, até aqui propositadamente desconsiderado. Que somente agora se tematize a linguagem, isso deve indicar que este FENÔMENO se radica na constituição existencial da abertura da presença (Dasein). O fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala. Embora tenhamos excluído esse FENÔMENO de uma análise temática, dele nos servimos constantemente nas interpretações feitas até aqui da disposição, do compreender, da interpretação e do enunciado. STMSC: §34
Como já se indicou na análise anterior, o FENÔMENO da comunicação deve ser compreendido num sentido ontologicamente amplo. A “comunicação” de enunciados, por exemplo, a reportagem, é um caso especial de comunicação, apreendida fundamentalmente como existencial. Nela se constitui a articulação da convivência que compreende. É ela que cumpre a “partilha” da disposição comum e da compreensão do ser-com. Comunicação nunca é a transposição de vivências, por exemplo, de opiniões e desejos, do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito. A co-presença (Dasein) já se revelou essencialmente na disposição e compreender comuns. O ser-com é partilhado “expressamente” na fala. Isso significa: o ser-com já é, só que ainda não partilhado porque não apreendido e apropriado. STMSC: §34
É com base nessa possibilidade de escutar, existencialmente primordial, que se torna possível ouvir. Trata-se de um FENÔMENO ainda mais originário do que aquilo que a psicologia determina “numa primeira aproximação” como escutar, ou seja, a sensação de sons e a percepção de tons. Também o ouvir possui o modo de ser de uma escuta compreensiva. “Em primeiro lugar”, nunca escutamos ruídos e complexos acústicos. Escutamos o carro rangendo, a motocicleta. Escuta-se a coluna marchando, o vento do Norte, o pica-pau batendo, o fogo crepitando. STMSC: §34
Porque a fala é constitutiva do ser do pre (das Da), isto é, da disposição e do compreender, a presença (Dasein) significa então: como ser-no-mundo, a presença (Dasein) se pronunciou como ser-em uma fala. A presença (Dasein) possui linguagem. Terá sido mero acaso que os gregos depositaram a sua existência cotidiana predominantemente no espaço aberto pela fala convivial, guardando ao mesmo tempo olhos para ver, tanto na interpretação filosófica como na pré-filosófica da presença (Dasein), a essência do homem determinada como zoon logon echon {CH: o homem como o que “colhe”, recolhendo-se no ser-vigente na abertura dos entes (mas estes em segundo plano)}? A interpretação posterior dessa caracterização do homem, no sentido de animal rationale, “animal racional”, não é, com efeito, “falsa”, mas encobre o solo fenomenal que deu origem a essa definição da presença (Dasein). O homem mostra-se como um ente que é na fala. Isso não significa que a possibilidade de articulação verbal seja apenas própria do homem, e sim que o homem se realiza no modo de descoberta de mundo e da própria presença (Dasein). Os gregos não dispunham de uma palavra própria para linguagem porque entendiam esse FENÔMENO “sobretudo” como fala. Por outro lado, porque na reflexão filosófica o logos foi visualizado, sobretudo como enunciado, a elaboração das estruturas básicas das formas e dos integrantes da fala se deu de acordo com este logos. A gramática buscou seus fundamentos na “lógica” deste logos. Esta, por sua vez, se funda na ontologia do simplesmente dado. O acervo das “categorias semânticas”, herdado pela linguística posterior e ainda hoje decisivo em seus princípios, orienta-se pela fala entendida como enunciado. Tomando, porém, esse FENÔMENO em toda a originariedade fundamental e em todo o alcance de um existencial, será necessário transpor a linguística para fundamentos mais originários do ponto de vista ontológico. A tarefa de libertar a gramática da lógica necessita de uma compreensão preliminar e positiva da estrutura a priori da fala como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida subsidiariamente através de correções e complementações do que foi legado pela tradição. Nesse propósito, devem-se questionar as formas fundamentais em que se funda a possibilidade semântica de articulação do que é susceptível de compreensão e não apenas dos entes intramundanos conhecidos teoricamente e expressos em proposições. A semântica não se constitui por si mesma de uma comparação ampla do maior número possível de línguas e das línguas mais distantes entre si. Também não basta assumir o horizonte filosófico em que W.v. Humboldt problematizou a linguagem. A semântica tem suas raízes na ontologia da presença (Dasein). O seu florescimento ou fenecimento está atrelado ao destino da presença (Dasein). STMSC: §34
A presente investigação da linguagem tinha por tarefa apenas mostrar o “lugar” ontológico desse FENÔMENO dentro da constituição de ser da presença (Dasein) e, sobretudo, preparar a análise que se segue e que tenta visualizar a cotidianidade da presença (Dasein) de uma maneira ontologicamente mais originária, seguindo o modo de ser fundamental da fala em conexão com outros fenômenos. STMSC: §34
Se o compreender deve ser entendido primordialmente como poder-ser da presença (Dasein), as possibilidades de ser que a presença (Dasein), enquanto impessoal, abriu e das quais se apropriou devem ser extraídas de uma análise do compreender e da interpretação próprias do impessoal. Essas possibilidades próprias revelam assim uma tendência essencial do ser da cotidianidade. Explicitada de maneira suficiente em sua estrutura ontológica, a cotidianidade há de desenvolver um modo de ser originário da presença (Dasein) de tal maneira que, a partir desse modo de ser, possa demonstrar-se em sua concreção existencial o FENÔMENO de estar-lançado, inerente à presença (Dasein). STMSC: §34
A expressão “falação” não deve ser tomada aqui em sentido pejorativo. Terminologicamente significa um FENÔMENO positivo que constitui o modo de ser do compreender e da interpretação da presença (Dasein) cotidiana. A fala, na maior parte das vezes, se pronuncia e já sempre se pronunciou. É linguagem. Ao pronunciar-se, o compreender e a interpretação já se dão. Como um pronunciamento, a linguagem guarda em si uma interpretação da compreensão de presença (Dasein). Assim como a linguagem, também essa interpretação não é algo simplesmente dado, mas o seu ser contém em si o modo de ser de presença (Dasein). Dentro de certos limites e imediatamente, a presença (Dasein) está entregue à interpretação, na medida em que essa regula e distribui as possibilidades do compreender mediano e de sua disposição. Na totalidade de suas articulações de significado, o pronunciamento preserva um compreender do mundo que se abriu e, de maneira igualmente originária, um compreender da co-presença (Dasein) dos outros e do próprio ser-em. A compreensão que, assim, já se acha inserida no pronunciar-se refere-se tanto à descoberta já estabelecida e herdada dos entes como a cada compreensão de ser e às possibilidades e horizontes disponíveis para novas interpretações e novas articulações conceituais. Muito mais do que uma simples indicação do fato dessas interpretações da presença (Dasein), cabe agora questionar o modo de ser existencial da fala que se pronuncia e já se pronunciou. Se o modo de ser da fala não pode ser concebido como algo simplesmente dado, qual é então o seu ser e o que diz, em princípio, sobre o modo de ser cotidiano da presença (Dasein)? STMSC: §35
A constituição fundamental da visão mostra-se numa tendência ontológica para “ver”, própria da cotidianidade. Nós a designamos com o termo curiosidade. Em suas características, a curiosidade não se limita a ver, exprimindo a tendência para um tipo especial de encontro perceptivo com o mundo. Interpretaremos esse FENÔMENO com um propósito fundamentalmente ontológico-existencial. Não limitaremos a sua orientação pelo conhecimento que, já cedo e na filosofia grega, foi concebido, não por acaso, segundo o “prazer de ver”. O tratado que figura em primeiro lugar na coletânea dos escritos ontológicos de Aristóteles começa com a seguinte frase: pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei (Metafísica, A 1, 980 a), “no ser do homem reside, de modo essencial, o acurar do ver”. Assim começa uma investigação que procura descobrir a origem da pesquisa científica acerca dos entes e de seu ser a partir deste modo de ser da presença (Dasein). A interpretação grega da gênese existencial da ciência não é casual. Aquilo que se pressignou na sentença de Parmênides – to gar auto noein estin te kai einai – chega, nessa interpretação, a uma compreensão temática e explícita. O ser é tudo que se mostra numa percepção puramente intuitiva, e somente esse tipo de ver descobre o ser. A verdade originária e autêntica reside na intuição pura. Desde então, essa tese tem sido o fundamento da filosofia ocidental. Dela a dialética de Hegel retirou o seu moto e somente à sua base é que se tornou possível. STMSC: §36
O que se passa com essa tendência de somente perceber? Que constituição existencial da presença (Dasein) pode ser compreendida através do FENÔMENO da curiosidade? STMSC: §36
A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo a fim de, por ele renovada, correr para uma outra novidade. Esse acurar em ver não trata de apreender e nem de ser e estar na verdade através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se ao mundo. Por isso, a curiosidade caracteriza-se, especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro. Em sua impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de dispersão. A curiosidade nada tem a ver com a contemplação admiradora dos entes, o thaumazein. Ela não se empenha em se deixar levar para o que não compreende através da admiração, do espanto. Ela se ocupa em providenciar um conhecimento para simplesmente ter-se tornado consciente. Os dois momentos constitutivos da curiosidade, a impermanência no mundo circundante das ocupações e a dispersão em novas possibilidades, fundam a terceira característica essencial desse FENÔMENO, que chamamos de desamparo. A curiosidade está em toda parte e em parte nenhuma. Este modo de ser-no-mundo desvela um novo modo de ser da presença (Dasein) cotidiana em que ela se encontra constantemente desenraizada. STMSC: §36
A falação também rege os caminhos da curiosidade. É ela que diz o que se deve ter lido e visto. Esse estar em toda parte e em parte alguma da curiosidade entrega-se à responsabilidade da falação. Esses dois modos de ser cotidianos da fala e da visão não se acham simplesmente um ao lado do outro em sua tendência de desenraizamento, mas um modo de ser arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada perde, e a falação, que tudo compreende, dão à presença (Dasein), que assim existe, a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com esta pretensão, porém, mostra-se um terceiro FENÔMENO característico da abertura da presença (Dasein) cotidiana. STMSC: §36
Neste sentido, deve-se considerar que a ambiguidade não nasce primordialmente de uma intenção explícita de deturpação e distorção e nem é detonada primeiro por uma presença (Dasein) singular. A ambiguidade já subsiste na convivência enquanto convivência lançada num mundo. Entretanto, publicamente, ela se esconde, e o impessoal haverá sempre de objetar que essa interpretação não corresponde ao modo de ser da interpretação do impessoal. Seria um equívoco pretender que o impessoal concordasse com a explicação desse FENÔMENO. STMSC: §37
Por ocasião da primeira indicação do ser-no-mundo como constituição fundamental da presença (Dasein) e na caracterização de seus momentos constitutivos não se considerou fenomenalmente o seu modo de ser na análise da constituição de ser. Sem dúvida, os modos básicos possíveis de ser-em, ocupação e preocupação, foram descritos. Entretanto, não se discutiu a questão do modo de ser cotidiano dessas modalidades. Mostrou-se também que o ser-em difere inteiramente de um contrapor-se observador ou atuante, isto é, que não se trata do simplesmente dar-se em conjunto de um sujeito e um objeto. Não obstante, manteve-se a aparência de que o ser-no-mundo constitui uma armação rígida dentro da qual se desenrolam as possíveis atitudes da presença (Dasein) com seu mundo, sem que se altere ou mesmo se toque na estrutura ontológica do próprio “aparelhamento”. Esse pretenso “aparelhamento”, no entanto, também constitui o modo de ser da presença (Dasein). No FENÔMENO da decadência, documenta-se um modo existencial de ser-no-mundo. STMSC: §38
Contudo, nessa demonstração da decadência não se evidencia um FENÔMENO que fala diretamente contra a determinação pela qual se indicou e caracterizou a ideia formal de existência? Será que a presença (Dasein) pode ser compreendida como no ente em cujo ser está em jogo o poder-ser, se justamente em sua cotidianidade a presença (Dasein) se perdeu a si mesma e, na decadência, “vive” fora de si mesma? A decadência no mundo só constituirá, porém, uma “prova” fenomenal contra a existencialidade da presença (Dasein), caso se admita a presença (Dasein) como um eu-sujeito isolado, como um si-mesmo pontual, do qual ela parte e se move. Nesse caso, o mundo seria um objeto. A decadência no mundo sofreria assim uma transformação em sua interpretação ontológica, tornando-se algo simplesmente dado nos moldes de um ente intramundano. Se, no entanto, mantivermos o ser da presença (Dasein) na constituição de ser-no-mundo, revelar-se-á que enquanto modo de ser deste ser-em, a decadência apresenta a prova mais elementar a favor da existencialidade da presença (Dasein). Na decadência, trata-se apenas de poder-ser-no-mundo, embora no modo da impropriedade. A presença (Dasein) só pode decair porque nela está em jogo o ser-no-mundo, no modo de compreender e dispor-se. Em contrapartida, a existência própria não é nada que paire por sobre a decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ela é apenas uma apreensão modificada da cotidianidade. STMSC: §38
O FENÔMENO da decadência também não propicia uma “visão noturna e soturna” da presença (Dasein), uma propriedade ôntica que pudesse servir de complemento ao aspecto inocente da presença (Dasein). A decadência descobre uma estrutura ontológica essencial da própria presença (Dasein). Ela determina tão pouco o lado noturno e soturno da presença (Dasein) que chega até mesmo a constituir todos os seus dias em sua cotidianidade. STMSC: §38
Ser-no-mundo é uma estrutura originária e constantemente total. Nos capítulos precedentes (seção I, cap. 2-5), essa estrutura evidenciou-se fenomenalmente como um todo e, sempre com essa base, em seus momentos constitutivos. A visualização preliminar dada no início, a respeito do FENÔMENO, perdeu agora o vazio da primeira caracterização genérica. Na verdade, existe agora uma tamanha variedade fenomenal na constituição do todo estrutural e de seu modo de ser cotidiano que o olhar fenomenológico unificador pode facilmente enganar-se acerca da unidade do todo como tal. Esse olhar, no entanto, deve manter-se o mais livre e o mais seguro para que agora possamos colocar a questão a que aspirava a análise preparatória dos fundamentos da presença (Dasein), qual seja: Como se haverá de determinar, do ponto de vista ontológico-existencial, a totalidade do todo estrutural indicado? STMSC: §39
Negativamente, está fora de questão: a totalidade do todo estrutural não pode ser alcançada fenomenalmente mediante uma montagem de elementos. Para isso seria necessário um plano. O ser da presença (Dasein), que sustenta ontologicamente o todo estrutural, torna-se acessível num olhar completo que perpassa esse todo no sentido de um FENÔMENO originariamente unitário, que já se dá no todo, de modo a fundar ontologicamente cada momento estrutural em sua possibilidade. A interpretação “conectadora” não pode, portanto, ser uma coletânea que reúne o que já foi conquistado até aqui. A questão do caráter existencial básico da presença (Dasein) difere essencialmente da questão do ser de algo simplesmente dado. A experiência cotidiana do mundo circundante que, tanto do ponto de vista ôntico como ontológico, permanece orientada para o ente intramundano, não é capaz de oferecer a presença (Dasein), ôntica e originariamente, à análise ontológica. Da mesma forma a percepção imanente das vivências carece de um fio condutor ontológico capaz de guiar suficientemente a análise. Por outro lado ainda, o ser da presença (Dasein) não deve ser deduzido de uma ideia de homem. Será que a interpretação da presença (Dasein) feita até aqui poderá propiciar um acesso ôntico-ontológico a si mesma que, exigido de si mesma, seria o único a lhe convir? STMSC: §39
O FENÔMENO da angústia foi colocado à base da análise como uma disposição suficiente que aguarda tais exigências metodológicas. A elaboração dessa disposição fundamental e a caracterização ontológica do que nela se abre como tal retira seu ponto de partida do FENÔMENO da decadência e delimita a angústia frente ao FENÔMENO que lhe é próximo, a saber, o FENÔMENO do medo, anteriormente analisado. Enquanto possibilidade de ser da presença (Dasein), a angústia, junto com a própria presença (Dasein) que nela se abre, oferece o solo fenomenal para a apreensão explícita da totalidade originária da presença (Dasein). Esse ser desvela-se como cura. A elaboração ontológica desse FENÔMENO existencial fundamental exige a sua delimitação frente aos fenômenos que, de imediato, podem identificar-se com a cura. Esses fenômenos são vontade, desejo, tendência, propensão. A cura não pode derivar-se desses fenômenos, pois eles mesmos nela estão fundados. STMSC: §39
A analítica da presença (Dasein) que conduz ao FENÔMENO da cura deverá preparar a problemática ontológica fundamental, isto é, a questão do sentido de ser em geral. Para se ver, a partir do que já se obteve, mais do que a tarefa particular de uma antropologia a priori e existencial, deve-se reexaminar, de modo ainda mais penetrante, os fenômenos estreitamente ligados à questão do ser. Até agora, os modos explicitados de ser foram a manualidade e o ser simplesmente dado que determinam os entes intramundanos, destituídos do caráter de presença (Dasein). Porque, na tradição, a problemática ontológica compreendeu primariamente o ser no sentido de ser simplesmente dado (“realidade”, “mundo”-real) e, por outro lado, o ser da presença (Dasein) permaneceu indeterminado do ponto de vista ontológico, é preciso discutir o nexo ontológico entre cura, mundanidade, manualidade e ser simplesmente dado (realidade). Isso leva a uma determinação mais precisa do conceito de realidade no contexto de uma discussão das questões epistemológicas de realismo e idealismo, orientadas por essa ideia. STMSC: §39
Todo ente é independente de experiência, conhecimento e apreensão através do que ele se abre, descobre e determina. O ser, no entanto, apenas “é” no compreender {CH: mas esse compreender como escuta. Isso, no entanto, nunca significa que “ser” seja apenas “subjetivo” e sim ser (como ser dos entes) como diferença “na” presença (Dasein) enquanto ela é um projetar-se (do projeto)} dos entes a cujo ser pertence a uma compreensão de ser. O ser, portanto, pode não ser concebido, embora jamais seja inteiramente incompreendido. Na problemática ontológica, ser e verdade foram, desde a antiguidade, correlacionados, embora suas razões originárias permaneçam talvez encobertas. Nisso se comprova o nexo necessário entre ser e compreensão {CH: portanto: ser e presença (Dasein)}. A fim de se preparar de modo suficiente a questão do ser, é preciso, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o FENÔMENO da verdade. De imediato, esse esclarecimento se faz com base no que se obteve através da interpretação precedente dos fenômenos de abertura e descoberta, interpretação e enunciado. STMSC: §39
No propósito de alcançar o ser da totalidade do todo estrutural, partiremos das últimas análises concretas da decadência. Imergir no impessoal junto ao “mundo” das ocupações revela algo como uma fuga de si mesmo da presença (Dasein), e isso enquanto seu próprio poder-ser propriamente. Esse FENÔMENO da fuga de si mesmo e de sua propriedade parece ser, na verdade, o solo fenomenal menos indicado para se investigar o que haverá de seguir. Pois nessa fuga, a presença (Dasein) não se coloca diante de si mesma. De acordo com a tendência característica da decadência, o desvio conduz para longe da presença (Dasein). Não obstante, em tais fenômenos, deve-se evitar confundir os caracteres ôntico-existenciários com a interpretação ontológico-existencial. Deve-se também evitar passar por cima dos fundamentos fenomenais positivos presentes naqueles caracteres e importantes para essa investigação. STMSC: §40
Nessas condições, orientar a análise pelo FENÔMENO da decadência não exclui, em princípio, a possibilidade de se fazer uma experiência ontológica da presença (Dasein) que se abre nesse FENÔMENO. Ao contrário, nesse caso, a interpretação não se expõe a uma auto-apreensão artificial da presença (Dasein). Ela realiza apenas a explicação daquilo que a própria presença (Dasein) abre onticamente. A possibilidade de se chegar ao ser da presença (Dasein), interpretando-se numa repetição e num acompanhamento o compreender dado na disposição, cresce ainda mais quanto mais originário for o FENÔMENO que funciona metodologicamente como disposição de abertura. De início, dizer que a angústia fornece uma condição desse tipo não passa de mera afirmação. STMSC: §40
Não estamos totalmente despreparados para analisar a angústia. Não há dúvida de que o nexo ontológico entre angústia e medo é ainda obscuro. Mas é claro que, entre ambos, existe um parentesco fenomenal. O indício de parentesco reside em ambos os fenômenos permanecerem, na maior parte das vezes, inseparáveis um do outro, e isso a tal ponto que se chama de angústia o que é medo, e se fala de medo quando o FENÔMENO possui o caráter de angústia. Vamos então nos aproximar, passo a passo, do FENÔMENO da angústia. STMSC: §40
O por quê a angústia se angustia desvela-se como o com quê ela se angustia: o ser-no-mundo. A mesmidade do com quê e do pelo quê a angústia se angustia se estende até ao próprio angustiar-se. Pois, enquanto disposição, esse constitui um modo fundamental de ser-no-mundo. A mesmidade existencial do abrir e do aberto em que se abre o mundo como mundo, o ser-em como poder-ser singularizado, puro e lançado, evidencia que, com o FENÔMENO da angústia, se fez tema de interpretação uma disposição privilegiada. A angústia singulariza e abre a presença (Dasein) como “solus ipse”. Esse “solipsismo” existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere à presença (Dasein) justamente um sentido extremo em que ela é trazida como mundo para o seu mundo e, assim, como ser-no-mundo para si mesma. STMSC: §40
Ao interpretarmos, de modo ontológico-existencial, a estranheza da presença (Dasein) como ameaça que a própria presença (Dasein) experimenta em relação a si mesma, não se afirma, contudo, que na angústia fática a estranheza já se compreenda nesse sentido. O modo cotidiano em que a presença (Dasein) compreende a estranheza é o desvio para a decadência que esconde o não sentir-se em casa. Do ponto de vista fenomenal, porém, a cotidianidade dessa fuga mostra que, enquanto disposição fundamental, a angústia pertence à constituição essencial da presença (Dasein) como ser-no-mundo. E que, como existencial, jamais é algo simplesmente dado e sim um modo próprio da presença (Dasein) fática, ou seja, é uma disposição. O ser-no-mundo tranquilizado e familiarizado é um modo da estranheza da presença (Dasein) e não o a contrário. O não sentir-se em casa {CH: (desapropriação)} deve ser compreendido, existencial e ontologicamente, como o FENÔMENO mais originário. STMSC: §40
Ainda mais raras do que o fato existenciário da angústia propriamente dita são as tentativas de interpretação desse FENÔMENO em sua constituição e função ontológico-existencial. As razões disso residem, em parte, no desprezo pela análise existencial da presença (Dasein) em geral e, em particular, na desconsideração do FENÔMENO da disposição. No entanto, que o FENÔMENO da angústia mostre-se raro, isso não é capaz de retirar a inclinação de assumir uma função metodológica de princípio para a analítica existencial. Ao contrário, a raridade do FENÔMENO é um indício de que, em sua propriedade, a presença (Dasein) permanece encoberta para si mesma em vista da interpretação pública do impessoal e que, nessa disposição fundamental, abre-se para um sentido originário. STMSC: §40
A fim de se apreender ontologicamente a totalidade do todo estrutural, deve-se questionar, em primeiro lugar, se o FENÔMENO da angústia e o que nela se abre podem propiciar fenomenalmente, de maneira igualmente originária, o todo da presença (Dasein), de modo a satisfazer com esses dados a visão indagadora da totalidade. Todo o seu acervo pode ser registrado através de uma enumeração formal: enquanto disposição, o angustiar-se é um modo de ser-no-mundo; a angústia se angustia com o ser-no-mundo lançado; a angústia se angustia por poder ser-no-mundo. Em sua completude, o FENÔMENO da angústia mostra, portanto, a presença (Dasein) como ser-no-mundo que existe faticamente. Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existencialidade, facticidade e decadência. Essas determinações existenciais, no entanto, não são partes integrantes de um composto em que se pudesse ou não prescindir de alguma. Ao contrário, nelas se tece um nexo originário que constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas determinações ontológicas da presença (Dasein) é que se poderá apreender ontologicamente o seu ser como tal. Como se deve caracterizar essa unidade em si mesma? STMSC: §41
Enquanto totalidade originária de sua estrutura, a cura se acha, do ponto de vista existencial-a priori, “antes” de toda “atitude” e “situação” da presença (Dasein), o que sempre significa dizer que ela se acha em toda atitude e situação fática. Em consequência, esse FENÔMENO não exprime, de modo algum, um primado da atitude “prática” frente à teórica. A determinação meramente contemplativa de algo simplesmente dado não tem menos o caráter da cura do que uma “ação política” ou a satisfação do entretenimento. “Teoria” e “prática” são possibilidades ontológicas de um ente cujo ser deve determinar-se como cura. STMSC: §41
Sendo em sua totalidade essencialmente indivisível, toda tentativa de reconstrução ou recondução do FENÔMENO da cura a atos ou impulsos particulares tais como querer ou desejar, propensão ou tendência acaba em fracasso. STMSC: §41
O poder-ser, em virtude de que a presença (Dasein) é, possui em sisi mesmo o modo de ser-no-mundo. Nele reside, portanto, ontologicamente, a remissão ao ente intramundano. A cura é sempre ocupação e preocupação, mesmo que de modo privativo. No querer só se apreende um ente já compreendido, isto é, um ente já projetado em suas possibilidades como ente a ser tratado na ocupação ou a ser cuidado em seu ser na preocupação. É por isso que ao querer sempre pertence algo que se quer, algo que já se determinou a partir daquilo em-virtude-de que se quer. Para a possibilidade ontológica do querer são constitutivos: a abertura prévia do em-virtude-de que (o anteceder-a-si-mesma), a abertura do que se pode ocupar (o mundo como algo em que já se é) e o projeto de compreender da presença (Dasein) num poder-ser para a possibilidade de um ente “que se quis”. No FENÔMENO do querer, transparece a totalidade subjacente da cura. STMSC: §41
A expressão “cura” significa um FENÔMENO ontológico-existencial básico que também em sua estrutura não é simples. A totalidade ontologicamente elementar da estrutura da cura não pode ser reconduzida a um “elemento primário” ôntico, assim como o ser não pode ser “esclarecido” pelo ente. Por fim, há de se mostrar que a ideia de ser é tão pouco “simples” como o ser da presença (Dasein). A determinação da cura, como anteceder-a-si-mesma-no-já-ser-em…, enquanto-ser-junto-a, torna claro que esse FENÔMENO está, em sisi mesmo, articulado estruturalmente. Não será isso um indício fenomenal de que a questão ontológica deve ser levada ainda mais adiante, de modo a expor um FENÔMENO ainda mais originário, que sustente ontologicamente a unidade e totalidade da multiplicidade estrutural da cura? Antes de se prosseguir a investigação dessa questão, é preciso apropriar-se mais aguda e retrospectivamente do que foi interpretado até aqui com vistas à questão ontológica fundamental do sentido do ser em geral. Antes ainda, porém, deve-se mostrar que, do ponto de vista ontológico, a “novidade” dessa interpretação é, do ponto de vista ôntico, bastante antiga. A explicação do ser da presença (Dasein) como cura não força o ser da presença (Dasein) a se enquadrar numa ideia inventada, mas nos permite conceituar existencialmente o que já se abriu de modo ôntico-existenciário. STMSC: §41
A “universalidade” transcendental do FENÔMENO da cura e de todos os existenciais fundamentais têm, por outro lado, a envergadura que subministra preliminarmente o solo em que toda interpretação da presença (Dasein) se move, baseada numa concepção ôntica de mundo, quer se compreenda a presença (Dasein) como “preocupação com a vida” e necessidade ou ao contrário. STMSC: §42
A questão se o mundo é real e se o seu ser pode ser provado, questão que a presença (Dasein) enquanto ser-no-mundo haveria de levantar – e quem mais poderia fazê-lo? – mostra-se, pois, destituída de sentido. Trata-se ademais de uma questão ambígua. Confunde-se e não se chega a distinguir mundo enquanto o contexto do ser-em e “mundo” enquanto ente intramundano em que se empenham as ocupações. No entanto, com o ser da presença (Dasein), o mundo já se abriu de modo essencial; com a abertura de mundo, já se descobriu o “mundo”. Sem dúvida, o ente intramundano no sentido de real, de ser simplesmente dado, pode ficar encoberto. Entretanto, somente com base num mundo já aberto é que o real pode vir a ser descoberto ou ficar encoberto. Coloca-se a questão da “realidade” do “mundo externo” sem se esclarecer previamente o FENÔMENO do mundo. De fato, o “problema do mundo externo” orienta-se, constantemente, pelos entes intramundanos (coisas e objetos) e, desse modo, todas as discussões conduzem a uma problemática que, do ponto de vista ontológico, é quase indeslindável. STMSC: §43
Do ponto de vista ontológico, porém, mesmo que se abrisse mão do primado ôntico do sujeito isolado e da experiência interior, manter-se-ia a posição de Descartes. O que Kant prova – admitindo-se que a prova e a sua base sejam corretas – é o ser simplesmente dado necessariamente em conjunto de um ente que se transforma e um que permanece. Essa equiparação de dois seres simplesmente dados ainda não diz o simplesmente dar-se em conjunto de sujeito e objeto. E mesmo que isso se provasse, permaneceria encoberto o que, do ponto de vista ontológico, é decisivo: a constituição fundamental do “sujeito”, da presença (Dasein), como ser-no-mundo. O simplesmente dar-se em conjunto do físico e do psíquico é, do ponto de vista ôntico e ontológico, inteiramente distinto do FENÔMENO do ser-no-mundo. STMSC: §43
Conquanto se pretendesse sustentar que o sujeito já sempre deve pressupor, inconscientemente, que o “mundo externo” é algo simplesmente dado, o ponto de partida construtivo de um sujeito isolado ainda estaria em jogo. O FENÔMENO do ser-no-mundo permaneceria tão desapercebido como na comprovação de um ser simplesmente dado em conjunto do físico e do psíquico. Nessas pressuposições, a presença (Dasein) chega sempre “muito tarde” porque, do momento em que realiza em seu ser essa pressuposição – e de outro modo essa pressuposição não seria possível – a presença (Dasein) como ente sempre é e está em um mundo. “Antes” de toda pressuposição e atitude caracterizadas pela presença (Dasein), o “a priori” da constituição do ser se oferece no modo de ser da cura. Fé na realidade do “mundo exterior”, legítima ou ilegítima, provar essa realidade, seja de modo suficiente ou insuficiente, pressupor essa realidade, implícita ou explicitamente, todas estas tentativas, não possuindo transparência a respeito de seu solo, pressupõe, de início, um sujeito desmundanizado ou inseguro acerca de seu mundo que, antes de tudo, precisa assegurar-se de um mundo. Nesses casos, o ser-no-mundo é, desde o início, colocado diante de um apreender, de um presumir, de um assegurar-se e crer, de uma atitude que, em si mesma, já é um modo derivado de ser-no-mundo. STMSC: §43
O “problema da realidade”, no sentido da questão se um mundo exterior é simplesmente dado e se é passível de comprovação, apresenta-se como um problema impossível. Não porque tenha por consequência aporias intransponíveis, mas porque o próprio ente, que nesse problema é tematizado, recusa por assim dizer esse modo de colocar a questão. O que se deve não é provar que e como um “mundo exterior” é simplesmente dado, e sim demonstrar por que a presença (Dasein), enquanto ser-no-mundo, possui a tendência de primeiro sepultar epistemologicamente o “mundo exterior” em um nada negativo para então permitir que ele ressuscite mediante provas. A razão disso reside na decadência da presença (Dasein) e no deslocamento aí motivado da compreensão primordial do ser para um ser como algo simplesmente dado. Se, nessa orientação ontológica, o modo de colocar a questão for “crítico”, encontra então um mero “interior” enquanto o único ser simplesmente dado certo e seguro. Após a desagregação do FENÔMENO originário do ser-no-mundo, desdobra-se, com base no que resta, ou seja, no sujeito isolado, a correlação com um “mundo”. STMSC: §43
Caso o título realidade {CH: não realidade como coisidade} signifique o ser dos entes intramundanos simplesmente dados (res) – e apenas isso – para a análise desse modo de ser isto significaria: que o ente intramundano só pode ser concebido ontologicamente mediante o esclarecimento do FENÔMENO da intramundanidade. Esta, por sua vez, funda-se no FENÔMENO do mundo, o qual pertence à constituição fundamental da presença (Dasein) enquanto momento essencial da estrutura ser-no-mundo. Do ponto de vista ontológico, ser-no-mundo está imbricado na totalidade estrutural de ser da presença (Dasein), caracterizada como cura. Com isso, caracterizam-se também os fundamentos e horizontes cujo esclarecimento possibilita a análise da realidade. Apenas nesse contexto é que também o caráter do em-si torna-se ontologicamente compreensível. Nas análises anteriores, interpretou-se o ser dos entes intramundanos segundo a orientação desse contexto problemático. STMSC: §43
Com efeito, sem que se explicite a base ontológico-existencial, já se pode caracterizar fenomenalmente, embora de modo limitado, a realidade do real. Foi o que fez Dilthey no tratado supracitado. Aí se faz a experiência do real no impulso e na vontade. Realidade é resistência ou, mais precisamente, o conjunto das resistências. A elaboração analítica do FENÔMENO de resistência constitui o ponto positivo do referido tratado e a melhor confirmação concreta da ideia de uma “psicologia descritiva e classificatória”. Contudo, devido à problematização epistemológica da realidade, o efeito adequado da análise do FENÔMENO de resistência não logrou êxito. O “princípio da fenomenalidade” impediu Dilthey de chegar a uma interpretação ontológica do ser da consciência (Bewusstsein). “A vontade e seus freios emergem em meio à sua consciência” (Bewusstsein). O modo de ser dessa “emergência”, o sentido ontológico de “em meio a”, a remissão ontológica da consciência (Bewusstsein) ao próprio real, tudo isso necessita de uma determinação ontológica. A sua não-elaboração explica-se por Dilthey ter deixado a “vida”, para “atrás” da qual não se pode mais recuar, numa indiferença ontológica. Interpretar ontologicamente a presença (Dasein), porém, não significa uma recondução ôntica a um outro ente. As refutações feitas a Dilthey no plano epistemológico não podem impedir que o que há de positivo em sua análise, justamente o que ficou incompreendido nessas objeções, venha a tornar-se frutífero. STMSC: §43
Resistência também não é experimentada num impulso ou vontade que “emergem” por si mesmos. Impulso e vontade mostram-se como modificações da cura. Somente um ente que possui esse modo de ser pode deparar-se com algo que resiste no sentido de algo intramundano. Se a realidade é determinada pelo conjunto das resistências, deve-se, nesse caso, atentar para duas coisas: primeiro, que nessa determinação se encontra apenas um caráter entre outros da realidade, sendo necessário pressupor para o conjunto das resistências o mundo já aberto. Resistência caracteriza o “mundo externo”, no sentido dos entes intramundanos, mas nunca no sentido de mundo. “Consciência (Bewusstsein) da realidade” é ela mesma um modo de ser-no-mundo. Toda a “problemática do mundo externo” está necessariamente remetida a esse FENÔMENO existencial fundamental. STMSC: §43
Realidade como título ontológico remete ao ente intramundano. Se esse título servir para designar esse modo de ser, a manualidade e o ser simplesmente dado mostram-se como modos da realidade. Se, porém, essa palavra mantiver-se no significado legado a pela tradição {CH: hodierno}, ela significa o ser no sentido de coisas simplesmente dadas. Contudo, nem todo ser simplesmente dado é coisa simplesmente dada. A “natureza” que nos “envolve” é, na verdade, um ente intramundano que, no entanto, não apresenta o modo de ser do que está à mão e nem de algo simplesmente dado no modo de “coisidade da natureza”. Qualquer que seja a maneira de interpretar esse ser da “natureza”, todos os modos de ser dos entes intramundanos fundam-se, ontologicamente, na mundanidade do mundo e, assim, no FENÔMENO do ser-no-mundo. Disso resulta a seguinte compreensão: realidade não possui primazia no âmbito dos modos de ser dos entes intramundanos, assim como esse modo de ser não pode ser caracterizado adequadamente, do ponto de vista ontológico, como mundo ou presença (Dasein). STMSC: §43
Na ordem dos nexos ontológicos fundamentais, das referências existenciais e categorias possíveis, realidade remete ao FENÔMENO da cura. Que a realidade se funda ontologicamente no ser da presença (Dasein), isso não pode significar que o real só poderá ser em sisi mesmo aquilo que é se e enquanto existir a presença (Dasein). STMSC: §43
Se verdade encontra-se, justificadamente, num nexo originário com o ser, então o FENÔMENO da verdade remete ao âmbito {CH: não apenas, mas no meio} da problemática ontológica fundamental. Desse modo, já não se deveria encontrar esse FENÔMENO no seio da análise fundamental preparatória, na analítica da presença (Dasein)? Que nexo ôntico-ontológico a “verdade” estabelece com a presença (Dasein) e com sua determinação ôntica, que chamamos de compreensão de ser? Será que tomando isso por base poder-se-ia mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo por que ser correlaciona-se necessariamente com verdade e vice-versa? STMSC: §44
Esse questionamento não pode ser recusado. Na medida em que, com efeito, ser “correlaciona-se” com verdade, o FENÔMENO da verdade, embora não explicitado com esse título, já foi tema das análises anteriores. Doravante, trata-se de circunscrever explicitamente o FENÔMENO da verdade e fixar os problemas que inclui, levando em consideração o acirramento do problema do ser. Nessa altura, não caberia apenas resumir o que foi discutido anteriormente. A investigação toma agora um novo princípio {CH: aqui é o lugar próprio do salto que se introduz para dentro da presença (Dasein)}. STMSC: §44
A análise partirá do conceito tradicional de verdade e procurará expor os seus fundamentos ontológicos (a). A partir desses fundamentos, tornar-se-á visível o FENÔMENO originário da verdade. Dele pode-se, então, mostrar o caráter derivado do conceito tradicional de verdade (b). A investigação evidenciará que a questão sobre o modo de ser da verdade pertence necessariamente à questão sobre a “essência” da verdade. Daí se segue o esclarecimento do sentido ontológico da afirmação de que “verdade se dá” e do modo em que necessariamente “se deve pressupor” que a verdade “se dá” (c). STMSC: §44
Na questão sobre o modo de ser da adaequatio, apontar para a cisão entre conteúdo do juízo e ação de julgar não levará a discussão muito adiante. Com isso apenas se evidenciará que o esclarecimento do modo de ser do conhecimento ele mesmo torna-se inevitável. E preciso tentar uma análise do modo de ser do conhecimento e, ao mesmo tempo, visualizar o FENÔMENO da verdade que o caracteriza. Quando é que o FENÔMENO da verdade se torna expresso no próprio conhecimento? Sem dúvida, quando o conhecimento se mostra como verdadeiro. É a própria verificação de si mesmo que lhe assegura a sua verdade. No contexto fenomenal dessa verificação, portanto, é que a relação de concordância deve tornar-se visível. STMSC: §44
Enquanto ser-descobridor, o ser-verdadeiro só é, pois, ontologicamente possível com base no ser-no-mundo. Esse FENÔMENO, em que reconhecemos uma constituição fundamental da presença (Dasein), constitui o fundamento do FENÔMENO originário da verdade. É o que agora se vai perseguir mais profundamente. STMSC: §44
Ser-verdadeiro (verdade) diz ser-descobridor. Mas não será esta uma definição extremamente arbitrária da verdade? Com determinações conceituais tão violentas talvez se consiga desvincular a ideia de concordância do conceito de verdade. Esse sucesso duvidoso não estaria pagando o preço de condenar a antiga e “boa” tradição a um nada negativo? A definição aparentemente arbitrária, contudo, apenas traz uma interpretação necessária daquilo que a tradição mais antiga da filosofia pressentiu de maneira originária e chegou a compreender pré-fenomenologicamente. O ser-verdadeiro do logos enquanto apophansis é aletheuein, no modo de apophainesthai: deixar e fazer ver (descoberta) o ente em seu desencobrimento, retirando-o do encobrimento. A aletheia, identificada por Aristóteles nas passagens supracitadas com pragma, phainomena, indica as “coisas elas mesmas”, o que se mostra, o ente na modalidade de sua descoberta. Será por acaso que num dos fragmentos de Heráclito, que constituem os ensinamentos mais antigos da filosofia em que o logos é tratado expressamente, o FENÔMENO da verdade acima apresentado transpareça no sentido de descoberta (desencobrimento)? Contrapõem-se ao logos e a quem o diz e compreende aqueles que não compreendem. O logos é phrazon okos echei, ele diz como o ente se comporta. Para aqueles que não compreendem, porém, lanthanei, o que eles fazem permanece encoberto; epilanthanontai, eles esquecem, isto é, o ente se lhes encobre novamente. Pertence, pois, ao logos o desencobrimento, aletheia. A tradução pela palavra verdade e, sobretudo, as determinações teóricas de seu conceito encobrem o sentido daquilo que os gregos, numa compreensão pré-filosófica, estabeleceram como fundamento “evidente” do uso terminológico de aletheia. STMSC: §44
O que antes foi colocado numa interpretação dogmática do logos e aletheia recebe agora uma verificação fenomenal. A “definição” proposta da verdade não é um repúdio à tradição, mas uma apropriação originária: e tanto mais quando se conseguir provar que e como a teoria fundada no FENÔMENO originário da verdade precisou chegar à ideia de concordância. STMSC: §44
Ser-verdadeiro enquanto ser-descobridor é um modo de ser da presença (Dasein). O que possibilita esse descobrir em sisi mesmo deve ser necessariamente considerado “verdadeiro”, num sentido ainda mais originário. Os fundamentos ontológico-existenciais do próprio descobrir é que mostram o FENÔMENO mais originário da verdade. STMSC: §44
Entretanto, a análise anterior da mundanidade do mundo e dos entes intramundanos mostrou que a descoberta dos entes intramundanos funda-se na abertura de mundo. abertura, porém, é o modo fundamental da presença (Dasein) segundo o qual ela é o seu pre (das Da). A abertura constitui-se de disposição, de compreender e de fala, referindo-se, de maneira igualmente originária, ao mundo, ao ser-em e ao ser-si-mesmo. A estrutura da cura enquanto anteceder-a-si-mesma-no-já-estar-num-mundo-como-ser-junto-aos-entes-intramundanos, resguarda em si a abertura da presença (Dasein). Com ela e por ela é que se dá a descoberta. Por isso, somente com a abertura da presença (Dasein) é que se alcança o FENÔMENO mais originário da verdade. O que antes se demonstrou quanto à constituição existencial do pre (das Da) e com referência ao seu ser cotidiano referia-se ao FENÔMENO mais originário da verdade. Sendo essencialmente a sua abertura, abrindo e descobrindo o que se abre, a presença (Dasein) é essencialmente “verdadeira”. A presença (Dasein) é e está “na verdade”. Esse enunciado possui sentido ontológico. Não significa que onticamente a presença (Dasein) tenha sido introduzida sempre ou apenas algumas vezes “em toda a verdade”, mas indica que a abertura de seu ser mais próprio pertence à sua constituição existencial. STMSC: §44
1. A abertura em geral pertence essencialmente à constituição de ser da presença (Dasein). Abrange a totalidade da estrutura ontológica que se explicitou no FENÔMENO da cura. À cura pertence não apenas o ser-no-mundo, mas também o ser e estar junto aos entes intramundanos. Juntamente com o ser da presença (Dasein) e a sua abertura se dá, de maneira igualmente originária, a descoberta dos entes intramundanos. STMSC: §44
3. O projeto pertence à constituição de ser da presença (Dasein): do ser que se abre para o seu poder-ser. Como um em compreendendo, a presença (Dasein) pode compreender-se tanto a partir do “mundo” e dos outros entes quanto a partir de seu poder-ser mais próprio. Esta última possibilidade diz: a presença (Dasein) abre-se para si mesma em seu poder-ser mais próprio e como tal. Esta abertura própria mostra o FENÔMENO da verdade mais originária no modo da propriedade. A verdade da existência é a abertura mais originária e mais própria que o poder-ser da presença (Dasein) pode alcançar. Ela só poderá receber sua determinação ontológico-existencial no contexto de uma análise da propriedade da presença (Dasein). STMSC: §44
Da interpretação ontológico-existencial do FENÔMENO da verdade resultou, portanto: 1. Verdade no sentido mais originário é a abertura da presença (Dasein) à qual pertence a descoberta dos entes intramundanos. 2. A presença (Dasein) é e está, de modo igualmente originário, na verdade e na não-verdade. STMSC: §44
No horizonte da interpretação tradicional do FENÔMENO da verdade, essas proposições só podem ser {CH: assim nunca são entendidas} inteiramente entendidas quando se mostra que: 1. Compreendida como concordância, verdade tem sua origem na abertura, e isso através de uma modificação determinada. 2. O próprio modo de ser da abertura propicia que, primeiro, se faça visível sua modificação derivada e que vigore a explicação teórica da estrutura da verdade. STMSC: §44
O enunciado e sua estrutura, o como apofântico, fundam-se na interpretação e em sua estrutura, o como hermenêutico e, a seguir, no compreender, a abertura da presença (Dasein). A verdade, porém, vale como determinação privilegiada do enunciado assim derivado. Então, as raízes da verdade dos enunciados alcançam novamente a abertura do compreender. Além dessa indicação acerca da proveniência da verdade dos enunciados deve-se, no entanto, mostrar expressamente o FENÔMENO da concordância em seu caráter derivado. STMSC: §44
O FENÔMENO existencial da descoberta, que se funda na abertura da presença (Dasein), transforma-se em propriedade simplesmente dada, que ainda guarda em si um caráter de relação e, como tal, torna-se uma relação simplesmente dada. Verdade como abertura e ser-descobridor, no tocante ao ente descoberto, transforma-se em verdade como concordância entre seres simplesmente dados dentro do mundo. Com isso, fica demonstrado o caráter ontologicamente derivado do conceito tradicional de verdade. STMSC: §44
O que, porém, no ordenamento dos contextos de fundação ontológico-existenciais ocupa o último lugar é o que, onticamente, vem em primeiro lugar e aparece antes de tudo. Quanto à sua necessidade, esse fato funda-se no modo de ser da própria presença (Dasein). Ao empenhar-se na ocupação, a presença (Dasein) se compreende a partir do que vem ao encontro dentro do mundo. A descoberta inerente ao descobrimento se acha, inicialmente, no que se pronuncia dentro do mundo. Contudo, não apenas a verdade é encontrada como algo simplesmente dado. Também a compreensão de ser compreende, de início, todo ente como algo simplesmente dado. A mais próxima reflexão ontológica sobre a “verdade” que, de imediato, vem ao encontro onticamente, compreende o logos (enunciado) como logos tinos (enunciado sobre…, descoberta de…) e interpreta o FENÔMENO como algo simplesmente dado em sua possibilidade de ser simplesmente dado. Porque, no entanto, essa possibilidade é identificada com o sentido do ser em geral, a questão se esse modo de ser da verdade e sua estrutura que, de imediato, vêm ao encontro são originários ou não, não pode tornar-se viva. A própria compreensão de ser da presença (Dasein) que, de início, predomina e que, ainda hoje, não foi superada em seus fundamentos e explicitação, encobre o FENÔMENO originário da verdade. STMSC: §44
A resposta à questão do sentido do ser ainda precisa ser conquistada. Mas o que a análise fundamental da presença (Dasein), desenvolvida até aqui, preparou para a elaboração dessa questão? Mediante a liberação do FENÔMENO da cura, esclareceu-se a constituição de ser dos entes a cujo ser pertence uma compreensão de ser. O ser da presença (Dasein) foi, com isso, delimitado frente aos modos de ser (manualidade, ser simplesmente dado, realidade) que caracterizam os entes não dotados do caráter de presença (Dasein). Elucidou-se o próprio compreender, garantindo-se, pois, a transparência metodológica do procedimento de compreensão e interpretação do ser. STMSC: §44
Se, com a cura, obteve-se a constituição de ser originária da presença (Dasein), então, sobre essa base, também se pode produzir o conceito da compreensão de ser subsistente na cura, ou seja, deve-se poder circunscrever o sentido do ser. Mas será que com o FENÔMENO da cura é e está aberta a constituição ontológico-existencial mais originária da presença (Dasein)? Será que a multiplicidade estrutural, que se encontra no FENÔMENO da cura, oferece a totalidade mais originária do ser da presença (Dasein) fática? Será que a investigação feita até aqui já permitiu ver o todo da presença (Dasein)? STMSC: §44
O que se conquistou e o que se busca na análise preparatória da presença (Dasein)? O que achamos foi a constituição fundamental desse ente tematizado, isto é, o ser-no-mundo, cujas estruturas essenciais estão centradas na abertura. A totalidade desse todo estrutural desvelou-se como cura. Nela encontra-se inserido o ser da presença (Dasein). A análise desse ser tomou como fio condutor a existência que, numa concepção prévia, foi determinada como essência da presença (Dasein). Enunciado formalmente, isso significa: enquanto poder-ser que compreende, a presença (Dasein) é o que, sendo, está em jogo como seu próprio ser. O ente, que desse modo está sendo, é sempre eu mesmo. A elaboração do FENÔMENO da cura permitiu vislumbrar a constituição concreta da existência, ou seja, em seu nexo igualmente originário com a facticidade e a decadência da presença (Dasein). STMSC: §45
Desse modo, é urgente a tarefa de se colocar a presença (Dasein) como um todo em sua posição prévia. Isto significa, porém: desenvolver, ao menos uma vez, a questão do poder-ser desse ente como um todo. Na presença (Dasein), enquanto ela é, sempre se acha algo pendente, que ela pode ser e será. A esse pendente pertence o próprio “fim”. O “fim” do ser-no-mundo é a morte. Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível da presença (Dasein). Mas o estar-no-fim {CH: “ser”-para-o-fim} da presença (Dasein) na morte e, com isso, o ser desse ente como um todo, só poderá ser introduzido, de modo fenomenalmente adequado, na discussão da possibilidade de seu possível ser todo, caso se tenha conquistado um conceito ontológico suficiente, ou seja, existencial da morte. De acordo com o modo {CH: pensado de acordo com o modo de ser da presença (Dasein)} de ser da presença (Dasein), a morte {CH: ser do não ser} só é num ser-para-a-morte existenciário. A estrutura existencial desse ser evidencia-se na constituição ontológica de seu poder-ser todo. Toda a presença (Dasein) existente deixa-se, assim, trazer para a posição prévia existencial. Mas será que a presença (Dasein) também pode existir toda ela de modo próprio? Como se deve, então, determinar a propriedade da existência senão na perspectiva do existir de modo próprio? E de onde retirar o seu critério? Manifestamente, a própria presença (Dasein) deve propiciar antecipadamente em seu ser a possibilidade e a maneira de sua existência própria, uma vez que estas não lhe podem ser impostas, onticamente, e nem encontradas, ontologicamente, por acaso. O testemunho de um poder-ser próprio é fornecido pela consciência. Assim como a morte, esse FENÔMENO da presença (Dasein) exige uma interpretação existencial genuína. Esta leva à compreensão de que um poder-ser próprio da presença (Dasein) reside no querer-ter-consciência. Segundo seu sentido ontológico, porém, essa possibilidade existenciária tende para uma determinação existenciária no ser-para-a-morte. STMSC: §45
O fundamento ontológico originário da existencialidade da presença (Dasein) é a temporalidade. A totalidade das estruturas do ser da presença (Dasein) articuladas na cura só se tornará existencialmente compreensível a partir da temporalidade. A interpretação do sentido ontológico da presença (Dasein), contudo, não pode parar aí. A análise existencial e temporal desse ente necessita de confirmação concreta. As estruturas ontológicas da presença (Dasein), anteriormente conquistadas, devem ser, retroativamente, liberadas em seu sentido temporal. A cotidianidade desvela-se como modo da temporalidade. E, mediante essa retomada da análise preparatória dos fundamentos da presença (Dasein), o próprio FENÔMENO da temporalidade tornar-se-á mais transparente. Ela possibilitará compreender por que a presença (Dasein), no fundo de seu ser, é e pode ser histórica e, enquanto histórica, pode construir uma historiografia. STMSC: §45
Antes de se anular o problema da totalidade da presença (Dasein), devem buscar-se as respostas reclamadas por essas questões. A questão sobre a totalidade da presença (Dasein) que, do ponto de vista existenciário, emerge como a questão da possibilidade dela poder-ser-toda e, do ponto de vista existencial, como a questão da constituição de ser de “fim” e “totalidade”, abriga a tarefa de uma análise positiva dos fenômenos da existência até aqui postergados. No centro dessas considerações acha-se a caracterização ontológica do ser-para-o-fim em sentido próprio da presença (Dasein) e a conquista de um conceito existencial da morte. As investigações referidas a essas questões articulam-se da seguinte maneira: a possibilidade de se experimentar a morte dos outros e de se apreender toda a presença (Dasein) (§47); o pendente, o fim e a totalidade (§48); a delimitação da análise existencial da morte frente a outras interpretações possíveis do FENÔMENO (§49); prelineamento da estrutura ontológico-existencial da morte (§50); o ser-para-a-morte e a cotidianidade da presença (Dasein) (§51); o ser-para-o-fim cotidiano e o pleno conceito existencial da morte (§52); o projeto existencial de um ser-para-a-morte em sentido próprio (§53). STMSC: §46
A presença (Dasein) dos outros, com sua totalidade alcançada na morte, também constitui um não mais ser presença (Dasein), no sentido de não-mais-ser-no-mundo. Morrer não significa sair do mundo, perder o ser-no-mundo? Levando-se ao extremo, o não-mais-ser-no-mundo do morto ainda é também um ser, na acepção do ser simplesmente dado de uma coisa corpórea. Na morte dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso FENÔMENO ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao passar do modo de ser da presença (Dasein) (da vida) para o modo de não mais ser presença (Dasein). O fim de um ente, enquanto presença (Dasein), é o seu princípio como mero ser simplesmente dado. STMSC: §47
A possibilidade de substituição fracassa inteiramente quando se trata de substituir a possibilidade de ser, que constitui o chegar-ao-fim da presença (Dasein) e, como tal, lhe confere totalidade. Ninguém pode retirar do outro sua morte. Decerto, pode-se “morrer por outrem”. No entanto, isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo outro “numa coisa e causa determinada”. Esse morrer por…, no entanto, jamais pode significar que a morte do outro lhe tenha sido, de alguma maneira, retirada. Cada presença (Dasein) deve, ela mesma e a cada vez, assumir a sua própria morte. Na medida em que “é”, a morte é, essencialmente e cada vez, minha. E de fato, significa uma possibilidade ontológica singular, pois coloca totalmente em jogo o ser próprio de cada presença (Dasein). No morrer, evidencia-se que, ontologicamente, a morte {CH: a remissão da presença (Dasein) à morte; a própria morte = seu advento – ocorrência, o morrer} se constitui pela existência e por ser, cada vez, minha. O morrer não é, de forma alguma, um dado, mas um FENÔMENO a ser compreendido existencialmente num sentido privilegiado, o qual deve ser delimitado mais de perto. STMSC: §47
Se, no entanto, o “findar”, enquanto morrer, constitui a totalidade da presença (Dasein), o próprio ser da totalidade deve ser concebido como FENÔMENO existencial de cada presença (Dasein) singular. No “findar” e no ser-todo da presença (Dasein) assim constituído, não se dá nenhuma possibilidade de substituição. O recurso proposto, que toma a morte dos outros como tema sucedâneo para a análise da totalidade, não reconhece esse fato existencial. STMSC: §47
Assim, a tentativa de tornar a presença (Dasein) fenomenalmente acessível em seu todo malogra mais uma vez. Entretanto, o resultado dessas reflexões não é negativo. Pois estas se realizaram, orientando-se, embora de modo grosseiro, pelos fenômenos. A morte mostrou-se como um FENÔMENO existencial. Isto obriga a investigação a se conduzir de maneira puramente existencial por cada presença (Dasein) singular. A fim de se analisar a morte, enquanto morrer, resta apenas a alternativa de se colocar o FENÔMENO num conceito puramente existencial ou então de se renunciar à compreensão ontológica. STMSC: §47
Partindo-se da presente discussão sobre a possibilidade de uma apreensão ontológica da morte, também tornou-se claro, sem nem se notar, que a intromissão de entes, dotados de outro modo de ser (ser simplesmente dado ou ser-vivo), ameaçam confundir a interpretação do FENÔMENO e a primeira posição prévia a ele adequada. Só se poderá encontrar o FENÔMENO quando se tiver procurado, para a análise, uma determinação ontológica suficiente dos fenômenos constitutivos de fim e totalidade. STMSC: §47
A tentativa de se alcançar uma compreensão da totalidade, dotada do caráter de presença (Dasein), tomando-se como ponto de partida um esclarecimento do ainda-não e passando-se pela caracterização do fim, não conduz para a sua meta. Ela só mostrou negativamente que o ainda-não, que cada presença (Dasein) é, recusa sua interpretação como o pendente. O estar-no-fim se apresenta como uma determinação inadequada do fim para o qual a presença (Dasein) é, em existindo. No entanto, a consideração desenvolvida deveria ter explicitado também a necessidade de reverter seus passos. A caracterização positiva do FENÔMENO em questão (ainda-não ser, findar, totalidade) só terá êxito em se orientando, de forma precisa, no sentido da constituição ontológica da presença (Dasein). Essa precisão deverá ser assegurada negativamente contra desvios, mediante a compreensão da pertinência regional das estruturas de fim e totalidade que, ontologicamente, sempre resistem à presença (Dasein). STMSC: §48
A interpretação analítico-existencial positiva da morte e de seu caráter de fim deve obedecer ao fio condutor da constituição fundamental da presença (Dasein) já conquistada, ou seja, ao FENÔMENO da cura. STMSC: §48
No sentido mais amplo, a morte é um FENÔMENO da vida. Deve-se entender vida {CH: quando se entende vida humana. Caso contrário não – “mundo”} como uma espécie de ser ao qual pertence um ser-no-mundo. Do ponto de vista ontológico, esse modo de ser pode fixar-se à presença (Dasein) apenas numa orientação privativa. A presença (Dasein) também pode ser considerada como mera vida. Para o questionamento bio-fisiológico, a presença (Dasein) desliza para o âmbito ontológico, que conhecemos como mundo animal e vegetal. Nesse campo, pode-se alcançar, mediante uma constatação ôntica, dados e estatísticas acerca da duração da vida das plantas, dos animais e dos homens. Podemos reconhecer nexos entre duração da vida, multiplicação e crescimento. Podemos pesquisar as “espécies” de morte, as causas, “instalações e meios” de seu surgimento. STMSC: §49
Essa pesquisa ôntico-biológica da morte tem por base uma problemática ontológica. Permanece em questão como a essência da morte se determina a partir da essência ontológica da vida. De certo modo, a investigação ôntica da morte sempre já se decidiu sobre essa questão. Nela atuam conceitos sobre a vida e a morte, mais ou menos esclarecidos. Estes necessitam de um prelineamento através da ontologia da presença (Dasein). No âmbito da ontologia da presença (Dasein), que ordena previamente uma ontologia da vida, a análise existencial da morte subordina-se a uma caracterização da constituição fundamental da presença (Dasein). Chamamos de finar o findar do ser vivo. A presença (Dasein) também “possui” uma morte fisiológica, própria da vida. Embora esta não possa ser isolada onticamente, determinando-se pelo seu modo originário de ser, a presença (Dasein) também pode findar sem propriamente morrer e, por outro lado, enquanto presença (Dasein), não pode simplesmente finar. Chamamos esse FENÔMENO intermediário de deixar de viver. Morrer, por sua vez, exprime o modo de ser em que a presença (Dasein) é para a sua morte. Assim, pode-se dizer: a presença (Dasein) nunca fina. A presença (Dasein) só pode deixar de viver na medida em que morre. A investigação médico-biológica do deixar de viver logra resultados que, do ponto de vista ontológico, podem também ser relevantes, desde que se tenha assegurado a orientação fundamental para uma interpretação existencial da morte. Ou será que, do ponto de vista médico, até a doença e a morte devem ser concebidas primariamente como fenômenos existenciais? STMSC: §49
A análise ontológica do ser-para-o-fim, por outro lado, não concebe previamente nenhum posicionamento existenciário frente à morte. Caso se determine a morte como “fim” da presença (Dasein), isto é, do ser-no-mundo, ainda não se poderá decidir onticamente se, “depois da morte” um outro modo de ser, seja superior ou inferior, é ainda possível, se a presença (Dasein) “continua vivendo” ou ainda se ela é “imortal”, sobrevivendo a si mesma. Também nada se poderá decidir onticamente a respeito do “outro mundo” e de sua possibilidade e nem tampouco sobre “este mundo”, no sentido de se propor normas e regras “edificantes” de comportamento frente à morte. Interpretando-se o FENÔMENO meramente como algo que se instala na presença (Dasein) enquanto possibilidade ontológica de cada presença (Dasein) singular, a análise da morte permanecerá inteiramente “neste mundo”. A questão sobre o que há depois da morte apenas terá sentido, razão e segurança metodológica caso se conceba a morte em toda sua essência ontológica. Aqui não se poderá tampouco decidir se essa questão apresenta uma questão teórica possível. A interpretação ontológica da morte ligada a este mundo precede toda especulação ôntica referida ao outro mundo. STMSC: §49
Numa ordem metodológica, a análise existencial precede as questões da biologia, psicologia, teodiceia e teologia da morte. Do ponto de vista ôntico, seus resultados mostram o caráter formal e vazio de toda caracterização ontológica. Isso, porém, não deve cegar a visão para a riqueza e complexidade do FENÔMENO. A morte é uma possibilidade privilegiada da presença (Dasein). Ora, se a presença (Dasein) nunca pode tornar-se acessível como algo simplesmente dado porque pertence à sua essência a possibilidade de ser de modo próprio, então é tanto menos lícito esperar que a estrutura ontológica da morte possa resultar de uma mera leitura. STMSC: §49
As considerações feitas a respeito do pendente, do fim e totalidade resultaram na necessidade de se interpretar o FENÔMENO da morte como ser-para-o-fim, a partir da constituição fundamental da presença (Dasein). Somente assim é que se pode esclarecer como, na própria presença (Dasein) e de acordo com sua estrutura ontológica, o ser-para-o-fim possibilita o ser-todo da presença (Dasein). Mostrou-se a cura como constituição fundamental da presença (Dasein). O significado ontológico desse termo exprime-se na seguinte “definição”: já anteceder-a-si-mesma-em (um mundo) como ser-junto-aos entes (intramundanos) que vêm ao encontro. Com isso, explicitam-se os caracteres fundamentais do ser da presença (Dasein): no anteceder-a-si-mesma, a existência, no já-ser-em…, a facticidade, no ser-junto-a, a decadência. Se, portanto, a morte pertence, num sentido privilegiado, ao ser da presença (Dasein), ela (e o ser-para-o-fim) devem poder ser determinados por esses caracteres. STMSC: §50
De início, mesmo que à guisa de prelineamento, cabe esclarecer como existência, facticidade e decadência da presença (Dasein) desvelam-se no FENÔMENO da morte. STMSC: §50
A delimitação da estrutura existencial do ser para o fim serve para a elaboração de um modo de ser da presença (Dasein) em que ela, enquanto presença (Dasein), pode ser toda. Que a presença (Dasein) cotidiana já é para o seu fim, ou seja, que ela constantemente se debate com sua morte, embora “fugindo”, mostra que este fim, que determina e conclui o seu ser-toda, nada tem a ver com o por fim deixar de viver da presença (Dasein). Na presença (Dasein), enquanto o que está sendo para a sua morte, já está incluído o ainda-não mais extremo de si mesma, sobre o qual repousam todos os demais. Por isso, a conclusão formal do ainda-não da presença (Dasein), interpretado de forma ontologicamente inadequada como pendente, não é justa devido à sua não-totalidade. Do mesmo modo que a estrutura da cura, o FENÔMENO do ainda-não, relevado do anteceder-a-si-mesmo, não é uma instância oposta ao ser-todo possivelmente existente, pois é o anteceder-a-si-mesmo que possibilita este ser para o fim. O problema da possibilidade de ser-todo desse ente, que cada vez nós mesmos somos, justifica-se caso a cura, entendida como constituição fundamental da presença (Dasein), se “conecte” com a morte, enquanto possibilidade mais extrema desse ente. STMSC: §52
É, no entanto, na espera que a presença (Dasein) se comporta frente a algo possível em sua possibilidade. Para o que está na tensão de expectativa, o possível pode vir ao encontro sem obstáculos ou restrições, em seu “talvez, talvez não ou por fim sim”. Mas não será que, assim, a análise do FENÔMENO da espera se depararia com o mesmo modo de ser do possível, já entendido como empenho por alguma coisa numa ocupação? Toda espera compreende e “tem” o seu possível comprometido com o se, o como e o quando ele se realizará enquanto algo simplesmente dado. Esperar não é apenas desviar ocasionalmente o olhar do possível para a sua realização mas é, em sua essência, esperar por ela. Também na espera se dá um abandono do possível e um tomar pé no real, no qual se espera o esperado. É a partir do real e com vistas a ele que o possível é absorvido no real pela espera. STMSC: §53
A auto-interpretação cotidiana da presença (Dasein) conhece como voz da consciência aquilo que a seguir apresentaremos como testemunho. Que o “fato” da consciência seja questionado, que diversas sejam as avaliações de sua função de instância para a existência da presença (Dasein) e que sejam múltiplas as interpretações do que “ela diz”, tudo isso deveria levar-nos a renunciar a esse FENÔMENO. No entanto, justamente a “dubiedade” desse fato e de sua interpretação provam que aí reside um FENÔMENO originário da presença (Dasein). A presente análise se coloca a consciência na posição prévia de tema de uma investigação {CH: investigação agora mais radical a partir da essência do filosofar} puramente existencial, com vistas à ontologia fundamental. STMSC: §54
Numa primeira aproximação, é preciso perseguir os fundamentos e estruturas existenciais da consciência, tornando-a visível como FENÔMENO da existência, com base na constituição de ser desse ente até aqui obtida. Esta análise ontológica da consciência antecede toda descrição psicológica de suas vivências e sua classificação, estando também fora de uma “explicação” biológica, ou seja, de uma dissolução do FENÔMENO. Também não é menor a distância que a separa de uma interpretação teológica da consciência moral (des Geivissens) ou mesmo da sua consideração com vistas a provar a existência de Deus ou uma consciência (Bewusstsein) “imediata” de Deus. STMSC: §54
Entretanto, o resultado dessa investigação limitada da consciência não deve ser exagerado, nem diminuído e nem deturpado. Como FENÔMENO da presença (Dasein), a consciência não é um fato que ocorre e que, por vezes, simplesmente se dá. Ela “é” e “está” apenas no modo de ser da presença (Dasein) e, como fato, só se anuncia com e na existência fática. A exigência de uma “prova empírico-indutiva” para o “fato” da consciência e para a legitimidade de sua “voz” significa uma deturpação ontológica desse FENÔMENO. Dessa deturpação, no entanto, participa toda crítica da consciência que a interpreta como um fato que, às vezes, ocorre e que “não é e nem pode ser universalmente constatado”. O fato da consciência não se deixa, de forma alguma, submeter a tais provas e objeções. Isso não constitui uma deficiência, mas somente a característica de sua especificidade ontológica, que difere do ser simplesmente dado no mundo circundante. STMSC: §54
A consciência dá “algo” a compreender, ela abre. Dessa caracterização formal surge a indicação de se reconduzir o FENÔMENO para a abertura da presença (Dasein). Essa constituição fundamental daquele ente que nós mesmos somos constitui-se de disposição, compreensão, decadência e fala. A análise mais profunda da consciência a desvela como apelo. O apelo é um modo de fala. O apelo da consciência possui o caráter de interpelação da presença (Dasein) para o seu poder-ser-si-mesmo mais próprio e isso no modo de fazer apelo para o seu ser e estar em dívida mais próprio. STMSC: §54
Essa interpretação existencial dista, necessariamente, da compreensão ôntico-cotidiana, embora elabore os fundamentos ontológicos do que a interpretação vulgar da consciência sempre compreendeu em determinados limitese conceituou numa “teoria” da consciência. Nesse sentido, a interpretação existencial precisa submeter-se ao crivo de uma crítica da interpretação vulgar da consciência. E a partir da elaboração do FENÔMENO pode-se alcançar em que medida ele testemunha um poder-ser próprio da presença (Dasein). Ao apelo da consciência corresponde a possibilidade de uma escuta. O compreender do interpelar desvela-se como um querer-ter-consciência. Nesse FENÔMENO, porém, dá-se a escolha existenciária que escolhe um ser-si-mesmo denominado, em correspondência à sua estrutura existencial, de decisão. Com isso temos a articulação das análises desse capítulo: os fundamentos ontológico-existenciais da consciência (§55); o caráter de apelo da consciência (§56); a consciência como apelo da cura (§57); a compreensão do interpelar e a dívida (§58); a interpretação existencial da consciência e sua interpretação vulgar (§59); a estrutura existencial do poder-ser próprio, testemunhado na consciência (§60). STMSC: §54
Com essa caracterização da consciência, porém, esboçou-se apenas o horizonte fenomenal para a análise de sua estrutura existencial. Não é que se compare o FENÔMENO a um apelo mas, enquanto fala, o FENÔMENO é compreendido a partir da abertura constitutiva da presença (Dasein). Esta consideração evita, desde o início, o caminho que imediatamente se oferece para uma interpretação da consciência: aquele em que se reconduz a consciência a uma das faculdades da alma, entendimento, vontade ou sentimento, ou a explica como uma mistura desses elementos. Face a um FENÔMENO como a consciência {CH: a saber, de sua proveniência no ser-si-mesmo; mas não será que até agora não passou de uma afirmação?}, salta logo aos olhos a insuficiência ontológico-antropológica da classificação das faculdades da alma ou dos atos pessoais. STMSC: §55
O apelo dispensa qualquer verbalização. Ele não vem primeiro à palavra e, não obstante, nada permanece obscuro e indeterminado. A fala da consciência sempre e apenas se dá em silêncio. Não somente nada perde em termos de percepção, mas até leva a presença (Dasein) interpelada e apelada à silenciosidade de si mesma. A falta de verbalização do que, no apelo, se apela não remete o FENÔMENO à indeterminação de uma voz misteriosa, mas mostra apenas que a compreensão não deve se apoiar na expectativa de uma comunicação ou de algo parecido. STMSC: §56
A consciência faz apelo ao si-mesmo da presença (Dasein) para sair da perdição no impessoal. O si-mesmo interpelado permanece indeterminado e vazio em seu conteúdo. O apelo ultrapassa o que a presença (Dasein), numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreende a seu respeito, a partir da interpretação das ocupações. Não obstante, o si-mesmo é alcançado de modo unívoco e inconfundível. Não apenas o apelo considera o interpelado “sem levar em conta a sua pessoa” como quem apela se mantém numa surpreendente indeterminação. Ele não somente recusa uma resposta às perguntas sobre o nome, a posição, a origem e consideração. Embora jamais se descaracterize, quem apela também não oferece a menor possibilidade de tornar o apelo familiar para uma compreensão da presença (Dasein) orientada “mundanamente”. Quem apela o apelo – isso pertence à sua caracterização fenomenal – mantém afastada de si toda possibilidade de tornar-se conhecido. É contra o seu modo de ser deixar-se atrair pela observação e discussão. A indeterminação e impossibilidade de determinação próprias de quem apela não é um nada negativo, mas um traço positivo. Ele anuncia que quem apela só se empenha em fazer apelo…, que ele só escuta assim e, por fim, que ele não aceita tagarelices a seu respeito. Mas então o FENÔMENO não exigiria que se abandonasse a questão de quem é que apela? Sim, assim seria quando se escuta existenciariamente o fato do apelo da consciência. Não, porém, para a análise existencial da facticidade do apelo e da existencialidade da escuta. STMSC: §57
Face a essa precipitação metodológica, deve-se não apenas manter o dado fenomenal – que o apelo nasce em mim, provindo de mim e por sobre mim – mas também ater-se ao prelineamento ontológico do FENÔMENO enquanto FENÔMENO da presença (Dasein). Somente a constituição existencial desse ente pode oferecer o fio condutor para a interpretação do modo de ser desse “se” apela. STMSC: §57
Não se pode contestar a legitimidade de tais ponderações. Pode-se exigir de uma interpretação da consciência que nela “se” reconheça o FENÔMENO questionado no modo em que ele é cotidianamente experimentado. Satisfazer essa exigência também não significa reconhecer a compreensão ôntica e vulgar da consciência como instância primordial de uma interpretação ontológica. Por outro lado, porém, as ponderações referidas são ainda prematuras posto que a análise da consciência que lhes conviria ainda não se concluiu. Buscou-se até agora reconduzir a consciência, enquanto FENÔMENO da presença (Dasein), à constituição ontológica desse ente. Isso serve como preparação para a tarefa de tornar a consciência compreensível enquanto testemunho de seu poder-ser mais próprio, constitutivo da própria presença (Dasein). STMSC: §57
O que a consciência testemunha só poderá adquirir plena determinação caso se delimite, com clareza e suficiência, o caráter que deve ter o ouvir que genuinamente corresponde ao apelo. A compreensão própria, aquela que “segue” o apelo, não é um mero acréscimo do FENÔMENO da consciência, um processo que poderia ou não advir. Só se pode apreender a vivência plena da consciência, partindo da e junto com a compreensão do interpelar. Se a própria presença (Dasein) é em si mesma sempre ao mesmo tempo quem apela e o interpelado, então quando não se dá ouvidos ao apelo, quando não se dá ouvidos a si, está em jogo um modo determinado de ser da presença (Dasein). Do ponto de vista existencial, um apelo solto no ar, ao qual “nada se segue”, é uma ficção impossível. No modo de ser da presença (Dasein), o “que nada segue” significa algo positivo. STMSC: §57
Não seria, contudo, mais fácil e seguro responder à questão do que diz o apelo, indicando-se “simplesmente” o que comumente se ouve ou se deixa de ouvir em todas as experiências da consciência, ou seja, que o apelo endereça-se à presença (Dasein) como “o que está em dívida” ou, como no caso da consciência que adverte, remete a uma “dívida” possível ou ainda, enquanto “boa” consciência, confirma não “ter ciência de nenhuma dívida”? Se ao menos essa “dívida”, experimentada unanimemente, não recebesse tantas e variadas determinações nas experiências e interpretações da consciência! Mas mesmo que o sentido dessa “dívida” pudesse ser apreendido univocamente, o conceito existencial desse ser e estar em dívida permaneceria obscuro. Se, no entanto, a própria presença (Dasein) se endereça a si como “estando em dívida”, de onde provém a ideia de dívida senão da interpretação do ser da presença (Dasein)? Mas, novamente, apresenta-se a questão: Quem diz que somos e estamos em dívida e o que significa dívida? A ideia de dívida não pode surgir arbitrariamente e ser imposta à presença (Dasein). Caso seja possível uma compreensão da essência da dívida, então essa possibilidade já deve estar esboçada na presença (Dasein). Como podemos encontrar a pista capaz de nos levar ao desvelamento do FENÔMENO? Todas as investigações ontológicas de fenômenos como dívida, consciência, morte devem apoiar-se naquilo que a interpretação cotidiana da presença (Dasein) “diz” a seu respeito. No modo de ser decadente da presença (Dasein) acontece igualmente que, na maior parte das vezes, sua interpretação se “orienta” impropriamente, não indo ao encontro da “essência”, porque lhe é estranho o questionamento ontológico originário. Mas em toda falsa visão se dá igualmente uma indicação da “ideia” originária do FENÔMENO. De onde, porém, tomamos o critério para o sentido existencial originário da “dívida”? De que essa “dívida” surge como predicado do “eu sou”. Será que no ser da presença (Dasein) como tal subsiste algo que, na interpretação imprópria, é compreendido como “dívida”, de tal modo que, existindo faticamente, também já se é e está em dívida? STMSC: §58
Deixemos de lado como se originam tais exigências e de que modo, com base nessa origem, se deve conceber o seu caráter de exigência e lei. Em todo caso, o ser e estar em dívida, no último sentido mencionado de violação de uma “exigência moral”, é um modo de ser da presença (Dasein). Isso vale igualmente para o ser e estar em dívida enquanto um “tornar-se passível de punição”, enquanto “ter dívidas” e enquanto “ser aquele a que se deve isso ou aquilo…”, que são também comportamentos da presença (Dasein). Entender o “estar carregado de culpa moral” como uma “qualidade” da presença (Dasein) não diz nada. Ao contrário, com isso apenas se revela que a caracterização é insuficiente para delimitar, ontologicamente, esse modo de “determinação do ser” da presença (Dasein) frente a outros comportamentos. O conceito de culpa moral acha-se também tão pouco esclarecido, ontologicamente, que puderam impor-se e prevalecer interpretações desse FENÔMENO cujo conceito inclui ou até se deriva das ideias de punição e do ter dívidas junto a… Com isso, a “dívida” retorna forçosamente ao âmbito das ocupações no sentido de uma prestação de contas. STMSC: §58
O esclarecimento do FENÔMENO da dívida, que não está necessariamente remetido ao “ter dívidas” e à violação do direito, só pode ter êxito caso se coloque em questão o princípio do ser e estar em dívida da presença (Dasein), ou seja, caso se conceba a ideia de “dívida” a partir do modo de ser da presença (Dasein). STMSC: §58
Já para a interpretação ontológica do FENÔMENO da dívida não são suficientes os conceitos, aliás pouco transparentes, de privação e falta, embora estes permitam uma aplicação abrangente quando apreendidos com suficiência formal. Nada impede mais uma aproximação do FENÔMENO existencial da dívida do que orientar-se pela ideia do mal, do malum como privatio boni. Sobretudo porque o bonun e a privatio possuem a mesma proveniência ontológica que a ontologia do ser simplesmente dado, que se aplica igualmente à ideia de “valor” dela “haurida”. STMSC: §58
Embora o apelo nada dê a conhecer, ele não é meramente crítico, sendo também positivo; ele abre o poder-ser mais originário da presença (Dasein) como ser e estar em dívida. A consciência revela-se, portanto, como testemunho pertencente ao ser da presença (Dasein) onde ela apela a si mesma em seu poder-ser mais próprio. Será que esse poder-ser em sentido próprio assim testemunhado pode ser determinado existencialmente de forma ainda mais concreta? Antes de mais nada surge a seguinte pergunta: Enquanto não desaparecer a estranheza de aqui se ter interpretado unilateralmente a consciência pela constituição da presença (Dasein), passando-se apressadamente por cima de todos os dados conhecidos da interpretação vulgar da consciência, será que a explicitação do poder-ser testemunhado na presença (Dasein) pode reivindicar suficiente evidência? Será que na presente interpretação ainda se pode reconhecer o FENÔMENO da consciência tal como ele é “realmente”? Não será que se deduziu, com demasiada ingenuidade, da constituição ontológica da presença (Dasein) uma ideia de consciência? STMSC: §58
A consciência é o apelo da cura que, a partir da estranheza do ser-no-mundo, faz apelo para a presença (Dasein) assumir o seu poder ser e estar em dívida mais próprio. O querer-ter-consciência é o compreender que corresponde ao apelar. Ambas as determinações não podem ser meramente harmonizadas com a interpretação vulgar da consciência. Elas parecem, inclusive, contradizê-la diretamente. Chamamos de vulgar a interpretação da consciência porque, na caracterização do FENÔMENO e de sua “função”, ela se atém à consciência impessoal determinando, impessoalmente, como ela a obedece ou não. STMSC: §59
Desse modo, no que respeita ao modo vulgar de ser da presença (Dasein), nada garante que se tenha conquistado um horizonte ontológico adequado para a interpretação e para a teoria da consciência que dela surgem. Entretanto, de algum modo, a experiência vulgar da consciência deve alcançar pré-ontologicamente o FENÔMENO. Daí decorre que, por um lado, a interpretação cotidiana da consciência não pode servir como critério último de “objetividade” para uma análise ontológica. Esta, por sua vez, não possui nenhum direito para desconsiderar a compreensão cotidiana da consciência e passar por cima das teorias antropológicas, psicológicas e teológicas nela assentadas. Caso a análise existencial do FENÔMENO da consciência tenha liberado o seu enraizamento ontológico, então as interpretações vulgares devem tornar-se compreensíveis a partir deste enraizamento e não no seu equívoco e encobrimento do FENÔMENO. Todavia, como no contexto problemático desse tratado a análise da consciência encontra-se unicamente a serviço da questão ontológica fundamental, deve ser suficiente apenas uma indicação para os problemas essenciais da caracterização do nexo entre a interpretação existencial e a vulgar. STMSC: §59
O que a interpretação vulgar objetaria à interpretação da consciência como o fazer apelo da cura em seu ser e estar em dívida resume-se nos seguintes pontos: 1. A consciência possui, essencialmente, uma função crítica; 2. A consciência fala sempre com relação a um determinado ato realizado ou desejado; 3. Do ponto de vista da experiência, a “voz” nunca está tão enraizada no ser da presença (Dasein); 4. A interpretação não levou em conta as formas fundamentais do FENÔMENO, quais sejam, a “má” e a “boa” consciência, a que “censura” e a que “adverte”. STMSC: §59
Mas será que o “fato” de a voz vir depois exclui que, no fundo, é uma apelação? Que se apreenda a voz como aquilo que segue ao estímulo da consciência ainda não demonstra uma compreensão originária do FENÔMENO. E se a culpabilização fática e originária fosse apenas ocasião para o apelo fático da consciência? E se a interpretação caracterizada da “má” consciência só estivesse a meio caminho? A posição ontológica prévia a que o FENÔMENO é levado nesta interpretação esclarece que é assim. A voz é algo que emerge, que tem seu lugar na sequência de vivências simplesmente dadas e que sucede à vivência do ato. Mas nem o apelo, nem o ato e nem a culpa são ocorrências dotadas do caráter de um ser simplesmente dado que ocorre. O apelo possui o modo de ser da cura. Nele, a presença (Dasein) “é e está” antecedendo-a-si-mesma, de tal modo que ela retorna, ao mesmo tempo, para o seu estar-lançado. Somente partindo-se imediatamente da suposição de que a presença (Dasein) é uma sequência de nexos de vivências é que se pode considerar a voz como algo que vem depois, como alguma coisa posterior e, assim, necessariamente o que remonta para trás. A voz, sem dúvida, re-clama mas, ultrapassando o ato, reclama o ser e estar em dívida que, lançado, é “anterior” a toda e qualquer culpabilização. A reclamação, ao mesmo tempo, faz apelo ao ser e estar em dívida como algo a ser assumido na própria existência de tal modo que o ser-culpado propriamente existenciário “segue” o apelo e não o contrário. No fundo, a má consciência é tão pouco uma mera censura retroativa que ela reclama, sobretudo, numa referência antecipadora ao estar-lançado. A sucessão de vivências que decorrem uma após a outra não apresenta a estrutura fenomenal de existência. STMSC: §59
Se já a caracterização da “má” consciência não alcança o FENÔMENO originário, isso vale ainda mais no que diz respeito à “boa” consciência, mesmo que se a considere uma forma autônoma ou fundada essencialmente sobre a “má”. Em correspondência ao “ser-mau” da “má” consciência, a “boa” consciência deveria anunciar um “ser-bom”. Vê-se, com facilidade, que assim a consciência, antes tomada como “emanação de uma força divina”, torna-se agora escrava do farisaísmo. Cabe aos homens dizer: “eu sou bom”; quem pode dizê-lo a não ser o bom? E quem haveria de querer confirmá-lo senão o bom? Nessa consequência impossível da ideia de boa consciência, porém, aparece apenas que a consciência apela por um ser e estar em dívida. STMSC: §59
Para escapar de tais consequências, buscou-se interpretar a “boa” consciência como privação da “má”, e determiná-la como “falta vivenciada da má consciência”. Ela seria, pois, uma experiência do não aparecimento do apelo, ou seja, eu nada teria de que me acusar. Mas como se “vivência” essa “falta”? Essa pretensa vivência não é, de modo algum, a experiência do apelo mas sim um asseguramento de que um ato atribuído à presença (Dasein) não foi por ela cometido e que, por isso ela não é culpada. Assegurar-se de não ter feito não possui, de forma alguma, o caráter de FENÔMENO da consciência. Ao contrário, esse assegurar-se pode significar um esquecimento da consciência, isto é, um sair da possibilidade de poder ser interpelado. Esta “certeza” traz consigo a repressão tranquilizadora do querer-ter-consciência, ou seja, do compreender do ser e estar, constante e propriamente, em dívida. A “boa” consciência não é nem uma forma autônoma nem uma forma derivada de consciência, isto é, não é absolutamente um FENÔMENO da consciência. STMSC: §59
Porque a fala sobre a “boa” consciência nasce da experiência da consciência feita pela presença (Dasein) cotidiana, isto apenas mostra que ela, mesmo falando de “má” consciência, no fundo, não atinge o FENÔMENO. Pois, de fato, a ideia da “má” consciência orienta-se pela ideia da “boa” consciência. A interpretação cotidiana mantém-se na dimensão do cálculo e compensação de “culpa” e “não culpa” das ocupações. E nesse horizonte que se “vivência” a voz da consciência. STMSC: §59
O com a caracterização da originariedade das ideias de uma “má” a e “boa” consciência já se decidiu também acerca da distinção entre uma consciência que censura retroativamente e adverte previamente. Na verdade, a ideia da consciência que adverte parece ser a que mais se aproxima do FENÔMENO do fazer apelo… Com esta, ela tem a em comum o caráter de referência prévia. No entanto, essa concordância não passa de aparência. A experiência de uma consciência que adverte só vê a voz orientada para o ato da vontade, frente ao qual ela deve resguardar-se. Enquanto interdição do que se quer, a advertência só é possível porque o apelo “que adverte” almeja o poder-ser da presença (Dasein), ou seja, a compreensão do ser e estar em dívida aonde “o que se quer” pode romper-se. A consciência que adverte tem a função de regulamentar, momentaneamente, o ficar livre de culpabilizações. A experiência de uma consciência “que adverte” apenas revê a tendência de apelo da consciência, quando ela permanece nos limites da compreensibilidade do impessoal. STMSC: §59
Esta última reflexão reside em que a experiência cotidiana da consciência não conhece nenhum fazer apelo para o ser e estar em dívida. Isso deve ser admitido. Mas será que, com isso, a experiência cotidiana da consciência já garante que nela se escutou todo o conteúdo possível do apelo da voz da consciência? Segue-se, portanto, que as teorias da consciência fundadas na sua experiência vulgar asseguraram um horizonte ontológico adequado para a análise do FENÔMENO? Será que, ao invés, não se mostra mais um modo de ser essencial da presença (Dasein), a decadência, no qual esse ente, de início e na maior parte das vezes, se compreende, onticamente, a partir das ocupações, determinando, ontologicamente, o ser no sentido de ser simplesmente dado? Daí decorre um duplo encobrimento: na maioria das vezes, a teoria vê uma sucessão, indeterminada quanto ao seu modo de ser, de vivências ou “processos psíquicos”. A experiência vem ao encontro da consciência como um juiz e admoestador com o qual a presença (Dasein) negocia os seus cálculos. STMSC: §59
Se, porém, para o apelo, não é primária a dependência de uma culpa de fato “dada” ou de um ato culpável que de fato se dá na vontade, desse modo, a consciência que “censura” e “adverte” não constitui função originária do apelo, então são infundadas as objeções mencionadas de que a interpretação existencial desconsidera “essencialmente” o desempenho crítico da consciência. Essa objeção também nasce de uma visão autêntica, dentro de certos limites, do FENÔMENO. Pois, com efeito, no conteúdo do apelo não se pode demonstrar o que a voz aconselha e oferece “positivamente”. STMSC: §59
De acordo com sua essência ontológica, a decisão é sempre decisão de uma determinada presença (Dasein) fática. A essência desse ente é sua existência. Decisão só “existe” enquanto a decisão que se projeta num compreender. Mas em virtude de que a presença (Dasein) se decide na decisão? Para que ela deve se decidir? Somente o decisivo pode dar a resposta. Seria uma total incompreensão do FENÔMENO da decisão pretender que ele seja meramente um apoderar-se das possibilidades apresentadas e recomendadas. O decisivo é justamente o projeto e a determinação que abrem as possibilidades faticamente dadas a cada vez. A indeterminação que caracteriza cada poder-ser faticamente lançado da presença (Dasein) pertence necessariamente à decisão. A decisão só está segura de si enquanto o decisivo. Mas a indeterminação existenciária da decisão, que só se determina no decisivo, também possui sua determinação existencial. STMSC: §60
É na existencialidade da presença (Dasein), como um poder-ser no modo da preocupação em ocupações, que se prelineia, ontologicamente, o para quê da decisão. Todavia, enquanto cura, a presença (Dasein) se determina por facticidade e decadência. Aberta em seu “pre” (das Da), ela se mantém, de modo igualmente originário, na verdade e na não-verdade. “Propriamente” isso vale justamente para a decisão enquanto verdade própria. Ela se apropria propriamente da não-verdade. A presença (Dasein) já está e, talvez sempre esteja, na indecisão. Esse termo designa apenas o FENÔMENO já interpretado como abandono à interpretação predominante do impessoal. A presença (Dasein) é “vivida” como o impessoal-si-mesmo pela ambiguidade do senso comum, característica do público em que ninguém se decide e que, no entanto, já sempre incide. A decisão significa deixar-se receber o apelo a partir da perdição no impessoal. A indecisão do impessoal permanece também predominante, embora não seja capaz de alcançar a existência decidida. Enquanto conceito inverso à decisão em sua compreensão existencial, a indecisão não significa uma qualidade ôntica e psíquica, no sentido de sobrecarga de repressões. O decisivo também continua referido ao impessoal e a seu mundo. A possibilidade disto ser compreendido depende do que se abre na decisão, já que só a decisão propicia à presença (Dasein) a transparência própria. Na decisão está em jogo o poder-ser mais próprio da presença (Dasein) que, lançado, só pode projetar-se para possibilidades faticamente determinadas. O decisivo não se retira da “realidade” mas descobre o faticamente possível, a tal ponto que o apreende como o poder-ser mais próprio, possível no impessoal. A determinação existencial da presença (Dasein) decidida a cada possibilidade abrange os momentos constitutivos do FENÔMENO existencial, até agora desconsiderado, que chamamos de situação. STMSC: §60
O FENÔMENO assim exposto sob o título de decisão dificilmente poderia confundir-se com um “hábito” vazio ou com uma “veleidade” indeterminada. Não é tomando conhecimento que a decisão representa para si uma situação. Ela já se acha em uma situação. A presença (Dasein) já age decidida. Evitamos, propositadamente, o termo “ação”. Pois, por um lado, ele deve ser tomado de modo suficientemente amplo para abranger a atividade e a passividade do que opõe resistência. E, por outro, ele introduz o perigo de um equívoco ontológico da presença (Dasein) em que a decisão seria apenas um comportamento especial da faculdade prática enquanto distinta e oposta à teórica. A cura, porém, no sentido de preocupação em ocupações, abrange o ser da presença (Dasein) de modo tão originário e total que já se deve pressupor como o todo, em qualquer distinção entre atitude prática e teórica. Ela não pode ser construída a partir dessas duas faculdades através de uma dialética necessariamente destituída de fundamentos porque não fundada existencialmente. A decisão, porém, é apenas a propriedade de si mesma possível como cura e acurada na cura. STMSC: §60
Projetou-se existencialmente um poder-ser todo em sentido próprio da presença (Dasein). A análise e interpretação do FENÔMENO desvelou o ser-para-a-morte próprio como antecipar. Em seu testemunho existenciário, o poder-ser próprio da presença (Dasein) mostrou-se na decisão, tendo sido, ao mesmo tempo, interpretado existencialmente. Como se devem conjugar ambos os fenômenos? O projeto ontológico do poder-ser todo em sentido próprio não levou a uma dimensão da presença (Dasein) muito distante do FENÔMENO da decisão? O que a morte tem em comum com a “situação concreta” da ação? Será que a tentativa de forçar a união entre decisão e antecipação não leva a uma construção insuportável, de todo não fenomenológica, que nem é capaz de reivindicar o caráter de um projeto ontológico com base fenomenal? STMSC: §61
Uma ligação exterior entre os fenômenos já está de per si proibida. Metodologicamente, resta apenas um caminho possível, a saber, partir do FENÔMENO da decisão, testemunhado em sua possibilidade existenciária, e perguntar: Será que em sua tendência de ser mais propriamente existenciária, a decisão remete ela mesma para a decisão antecipadora como a sua possibilidade mais própria? E se, de acordo com seu sentido próprio, a decisão só alcançasse a sua propriedade quando não se projetasse para possibilidades arbitrárias e sempre as mais imediatas mas, ao contrário, somente quando se projetasse para a possibilidade extrema que antecede todo poder-ser fático da presença (Dasein) e, como tal, inserindo-se, de forma mais ou menos inconfundível, em cada poder-ser faticamente assumido? E se, enquanto verdade própria da presença (Dasein), a decisão só alcançasse a sua certeza própria e pertinente no antecipar para a morte? E se toda “antecipação” fática de decisões só fosse propriamente compreendida, isto é, existenciariamente alcançada, no antecipar para a morte? STMSC: §61
Do ponto de vista ontológico, a presença (Dasein) é, em princípio, diversa de todo ser simplesmente dado e de todo real. Seu “teor” não se funda na substancialidade de uma substância e sim na “autoconsistência” do si-mesmo existente e cujo ser foi concebido como cura. O FENÔMENO do si-mesmo, também incluído na cura, necessita de uma delimitação existencial originária e própria frente à demonstração preparatória do impessoalmente-si-mesmo em sua impropriedade. Isso implica fixar as questões ontológicas possíveis referentes ao “si-mesmo” já que ele não é nem substância nem sujeito. STMSC: §61
Depois de esclarecermos suficientemente o FENÔMENO da cura, questionamos o seu sentido ontológico. A determinação desse sentido consiste na liberação da temporalidade. Essa demonstração não conduz a áreas separadas e distantes da presença (Dasein) mas apenas concebe o conteúdo fenomenal da constituição existencial da presença (Dasein) nos fundamentos últimos de sua própria compreensão ontológica. Fenomenalmente, a temporalidade é experimentada de modo originário no ser-todo em sentido próprio da presença (Dasein), no FENÔMENO da decisão antecipadora. Se a temporalidade aí se diz originária, então, presumivelmente, a temporalidade da decisão antecipadora constitui um modo privilegiado do si-mesmo. A temporalidade pode temporalizar-se em diferentes possibilidades e em diversos modos. As possibilidades fundamentais da existência, propriedade e impropriedade da presença (Dasein), fundam-se, ontologicamente, em possíveis temporalizações da temporalidade. STMSC: §61
Se já o caráter ontológico de seu próprio ser encontra-se distante da presença (Dasein) devido ao predomínio da compreensão ontológica decadente (ser simplesmente dado), o que não dizer então dos fundamentos originários desse ser? Não é, pois, de admirar que, à primeira vista, a temporalidade não corresponda ao que é acessível à compreensão vulgar como “tempo”. O conceito de tempo que pertence à sua experiência vulgar bem como a problemática daí decorrente não podem, portanto, sem um exame, constituir critérios adequados para uma interpretação do tempo. A investigação deve, sobretudo, familiarizar-se, preliminarmente, com o FENÔMENO originário da temporalidade para, a partir dele, esclarecer a necessidade e a espécie de origem da compreensão vulgar do tempo e também a razão de seu predomínio. STMSC: §61
É comprovando-se que, no fundo, todas as estruturas fundamentais da presença (Dasein) até aqui expostas devem ser concebidas “temporalmente” e como modos da temporalização da temporalidade em sua possível totalidade, unidade e desdobramento, que se pode assegurar o FENÔMENO originário da temporalidade. Com a liberação da temporalidade, emerge para a analítica existencial a tarefa de retomar a análise já realizada da presença (Dasein) no sentido de uma interpretação das estruturas essenciais em sua temporalidade. As linhas-mestras das análises assim exigidas são traçadas pela própria temporalidade. O presente capítulo obedece à seguinte divisão: o poder-ser todo, em sentido existenciário e próprio, da presença (Dasein) enquanto decisão antecipadora (§62); a situação hermenêutica adquirida para uma interpretação do sentido ontológico da cura e o caráter metodológico da analítica existencial (§63); cura e si-mesmo (§64); a temporalidade como sentido ontológico da cura (§65); a temporalidade da presença (Dasein) e as tarefas daí decorrentes de uma retomada mais originária da análise existencial (§66). STMSC: §61
Em que medida a decisão, “pensada até o fim” em sua tendência ontológica mais própria, conduz ao ser-para-a-morte próprio? Como se deve conceber o nexo entre o querer-ter-consciência e o poder-ser todo próprio, inerente à presença (Dasein), projetado existencialmente? Será que a fusão de ambos resulta em um novo FENÔMENO? Ou será que esse FENÔMENO se mantém na decisão, testemunhada em sua possibilidade existenciária, de tal modo que a decisão poderia, através do ser-para-a-morte, fazer a experiência de uma modalização existenciária? O que significa, porém, “pensar até o fim”, de modo existencial, o FENÔMENO da decisão? STMSC: §62
Com o FENÔMENO da decisão, colocamo-nos diante da verdade originária da existência. Decidida, a presença (Dasein) se desvela para si mesma em seu poder-ser fático, de maneira a ser este desvelar e estar desvelado. Pertence à verdade um ter-por-verdadeiro, que sempre lhe corresponde. O ser e estar-certo é a apropriação explícita do que se abriu e se descobriu. A verdade originária da existência exige um estar-certo igualmente originário, no sentido de ater-se ao que a decisão lhe abre. Ela dá a si a situação fática e nela se coloca. A situação não pode ser antecipadamente calculada ou prevista como algo simplesmente dado, que espera por sua apreensão. Ela só se abre numa decisão livre, previamente indeterminada mas aberta a determinações. O que significa a certeza inerente a tal decisão? Ela deve ater-se ao que se abriu na decisão. Isso significa, porém, que ela não pode enrijecer-se na situação mas deve compreender que, de acordo com o seu sentido próprio de abertura, a decisão deve manter-se aberta e livre para as possibilidades fáticas. A certeza da decisão significa: manter-se livre para o seu reassumir possível e faticamente necessário. Esse ter-por-verdadeiro da decisão (enquanto verdade da existência) não permite, em absoluto, recair na indecisão. Ao contrário, enquanto manter-se livre na decisão para reassumir, este ter-por-verdadeiro é decidir com propriedade pela retomada de si mesmo. Com isso, enterra-se justamente a perdição existenciária na indecisão. O ter-por-verdadeiro inerente à decisão tende, de acordo com seu sentido, a manter-se constantemente livre, ou seja, para todo o poder-ser da presença (Dasein). Essa certeza insistente só confirma a decisão quando se atém à possibilidade da qual ela pode ser e estar absolutamente certa. Em sua morte, a presença (Dasein) deve, pura e simplesmente, “reassumir-se”. Estando constantemente certa dela, isto é, antecipando-a, a decisão conquista sua certeza própria e total. STMSC: §62
O esclarecimento do “nexo” entre antecipar e decisão, no sentido da modalização possível desta através daquela, tornou-se demonstração fenomenal de um poder-ser todo da presença (Dasein) em sentido próprio. Se com esse FENÔMENO chegou-se a encontrar um modo de ser da presença (Dasein) em que ela se coloca diante de si e para si, então, para a interpretação cotidiana e comum do impessoal, ele deve permanecer incompreensível, tanto ôntica quanto ontologicamente. Seria um equívoco tanto jogar para o alto essa possibilidade existenciária, considerando-a “incomprovada”, quanto pretender “comprová-la” teoricamente. Entretanto, o FENÔMENO precisa proteger-se das mais grosseiras inversões. STMSC: §62
Mesmo não sendo arbitrário, será que o projeto ôntico-ontológico da presença (Dasein) para um poder-ser todo em sentido próprio já se legitima com a interpretação existencial desse FENÔMENO? De onde ela retira o fio condutor a não ser da “pressuposição” da ideia de existência? A partir de onde os passos da análise da cotidianidade imprópria retiram suas regras a não ser da suposição de um conceito de existência? E quando dizemos: a presença (Dasein) “decai” e, por isso, a propriedade do poder-ser deve ser arrancada contra essa tendência de ser – de que ponto de vista se está falando? Tudo isso não se esclarece de algum modo, mesmo que obscuramente, à luz da “pressuposição” de uma ideia da existência? De onde ela retira seu direito? Teria sido destituído de orientação o seu primeiro projeto indicador? De modo nenhum. STMSC: §63
Orientando-se por essa ideia, realizou-se a análise preparatória da cotidianidade mais imediata, chegando-se a uma primeira delimitação conceituai da cura. Esse FENÔMENO possibilitou uma apreensão nítida da existência e de suas remissões intrínsecas à facticidade e à decadência. A delimitação da estrutura da cura forneceu as bases para uma primeira distinção ontológica entre existência e realidade. Isso levou à seguinte tese: a substância do homem é a existência. STMSC: §63
A análise da decisão antecipadora conduziu, ao mesmo tempo, para o FENÔMENO da verdade originária e própria. Já se mostrou como a compreensão ontológica, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes predominante, concebe o ser no sentido de algo simplesmente dado, encobrindo, dessa forma, o FENÔMENO originário da verdade. Se, no entanto, ser somente “se dá” na medida em que a verdade “é”, e a compreensão de ser sempre se modifica segundo o modo da verdade, então a verdade originária e própria deve garantir a compreensão de presença (Dasein) e de ser em geral. A “verdade” ontológica da análise existencial forma-se com base na verdade existenciária originária. No entanto, esta não precisa necessariamente daquela. A verdade mais originária, existencial e básica para a qual se encaminha a problemática de uma ontologia fundamental – preparando a questão do ser em geral – é a abertura do sentido ontológico da cura. Assim, para se liberar esse sentido, é preciso aprontar integralmente o conteúdo estrutural da cura. STMSC: §63
A unidade dos momentos constitutivos da cura, existencialidade {CH: existência: 1) para todo o ser da presença (Dasein); 2) somente para o “compreender”}, facticidade e decadência, possibilitou uma primeira delimitação ontológica da totalidade do todo estrutural da presença (Dasein). A estrutura da cura chegou à seguinte fórmula existencial: anteceder-a-si-mesmo-em (um mundo) enquanto ser-junto-a (um ente intramundano que vem ao encontro). Embora articulada, a totalidade da estrutura da cura não resulta de um ajuntamento. Tivemos de avaliar esse resultado ontológico quanto à possibilidade de satisfazer as exigências de uma interpretação originária da presença (Dasein). Da reflexão resultou que não se tematizou nem toda a presença (Dasein) e nem o seu poder-ser próprio. A tentativa de apreender fenomenalmente toda a presença (Dasein) pareceu fracassar justamente na estrutura da cura. O anteceder-a-si-mesmo apresentou-se como um ainda-não. Para uma consideração genuinamente existencial, o anteceder-a-si-mesmo desvelou-se como o que está pendente, mas no sentido de ser-para-o-fim que, no fundo de seu ser, toda presença (Dasein) é. Também esclarecemos que, no apelo da consciência, a cura faz apelo à presença (Dasein) para o seu poder-ser mais próprio. Entendida originariamente, o compreender do apelo revelou-se como decisão antecipadora. Ele abriga em si um poder-ser todo da presença (Dasein) em sentido próprio. A estrutura da cura não fala contra um possível ser-todo mas é a condição de possibilidade desse poder-ser existenciário. No encaminhamento da análise, tornou-se claro que os fenômenos existenciais de morte, consciência e dívida estão ancorados no FENÔMENO da cura. A articulação da totalidade do todo estrutural é ainda mais rica e, por isso, torna também mais urgente a questão existencial da unidade dessa totalidade. STMSC: §64
Como se deve conceber essa unidade? Como a presença (Dasein) pode existir, numa unidade, nos modos e possibilidades de seu ser? Manifestamente, só enquanto esse ser for ele mesmo em suas possibilidades essenciais, enquanto eu sempre {CH: a própria presença (Dasein) é esse ente} sou esse ente. Aparentemente, o “eu” “sustenta numa coesão”, a totalidade do todo estrutural. Na “ontologia” desse ente, o “eu” e o “si-mesmo” foram, desde sempre, concebidos como fundamento de sustentação (substância e sujeito). Já na caracterização preparatória da cotidianidade, a presente analítica deparou-se com a questão do quem da presença (Dasein). Mostrou-se que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença (Dasein) não é ela mesma mas perdeu-se {CH: o “eu” como o si-mesmo, em certo sentido, “o mais próximo”, em primeiro plano e, assim, aparente} no impessoalmente-si-mesmo. Este é uma modificação existenciária do si-mesmo em sentido próprio. A questão da constituição ontológica do si-mesmo ficou sem resposta. Os fios condutores do problema foram, sem dúvida, fixados em princípio. Se o si-mesmo pertence às determinações essenciais da presença (Dasein), cuja “essência” reside na existência, então tanto a estrutura do eu quanto a do si-mesmo devem ser concebidas existencialmente. Mostrou-se também de forma negativa que a caracterização ontológica do impessoal proíbe qualquer aplicação das categorias de ser simplesmente dado (substância). Em princípio, esclareceu-se que: do ponto de vista ontológico, a cura não pode ser derivada da realidade e nem construída segundo as categorias de realidade. A cura já abriga em si o FENÔMENO do si-mesmo e, caso esta tese se justifique, a expressão “cura de si mesmo” é uma tautologia, cunhada em correspondência à preocupação enquanto cuidado com os outros. Nesse caso, o problema da determinação ontológica do si-mesmo da presença (Dasein) torna-se uma questão aguda, isto é, a questão do “nexo” existencial entre cura e si-mesmo. STMSC: §64
Essas representações, no entanto, são para ele o “empírico”, o que é “acompanhado” pelo eu, as manifestações (fenômenos) às quais o eu “adere”. Todavia, Kant jamais mostra o modo de ser desse “aderir” e “acompanhar”. No fundo, são compreendidos como o dar-se simplesmente do eu em conjunto com as suas representações. Kant, sem dúvida, evita separar o eu do pensar sem, no entanto, colocar como ponto de partida do “eu penso” o “eu penso alguma coisa” e, sobretudo, sem ver {CH: isto é, a temporalidade} na determinação fundamental do si-mesmo a “pressuposição ontológica” do “eu penso alguma coisa”. Ontologicamente, o ponto de partida do “eu penso alguma coisa” é também subdeterminado na medida em que o “alguma coisa” permanece indeterminado. Se, por alguma coisa, compreende-se um ente intramundano, então pressupõe-se, implicitamente, o mundo; e exatamente esse FENÔMENO é que também determina a constituição ontológica do eu, caso deva ser possível o “eu penso alguma coisa”. O dizer-eu significa o ente que eu sempre sou enquanto “eu-sou-e-estou-no-mundo”. Kant não viu o FENÔMENO do mundo e foi suficientemente consequente ao afastar as “representações” do conteúdo a priori do “eu penso”. Mas, com isso, o eu foi forçado, novamente, a ser um sujeito isolado, que acompanha, de forma ontologicamente indeterminada, as “representações”. STMSC: §64
Sem dúvida, a interpretação ontológica do “eu” não obtém, de forma alguma, a solução do problema, negando-se a seguir o cotidiano falar eu, mas prelineando a direção em que se deve prosseguir o questionamento. O eu significa o ente que se é, “sendo-no-mundo”. O já-ser-em-um-mundo enquanto ser-junto-a-um-manual-intramundano diz, porém, de modo igualmente originário, anteceder-se. “Eu” significa o ente em que está em jogo o ser deste ente que ele é. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, com o “eu” pronuncia-se a cura na fala “fugaz” do eu nas ocupações. O impessoalmente-si-mesmo diz, em alto e bom tom, eu-eu porque, no fundo, ele não é propriamente ele mesmo e escapole de seu poder-ser próprio. Se a constituição ontológica do si-mesmo não se deixa remontar a uma substância-eu e nem a um “sujeito” mas, inversamente, o dizer-eu-eu fugaz e cotidiano é que deve ser compreendido a partir do poder-ser próprio, disso ainda não segue que o si-mesmo seja, então, o fundamento constantemente e simplesmente dado da cura. O si-mesmo só pode ser lido existencialmente no poder-ser si-mesmo em sentido próprio, ou seja, na propriedade do ser da presença (Dasein) como cura. A partir dela é que se esclarece a consistência do si-mesmo enquanto pretensa permanência do sujeito. Mas o FENÔMENO do poder-ser próprio abre também uma visão para a consistência do si-mesmo no sentido de ter adquirido sustento. A consistência do si-mesmo no duplo sentido da solidez consistente do que permanece é a contra-possibilidade própria da consistência do que não é si-mesmo, na indecisão decadente. Do ponto de vista existencial, a autoconsistência nada mais é do que a decisão antecipadora. A estrutura ontológica desta desvela a existencialidade do si-mesmo que ele, em si-mesmo, é. STMSC: §64
A cura não precisa fundar-se num si-mesmo mas, como constitutivo da cura, a existencialidade propicia a constituição ontológica da autoconsistência da presença (Dasein). Em plena correspondência com o conteúdo estrutural da cura, pertence-lhe, também, o estar faticamente em decadência na consistência do que não é si-mesmo. Concebida plenamente, a estrutura da cura inclui o FENÔMENO do si-mesmo. O seu esclarecimento cumpre-se na interpretação do sentido da cura que, como tal, foi determinado enquanto totalidade ontológica da presença (Dasein). STMSC: §64
Do ponto de vista ontológico, o que se busca com o sentido da cura? O que significa sentido? A investigação deparou-se com esse FENÔMENO no contexto da análise do compreender e da interpretação. De acordo com a análise, sentido é o contexto no qual se mantém a possibilidade de compreender alguma coisa, sem que ele mesmo seja explicitado ou, tematicamente, visualizado. Sentido significa a perspectiva do projeto primordial a partir do qual alguma coisa pode ser concebida em sua possibilidade como aquilo que ela é. O projetar abre possibilidades, isto é, o que possibilita. STMSC: §65
No projeto existencial originário da existência, o projetado desvelou-se como decisão antecipadora {CH: equívoco: aqui se confundem projeto existenciário e transposição existencial para o projeto}. O que possibilita que a presença (Dasein) seja toda em sentido próprio na unidade de toda a sua estrutura de articulação? Apreendida formal e existencialmente, sem que se nomeie agora constantemente o conteúdo pleno de sua estrutura, a decisão antecipadora é o ser para o poder-ser mais próprio e privilegiado. Isto só é possível caso a presença (Dasein) possa de todo a modo vir-a-si em sua possibilidade mais própria e, deixando-se vir-a-si, suporte a possibilidade enquanto possibilidade, ou seja, exista. Este deixar-se-vir-a-si que, na possibilidade privilegiada a sustém, é o FENÔMENO originário do porvir. Se, ao ser da presença (Dasein), pertence o ser-para-a-morte, próprio ou impróprio, este então só é possível como porvindouro, no sentido agora indicado e que ainda deve ser determinado de forma mais precisa. “Porvir” não significa aqui um agora que, ainda-não tendo se tornado “real”, algum dia o será. Porvir significa o advento em que a presença (Dasein) vem a si em seu poder-ser mais próprio. O antecipar torna a presença (Dasein) propriamente porvindoura, de tal maneira que o próprio antecipar só é possível quando a presença (Dasein), enquanto um sendo, sempre já vem a si, ou seja, em seu ser, é e está por vir. STMSC: §65
Vindo-a-si mesma num porvir, a decisão atualiza-se na situação. O vigor de ter sido surge do porvir e isso de tal maneira que o porvir do ter sido (melhor, do que tem sido) deixa vir-a-si a atualidade. Chamamos de temporalidade este FENÔMENO unificador do porvir que atualiza o vigor de ter sido. Somente determinada como temporalidade é que a presença (Dasein) possibilita para si mesma o poder-ser toda em sentido próprio da decisão antecipadora. Temporalidade desvela-se como o sentido da cura propriamente dito. STMSC: §65
Haurido da constituição ontológica da decisão antecipadora, o conteúdo fenomenal desse sentido preenche o significado do termo temporalidade. O uso terminológico dessa expressão deve, de início, manter distantes todos os significados impostos pelo conceito vulgar de tempo como “futuro”, “passado” e “presente”. O mesmo vale para os conceitos de um “tempo” “subjetivo” e “objetivo”, respectivamente, “imanente” e “transcendente”. Na medida em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença (Dasein) compreende impropriamente, pode-se presumir que o compreender vulgar de “tempo” apresente um FENÔMENO, sem dúvida, autêntico, mas derivado. Ele surge da temporalidade imprópria que, por sua vez, possui sua própria origem. Os conceitos de “futuro”, “passado” e “presente” nascem, imediatamente, da compreensão imprópria de tempo. A delimitação terminológica dos fenômenos originários e próprios correspondentes lutam com a mesma dificuldade inerente a toda terminologia ontológica. Nesse campo de investigação, as violências não são arbitrariedade mas uma necessidade fundada nas coisas de que trata. Para que se possa demonstrar, sem lacunas, a origem da temporalidade imprópria a partir da temporalidade originária e própria, é imprescindível uma elaboração concreta do FENÔMENO originário que até agora só foi caracterizado grosseiramente. STMSC: §65
Se a decisão constitui o modo da cura em sentido próprio, e se ela mesma só é possível pela temporalidade, então o próprio FENÔMENO obtido com vistas à decisão deve apresentar apenas uma modalidade da temporalidade que torne possível a cura como tal. Enquanto cura, a totalidade ontológica da presença (Dasein) diz: anteceder-a-si-mesma-em (um mundo) enquanto ser-junto-a (entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Ao se fixar pela primeira vez a articulação dessa estrutura, mencionou-se que, no tocante a esta articulação, a questão ontológica deveria ainda remontar à liberação da unidade na totalidade de sua multiplicidade estrutural. A unidade originária da estrutura da cura reside na temporalidade. STMSC: §65
Na enumeração das ekstases, colocamos sempre em primeiro lugar o porvir. É para indicar que, na unidade ekstática da temporalidade originária e própria, o porvir possui uma primazia, embora a temporalidade não surja de um amontoado e de uma sequência de ekstases, temporalizando-se, cada vez, na igualdade originária de cada uma delas. Dentro da temporalidade, porém, os modos de temporalização são diversos. E a diversidade consiste em que a temporalização pode determinar-se primariamente a partir das diferentes ekstases. A temporalidade originária e própria temporaliza-se a partir do porvir em sentido próprio, de tal modo que só porvindouramente sendo o ter-sido é que ela desperta a atualidade. O porvir é o FENÔMENO primário da temporalidade originária e própria. De acordo com a primazia do porvir, a temporalização modificada ainda há de se transformar, apesar de aparecer no “tempo” derivado. STMSC: §65
A tentação de se passar por cima da finitude do porvir originário e próprio e, com isso, da temporalidade, considerando-a “a priori” impossível, nasce da constante imposição da compreensão vulgar de tempo. Se esta, com razão, só conhece um tempo infinito, isto ainda não prova que ela já compreenda este tempo e a sua “infinitude”. O que significa o tempo “prossegue e passa”? O que significa “no tempo” em geral e, de maneira específica, “no” e “do futuro”? Em que sentido “o tempo” é infinito? Estas perguntas devem ser esclarecidas para que as objeções vulgares contra a finitude do tempo originário não permaneçam infundadas. Este esclarecimento, porém, só pode realizar-se caso se alcance um questionamento adequado de finitude e in-finitude. Este, por sua vez, surge de uma visão compreensiva do FENÔMENO originário do tempo. O problema não pode ser, portanto: como é que o tempo infinito e “derivado”, “no qual” nasce e perece o ser simplesmente dado, torna-se temporalidade finita e originária, mas sim como o tempo im-próprio provém da temporalidade finita e própria, e como ela, sendo imprópria, temporaliza um tempo in-finito a partir do tempo finito. Somente porque o tempo originário é finito é que o tempo “derivado” pode temporalizar-se como in-finito. Na ordem da apreensão compreensiva, a finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o “tempo sem fim” para contrapô-lo à finitude. STMSC: §65
O FENÔMENO liberado da temporalidade não exige apenas uma confirmação mais abrangente de sua força de constituição. Por ela, o FENÔMENO torna visíveis suas possibilidades fundamentais de temporalização. Chamaremos, numa expressão breve e provisória, de interpretação “temporal” a comprovação da possibilidade da constituição ontológica da presença (Dasein) com base na temporalidade. STMSC: §66
A primeira tarefa consiste em tornar visível a impropriedade da presença (Dasein) em sua temporalidade específica, através da análise temporal do poder-ser todo em sentido próprio da presença (Dasein) e de uma caracterização geral da temporalidade da cura. Numa primeira aproximação, a temporalidade mostra-se na decisão antecipadora. Ela é o modo próprio da abertura que, na maior parte das vezes, se mantém na impropriedade da auto-interpretação decadente do impessoal. Caracterizar a temporalidade da abertura em geral leva à compreensão temporal do ser-no-mundo mais imediato das ocupações e, com isso, da indiferença mediana da presença (Dasein), aqui tomada como primeiro ponto de partida da analítica existencial. Chamamos de cotidianidade o modo de ser mediano da presença (Dasein) no qual, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela se mantém. Mediante a retomada da análise anterior, a cotidianidade deve desvelar o seu sentido temporal para, com isso, deixar vir à luz a problemática abrigada na temporalidade e fazer desaparecer por completo a aparente “evidência” das análises preparatórias. A temporalidade deve, na verdade, confirmar-se em todas as estruturas essenciais da constituição fundamental da presença (Dasein). Isto, porém, não leva a uma repetição esquemática e exterior das análises realizadas em sua sequência. O curso da análise temporal toma agora uma outra direção, tornando ainda mais claro o contexto das considerações anteriores e superando a casualidade e a aparente arbitrariedade. Além dessas necessidades metodológicas, motivos inerentes ao próprio FENÔMENO impõem uma outra articulação da análise a ser retomada. STMSC: §66
A interpretação temporal da cotidianidade e da historicidade prende suficientemente a visão ao tempo originário e o faz de tal maneira que o descobre como condição de possibilidade e necessidade da experiência cotidiana do tempo. Primordialmente, a presença (Dasein) se aplica, em si e para si mesma, de forma expressa ou não, como o ente em que está em jogo o seu ser. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a cura é ocupação guiada por uma circunvisão. Aplicando-se em virtude de si mesma, a presença (Dasein) se “desgasta”. Desgastando-se, a presença (Dasein) gasta a si mesma, ou seja, gasta o seu tempo. Gastando tempo, ela conta com ele. A ocupação que conta e controla na circunvisão descobre, de início, o tempo, e leva à elaboração de uma contagem do tempo. Contar com o tempo é constitutivo do ser-no-mundo. Contando com seu tempo, o descobrir da circunvisão nas ocupações deixa vir ao encontro no tempo o manual e o ser simplesmente dado descobertos. O ente intramundano é, então, acessível como “o que está sendo no tempo”. Chamamos de intratemporalidade a determinação temporal dos entes intramundanos. O “tempo” que nela, de início, se pode encontrar onticamente torna-se a base da formação do conceito vulgar e tradicional de tempo. O tempo enquanto intratemporalidade surge, no entanto, de um modo essencial de temporalização da temporalidade originária. Esta origem diz que o tempo “no qual” nasce e perece um ente simplesmente dado é um FENÔMENO autêntico do tempo e não a exteriorização para o espaço de um “tempo qualitativo”, como pretende fazer crer a interpretação do tempo feita por Bergson, que, do ponto de vista ontológico, é inteiramente insuficiente e indeterminada. STMSC: §66
Para que os fenômenos obtidos na análise preparatória possam ser reconduzidos à visão fenomenológica, basta uma indicação a respeito dos estágios percorridos. A delimitação da cura resultou da análise da abertura constitutiva do ser do “pre” (das Da). O esclarecimento deste FENÔMENO trouxe consigo a interpretação provisória da constituição fundamental da presença (Dasein), a saber, o ser-no-mundo. A investigação teve início com esta caracterização a fim de assegurar, desde o começo, um horizonte fenomenal suficiente frente às determinações ontológicas prévias da presença (Dasein), em sua maior parte inadequadas e não expressas. Ser-no-mundo foi caracterizado, numa primeira aproximação, na perspectiva do FENÔMENO do mundo. E, na verdade, a explicação partiu da caracterização ôntico-ontológica do que está à mão e do que é simplesmente dado “em” um mundo circundante para, então, destacando a intramundanidade, nela tornar visível o FENÔMENO da mundanidade. A estrutura da mundanidade, a significância, demonstrou-se, no entanto, conectada com o para onde o compreender, que pertence essencialmente à abertura, projeta-se, isto é, com o poder-ser da presença (Dasein), em virtude da qual ela existe. STMSC: §67
A interpretação temporal da presença (Dasein) cotidiana deve partir das estruturas constitutivas da abertura. São elas: compreender, decadência e fala. Os modos de temporalização da temporalidade, a serem liberados no tocante a estes fenômenos, propiciam a base para se determinar a temporalidade do ser-no-mundo. Isso levará, de novo, ao FENÔMENO do mundo, permitindo uma delimitação da problemática especificamente temporal da mundanidade. Esta deve confirmar-se mediante a caracterização do ser-no-mundo cotidiano e imediato da ocupação decadente na circunvisão. É a sua temporalidade que possibilita a modificação da circunvisão em visualização perceptiva e em conhecimento teórico aí fundado. A temporalidade do ser-no-mundo que assim emerge demonstra-se, também, fundamento da espacialidade específica da presença (Dasein). Deve-se mostrar a constituição temporal de dis-tanciamento e direcionamento. O todo destas análises desvela uma possibilidade de temporalização da temporalidade em que se funda, ontologicamente, a impropriedade da presença (Dasein). Além disso, conduz à questão de como se deve compreender o caráter temporal da cotidianidade, o sentido temporal da expressão – “numa primeira aproximação e na maior parte das vezes”, aqui constantemente utilizada. A fixação desse problema torna claro que e em que medida o esclarecimento do FENÔMENO até agora obtido é insuficiente. STMSC: §67
Enquanto existir, compreender é primariamente porvindouro, no poder-ser de qualquer projeto. Contudo, ele não se temporalizaria se não fosse temporal, isto é, se não fosse determinado, de modo igualmente originário, pelo vigor de ter sido e pela atualidade. Já esclarecemos, embora de modo grosseiro, que esta última ekstase também constitui o compreender impróprio. A ocupação cotidiana compreende-se a partir do poder-ser que lhe vem ao encontro num possível sucesso ou insucesso, relativo àquilo de que se ocupa. Ao porvir impróprio, ao aguardar, corresponde um ser próprio junto àquilo de que se ocupa. O modo ekstático desta atualidade que vem de encontro desvela-se quando se compara esta ekstase com o modo da temporalidade própria. Pertence ao antecipar da decisão uma atualidade segundo a qual a decisão abre uma situação. Na decisão não apenas se recupera a atualidade da dispersão nas ocupações imediatas como ela se mantém atrelada ao porvir e ao vigor de ter sido. Chamamos de instante a atualidade própria, isto é, a atualidade mantida na temporalidade própria. Este termo deve ser compreendido em sentido ativo como ekstase. Ele remete a retração da presença (Dasein) decidida, mas mantida na decisão, ao que de possibilidades e circunstâncias passíveis de ocupação vem ao encontro na situação. Fundamentalmente, o FENÔMENO do instante não pode ser esclarecido pelo agora. O agora é um FENÔMENO temporal que pertence ao tempo da intratemporalidade: o agora “em que” algo nasce, perece ou simplesmente se dá. “No instante”, nada pode ocorrer. Ao contrário, enquanto atualidade em sentido próprio, é o instante que deixa vir ao encontro o que, estando à mão ou sendo simplesmente dado, pode ser e estar “em um tempo”. STMSC: §68
A unidade ekstática específica que, do ponto de vista existencial, possibilita o ter medo temporaliza-se, primariamente, a partir do esquecimento acima caracterizado que, enquanto modo do vigor de ter sido, lhe modifica tanto a atualidade quanto o porvir, em sua temporalização. A temporalidade do medo é um esquecer que aguarda e atualiza. Orientada para o que vem ao encontro dentro do mundo, a interpretação que compreende o medo busca, de início, o seu referente no “mal que está vindo” e determina, correspondentemente, como espera a relação que com ele estabelece. Tudo o que, além disso, pertence ao FENÔMENO fica sendo um “sentimento de prazer e desprazer”. STMSC: §68
Como a temporalidade da angústia se comporta frente à temporalidade do medo? Chamamos este FENÔMENO de disposição fundamental. Ela coloca a presença (Dasein) diante de seu estar-lançado mais próprio, desvelando a estranheza do ser-no-mundo cotidiano e familiar. Assim como o medo, a angústia também se determina formalmente por um com quê e um pelo quê a angústia se angustia. A análise mostrou, no entanto, que estes dois fenômenos coincidem. Isto não significa, porém, que os caracteres estruturais do com quê e pelo quê se confundem no sentido de que a angústia não se angustiaria nem com e nem por alguma coisa. A coincidência entre o com quê e o pelo quê deve significar que é um e o mesmo o ente que os realiza, ou seja, a presença (Dasein). Especificamente, o com quê a angústia se angustia vem ao encontro não como algo determinado numa ocupação. A ameaça não provém do que está à mão e do que é simplesmente dado mas, sobretudo e justamente, de que tudo que está à mão e é simplesmente dado já não “diz” absolutamente nada. Não estabelece mais nenhuma conjuntura com o ente do mundo circundante. O mundo, no contexto do qual eu existo, afundou na insignificância, e o mundo que, dessa forma, se abre só é capaz de liberar entes sem conjuntura. O nada do mundo, com o que a angústia se angustia, não significa que, na angústia, se faça a experiência de uma ausência de seres simplesmente dados dentro do mundo. É preciso que eles venham ao encontro para que não estabeleçam nenhuma conjuntura e possam, assim, mostrar-se numa impiedade vazia. Isso significa, porém, que o aguardar da ocupação não encontra mais nada a partir do qual possa compreender-se. Ele agarra o nada do mundo; deparando-se com o mundo, porém, o compreender é trazido pela angústia para o ser-no-mundo como tal, de maneira que esse com quê a angústia se angustia é, também, o seu por quê. O angustiar-se com alguma coisa não possui nem o caráter de espera, nem de aguardar. O com quê a angústia se angustia já está “pre-sente” (»da«), é a própria presença (Dasein). Será que a angústia não se constitui pelo porvir? Sem dúvida, mas não pelo porvir impróprio do aguardar. STMSC: §68
Mas será que, talvez, a tese da temporalidade dos humores não valha apenas no caso dos fenômenos escolhidos para a análise? Como se pode encontrar um sentido temporal na morna ausência de humores que domina o “cotidiano cinzento”? E o que dizer da temporalidade dos humores e afetos como esperança, alegria, encantamento e jovialidade? Que não apenas o medo e a angústia mas também outros fenômenos estão existencialmente fundados num vigor de ter sido, isso se mostra, claramente, quando nomeamos fenômenos tais que tédio, tristeza, melancolia e desespero. Sem dúvida, sua interpretação deve fazer-se com base numa analítica mais ampla da presença (Dasein), elaborada existencialmente. Mas também um FENÔMENO como a esperança, que parece totalmente fundada no porvir, deve ser analisado de forma correspondente à análise do medo. Em oposição ao medo, que se relaciona a um malum futurum, costuma-se caracterizar a esperança como espera de um bonum futurum. Para a estrutura do FENÔMENO, porém, o decisivo não é tanto o caráter “futuro” daquilo a que a esperança está relacionada mas, sobretudo, o sentido existencial do próprio ter esperança. Também aqui o caráter de humor reside, primariamente, em ter esperança enquanto ter esperança-para-si. Aquele que tem esperança carrega, por assim dizer, a si mesmo para dentro da esperança, contrapondo-se ao que é esperado. Isso pressupõe, no entanto, um ter-se-conquistado. Que a esperança, em oposição ao medo que abate, alivia diz apenas que também essa disposição permanece referida ao peso de uma carga, no modo de ser o ter sido. Do ponto de vista ontológico, o humor exaltado, ou melhor, exaltante só é possível numa remissão ekstático-temporal da presença (Dasein) ao fundamento-lançado de si mesma. STMSC: §68
A interpretação temporal de compreender e disposição deparou-se não apenas com a ekstase primária referente a cada FENÔMENO mas também com toda a temporalidade. Da mesma forma que o porvir possibilita primariamente o compreender e o vigor de ter sido possibilita o humor, o terceiro momento estrutural da cura, a decadência, encontra seu sentido existencial na atualidade. A análise preparatória da decadência teve início com a interpretação da falação, da curiosidade e da ambiguidade. A análise temporal da decadência deve seguir o mesmo caminho. Contudo, a investigação se limitará em considerar a curiosidade porque é nela que se pode ver, mais facilmente, a temporalidade específica da decadência. A análise da falação e da ambiguidade, por sua vez, já pressupõe o esclarecimento da constituição temporal da fala e da significação (da interpretação). STMSC: §68
Mediante o aguardar que ressurge, a atualização se abandona cada vez mais a si mesma. Ela atualiza em função da atualidade. Aprisionando-se em si mesma, a dispersão do não demorar-se transforma-se em desamparo. Este modo da atualidade é o FENÔMENO que mais explicitamente se opõe ao instante. No desamparo, a presença (Dasein) está em toda parte e em parte nenhuma. O instante traz a existência para a situação, abrindo o “pre” (das Da) em sua propriedade. STMSC: §68
Somente partindo do enraizamento da presença (Dasein) na temporalidade é que se pode penetrar na possibilidade existencial do FENÔMENO, ser-no-mundo, que, no começo da analítica da presença (Dasein), fez-se conhecer como constituição fundamental. Cabia, neste começo, assegurar a unidade inquebrantável da estrutura deste FENÔMENO. Com isso, ficou em segundo plano a questão sobre o fundamento da unidade possível das articulações desta estrutura. Na intenção de proteger o FENÔMENO das tendências de fragmentação mais evidentes e, por isso, mais fatais, interpretou-se, com maior detalhamento, o modo mais imediato e cotidiano do ser-no-mundo, a saber, o ser que se ocupa junto ao que está à mão dentro do mundo. Agora que a própria cura foi, ontologicamente, delimitada e reconduzida ao seu fundamento existencial, isto é, à temporalidade, a ocupação pode, por sua vez, ser explicitamente concebida a partir da cura e da temporalidade. STMSC: §69
Como obter a visão capaz de orientar a análise da temporalidade da ocupação? Chamamos de modo de lidar no e com o mundo circundante o ser que se ocupa junto ao “mundo”. Escolhemos como FENÔMENO exemplar do ser junto a… o uso, o manejo, a produção de manuais e seus modos deficientes e indiferentes, ou seja, o ser junto àquilo que pertence às necessidades cotidianas. A existência própria da presença (Dasein) também se detém nesta ocupação, mesmo quando a ocupação permanece “indiferente” para a presença (Dasein). O que está à mão numa ocupação não causa a ocupação no sentido de que a ocupação só surgiria devido às influências dos entes intramundanos. O ser junto ao que está à mão nem se deixa esclarecer onticamente por este, nem, ao inverso, este pode derivar-se daquele. Ocupação, enquanto modo de ser da presença (Dasein), e o ocupado, enquanto o que está à mão dentro do mundo, não são, em absoluto, simplesmente dados em conjunto. Não obstante, dá-se entre eles um “nexo”. É daquilo com que se lida, entendido corretamente, que se esclarece o modo próprio de lidar na ocupação. A falta da estrutura fenomenal daquilo com que se lida tem como consequência um desconhecimento da constituição existencial do modo de lidar. A análise dos entes que, de imediato, vêm ao encontro já obtém um ganho essencial quando não se passa por cima do caráter instrumental específico destes entes. Mas, além disso, é preciso compreender que o modo de lidar na ocupação nunca se detém num instrumento singular. O uso e manejo de um determinado instrumento permanecem, como tais, orientados por um nexo instrumental. Quando procuramos, por exemplo, um instrumento “deslocado”, isto não se refere, simples nem primariamente, apenas àquilo que se procura num “ato” isolado. Esta procura já descobre previamente o âmbito do todo instrumental. Todo “trabalhar” e pôr mãos à obra não significa vir de um nada e deparar-se com um instrumento isolado, preliminarmente dado. Ao contrário, significa provir de um mundo de obras já sempre aberto, ao se lançar mão de um instrumento. STMSC: §69
A atualização, guiada pela circunvisão, é, no entanto, um FENÔMENO de múltiplos fundamentos. De início, ela sempre pertence a uma unidade ekstática plena da temporalidade. Seu fundamento é reter o nexo instrumental. Ocupando-se deste, a presença (Dasein) aguarda uma possibilidade. O que já se abriu, nesse reter que aguarda, coloca mais perto a atualização ou o tornar atual reflexivos. No entanto, para que a reflexão possa mover-se no esquema do “se-então”, é preciso que a ocupação já compreenda, “numa supervisão”, o nexo da conjuntura. Aquilo que é interpelado como o “se” já deve ser compreendido como isto ou aquilo. Para tanto, é necessário que a compreensão do instrumento se exprima numa predicação. O esquema “algo como algo” já está prelineado na estrutura do compreender pré-predicativo. A estrutura-como funda-se, ontologicamente, na temporalidade do compreender. Aguardando uma possibilidade, ou seja, aqui, aguardando um para quê, a presença (Dasein) volta a um ser para isso, o que significa: a presença (Dasein) retém um manual. Somente por isso é que, a partir do que foi retido, a atualização inerente a esse reter que aguarda pode, inversamente, colocá-lo, de modo explícito, mais perto em sua referencialidade ao para quê. No esquema da atualização, a reflexão aproximadora deve adequar-se ao modo de ser daquilo que deve ser aproximado. Pela reflexão, o caráter de conjuntura do que está à mão não é descoberto mas apenas aproximado, de tal maneira que a reflexão faz ver como tal, numa circunvisão, aquilo junto com o que algo está em conjunto. STMSC: §69
O enraizamento da atualidade no porvir e no vigor de ter sido é a condição existencial e temporal de possibilidade para que aquilo que se projetou no compreender da compreensão, guiada por uma circunvisão, possa ser colocado mais perto numa atualização. E isto de tal forma que a atualidade se adéque ao que vem ao encontro no horizonte do reter que aguarda, ou seja, se deva interpretar segundo o esquema da estrutura-como. Com isso, responde-se à questão anteriormente colocada se a estrutura-como estabelece um nexo ontológico-existencial com o FENÔMENO do projeto. Da mesma maneira que o compreender e o interpretar em geral, o “como” funda-se na unidade ekstática e horizontal da temporalidade. Com a análise fundamental do ser, e esta no contexto da interpretação do “é”, que, como cópula, “exprime” o dizer de algo como algo, devemos tematizar mais uma vez o FENÔMENO do como e delimitar, existencialmente, o conceito de “esquema”. STMSC: §69
Embora a expressão “temporalidade” não signifique aquilo que a fala de “espaço e tempo” entende como tempo, a espacialidade, da mesma forma que a temporalidade, também parece constituir uma determinação fundamental da presença (Dasein). Com a espacialidade da presença (Dasein), a análise existencial e temporal parece, portanto, chegar a um limite em que este ente, chamado presença (Dasein), deve ser interpelado sucessivamente como “temporal” “e também” como espacial. Será que a análise existencial e temporal da presença (Dasein) teve de parar diante do FENÔMENO que conhecemos como espacialidade inerente à presença (Dasein) e demonstramos pertencer ao ser-no-mundo? STMSC: §70
A irrupção da presença (Dasein) no espaço apenas é possível com base na temporalidade ekstática e horizontal. O mundo não é simplesmente dado no espaço; o espaço, no entanto, só pode ser descoberto no seio de um mundo. É justamente a temporalidade ekstática da espacialidade inerente à presença (Dasein) que torna compreensível a independência entre espaço e tempo e, inversamente, também a “dependência” entre presença (Dasein) e espaço. Esta última se revela no FENÔMENO já conhecido da ampla predominância de “representações espaciais” na auto-interpretação da presença (Dasein) e no teor significativo da linguagem. Este primado do espacial na articulação de significados e conceitos não tem seu fundamento num poder próprio do espaço e sim no modo de ser da presença (Dasein) {CH: a não há oposição, ambos se pertencem mutuamente}. Sendo essencialmente decadente, a temporalidade perde-se na atualização, compreendendo-se não apenas numa circunvisão a partir do que está à mão nas ocupações, mas também retirando, daquilo que a atualização sempre encontra de vigente, a saber, as relações espaciais, os parâmetros para articular o que a compreensão compreende e pode interpretar. STMSC: §70
Ficou obscuro o que, no fundo, esta expressão, significa em sua delimitação ontológica. Também no começo da investigação não se apresentava um caminho para se problematizar o sentido ontológico-existencial da cotidianidade. Agora, porém, elucidou-se o sentido ontológico da presença (Dasein) como temporalidade. Pode ainda restar alguma dúvida acerca do significado existencial e temporal da “cotidianidade”? Ao mesmo tempo, encontramo-nos muito distantes de um conceito ontológico desse FENÔMENO. É até mesmo questionável se a explicação até agora desenvolvida da temporalidade é suficiente para delimitar o sentido existencial da cotidianidade. STMSC: §71
Mas será que após a presente interpretação da temporalidade nós nos encontramos em condições de rever, com maior sucesso, a delimitação existencial da estrutura da cotidianidade? Ou será que o que se revelou nesse FENÔMENO conturbador foi justamente a insuficiência ciência da presente explicação da temporalidade? Será que não deixamos, constantemente, a presença (Dasein) quieta em certas posições e situações, desconsiderando “de forma consequente” que, vivendo o seu dia-a-dia, a presença (Dasein) se estende “temporalmente” na sequência de seus dias? Não é possível apreender a monotonia, o hábito, o “tal como ontem, será o hoje e o amanhã”, o “na maior parte das vezes”, sem reconduzi-los a esse estender-se “temporal” da presença (Dasein). STMSC: §71
Todos os esforços da analítica existencial visam à única meta de encontrar uma possibilidade de se responder à questão do sentido de ser em geral. Elaborar essa questão exige que se delimite a compreensão de ser, isto é, o FENÔMENO em que o próprio ser se torna acessível. Ela pertence, no entanto, à constituição de ser da presença (Dasein). Somente após uma interpretação suficiente e originária deste ente é que se poderá conceber a compreensão de ser inserida em sua constituição de ser e, nessa base, colocar a questão sobre o ser nela compreendido e sobre as “pressuposições” desse compreender. STMSC: §72
Se a questão da historicidade remonta a essas “origens”, então, com ela, já se decidiu o lugar do problema da história. Não é na historiografia enquanto ciência da história que se deve buscar a história. Mesmo que o modo científico e teórico de tratar o problema da “história” não vise apenas a um esclarecimento “epistemológico” (Simmel) da apreensão histórica, nem a uma lógica da construção conceituai da exposição histórica (Rickert), orientando-se igualmente pelo “lado do objeto”, mesmo assim, nesse tipo de questionamento, a história só se faz acessível, em princípio, como objeto de uma ciência. Com isso, deixa-se de lado o FENÔMENO fundamental da história, que está à base e precede toda possível tematização historiográfica. É somente a partir do modo de ser da história, a historicidade, e de seu enraizamento na temporalidade que se poderá concluir de que maneira a história pode tornar-se objeto possível da historiografia. STMSC: §72
A presença (Dasein) fática leva em conta o tempo, sem, no entanto, compreender, existencialmente, a temporalidade. Antes da questão do que significa o ente é e está “no tempo”, faz-se necessário esclarecer a atitude elementar desse contar com o tempo. Deve-se interpretar toda atitude da presença (Dasein) a partir de seu ser, isto é, a partir da temporalidade. Cabe mostrar de que maneira a presença (Dasein), como temporalidade, temporaliza uma atitude que se relaciona com o tempo, no modo de levá-lo em conta. A caracterização feita até agora da temporalidade não é, pois, apenas incompleta, porque nem todas as dimensões do FENÔMENO foram observadas, mas é, em princípio, deficiente, já que pertence à própria temporalidade uma espécie de tempo do mundo, no sentido rigoroso do conceito existencial e temporal de mundo. Deve-se compreender como isso é possível e porque é necessário. E com isso poder-se-á esclarecer tanto o “tempo”, vulgarmente conhecido, “no qual” ocorrem entes, quanto a intratemporalidade desses entes. STMSC: §78
A principal tese da interpretação vulgar do tempo – de que ele é “infinito” – revela, ainda mais profundamente, o nivelamento e o encobrimento do tempo do mundo, inseridos nessa interpretação, e, com isso, da temporalidade em geral. Numa primeira aproximação, o tempo se oferece como a sequência ininterrupta de agora. Cada agora também já é um há pouco e um logo mais. Se a caracterização do tempo se atém, primária e exclusivamente, a essa sequência, então, nela, como tal, não se pode encontrar, fundamentalmente, nem um começo e nem um fim. Enquanto agora, todo último agora já é sempre um logo não mais. É, portanto, tempo no sentido de agora-não-mais, de passado; todo primeiro agora é sempre um há pouco, ainda-não e, com isso, tempo no sentido de agora-ainda-não, de futuro. “Para ambos os lados”, o tempo é o sem fim. Essa tese temporal apenas é possível, orientando-se por uma sequência de agora, simplesmente dada em si mesma e solta no ar, na qual todo o FENÔMENO do agora se encobriu, no tocante à possibilidade de datação, mundanidade, dimensão de lapso e teor público, inerente à presença (Dasein), desaparecendo numa fragmentação irreconhecível. Numa visão do que é simplesmente dado e do que não é simplesmente dado, “pensando-se até o fim” a sequência dos agora nunca se chega a um fim. Como esse pensar o tempo até o fim ainda deve sempre pensar o tempo, costuma-se concluir que o tempo é infinito. STMSC: §81
A temporalidade ekstática e horizontal temporaliza-se, primordialmente, a partir do porvir. A compreensão vulgar do tempo, ao contrário, vê o FENÔMENO fundamental do tempo no agora e no puro agora que, moldado em toda sua estrutura, se costuma chamar de “presente” (Gegenwart). Daí se pode depreender que, em princípio, deve ficar fora de qualquer possibilidade esclarecer e, sobretudo, derivar desse agora o FENÔMENO ekstático e horizontal do instante que pertence à temporalidade própria. De modo correspondente, não se confundem o porvir ekstático, o “então” datável da significância e o conceito vulgar de futuro, no sentido de simples agora que ainda não advieram e que estão em advento. Tampouco coincidem o vigor de ter sido, ekstaticamente compreendido, o “outrora” datável da significância e o conceito de passado, no sentido dos puros agora passados. O agora já não fica grávido do agora-ainda-não. Ao contrário, a atualidade surge do porvir na unidade ekstática e originária de temporalização da temporalidade. STMSC: §81
Ao nosso redor está o mundo do estrépito e da incerteza; e há encontros súbitos com o surpreendente, o incompreensível, o absurdo, o decepcionante. Mas estas coisas não tem direito a ser um problema para nós, embora só fora porque todo fenômeno tem suas causas, as conheçamos ou não.
Sejam quais sejam os fenômenos e sejam quais sejam suas causas, sempre está O que é; e O que é se situa além do mundo do estrépito, das contradições e das decepções. Isto não pode ser alterado nem diminuído por nada, e Isto é Verdade, Paz e Beleza. Ninguém o pode empanar, e ninguém pode nos retirá-lo.
Sejam quais sejam os ruídos do mundo ou da alma, a Verdade será sempre a Verdade, a Paz será sempre a Paz e a Beleza será sempre a Beleza. Estas realidades são tangíveis, estão sempre a nosso alcance imediato; basta olhar para elas e submergir-se nelas. São inerentes à própria existência; os acidentes passam, a substância permanece.
Deixa ao mundo ser o que é e toma teu refúgio na Verdade, a Paz, e a Beleza, nas quais não há nenhuma dúvida nem nenhuma tara. (Schuon PP)