κακία: perversão, vício, malícia
Destas primeiras indicações, pode destacar-se com alguma evidência a forma como Platão pensa a possibilidade da constituição da excelência, enquanto a realização plena de cada ente. Esta possibilidade é sempre de algum modo contrastada com a sua possibilidade oposta, a de se verificar a perversão (κακία) [É o destino da filosofia grega compreender estas possibilidades extremas.], isto é, passa pela tematização do limite extremo, o qual, uma vez ultrapassado, faz desvirtuar e perverter as possibilidades que cada ente detém. A forma de ultrapassagem não só das condições naturais de que cada ente dispõe é, assim, «medida» em contraposição àquilo que a impossibilita, que a pode impedir de ser.
Cada gênero de entes — os artefatos e utensílios, o corpo, a vida e a alma humana — é considerado nos seus limites. Um artefato pode servir bem um determinado propósito ou não prestar para nada, o corpo humano pode estar de boa saúde ou doente, a vida pode manifestar-se em todas as suas dimensões ou caminhar a passos largos para a sua destruição, e a existência humana pode desenvolver todas as suas potencialidades ou desvirtuá-las completamente. A disfuncionalidade ou o mau funcionamento de um utensílio, a falta de saúde do corpo, a impossibilidade de sobrevivência bem como a injustiça (ἀδικία [adikia]), a intemperança (ἀκολασία [akolasia]), a covardia (δειλία [deilia]), a impiedade (ἀνοσιότης [anosiotes]) e sobretudo a ignorância cega (ἀμαθία [amathia]), a qual falseia todas as situações por que passamos e perverte o modo como nelas nos encontramos, são possibilidades [32] perversas que deterioram, distorcem ou destroem os horizontes específicos relativamente aos quais são formas de impedimento e de deformação. [CaeiroArete:32-33]
O acontecimento deformador e desfigurador da perversão (κακία [kakia]) leva, como vimos, a uma afetação global do sentido da existência humana. Essa crise de sentido experimentada como desorganização (ἀταξία [ataxia]) e desordem (ἀκοσμία [akosmia]) não fica apenas circunscrita ao horizonte da lucidez (ψυχή [psyche]) mas alastra à totalidade dos entes, mergulhando-os no caos. Nada permanece intocável. Tudo é excentração extravagante e dispersão. Essa situação resulta da deformação desvirtuadora das possibilidades dadas à partida na existência humana, fazendo que a totalidade dos entes no seu todo1 seja experimentada como uma desorganização intrínseca da sua ordem constitutiva.
A perversão (κακία) que afeta especificamente a lucidez (ψυχή) é experimentada como perda da organização (τάξις [taxis]) e da ordem (κοσμία [kosmia]), isto é, como esboroamento das condições sine qua non a partir das quais o humano pode apropriar-se de uma forma autêntica das suas possibilidades de vida. Se a perda da potencialidade de um instrumento, de um artefato ou de uma árvore não levam a uma desorganização da totalidade dos entes no seu todo, por outro lado, a presença da perversão (κακία) na lucidez (ψυχή) humana conduz a uma perturbação no modo como a totalidade dos entes é habitualmente experimentada, sendo a lucidez (ψυχή) a forma onde radicam todas as formas de abertura aos entes em geral. A perturbação da relação [275] estrutural entre o humano e todos os demais entes no seu todo é provocada pela modificação da lucidez (ψυχή) levada a cabo pela perversão (κακία).
Mas podemos ser mais específicos. A perversão (κακία) que afeta a lucidez (ψυχή) no seu todo e os restantes entes é concretizada como um impedimento estrutural à compreensão do sentido do horizonte da situação humana (πρᾶξις [praxis]), enquanto núcleo de sentido onde radica a existência humana, isto é, o plano fundamental que dá compreensão aos entes no seu todo. É assim pela perda da «excelência humana» (ἀνθρώπινη ἀρετή [anthropine arete]) e não pela perda da «excelência específica de cada coisa» (ἀρετή ἑκάστου, arete ekastou), que todos os entes sem exceção mergulham na «impossibilidade da comunhão» [Górgias, 507e5] que mantém em conjunto [Cf. Gór., 508a1] tudo em geral. A organização (τάξις) e a ordenação (κοσμία) dão lugar à desorganização (ἀταξία [ataxia]) e à desordem (ἀκοσμία). [CaeiroArete:275-276]
KAKIA — VÍCIO, INIQUIDADE, MAL, MALDADE, MALÍCIA, DISPOSIÇÃO PARA O MAL
Não vos inquieteis, pois, pelo dia amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal (kakia). (Mt 6:34)
Arrepende-te, pois, dessa tua iniquidade (kakia), e ora a Deus, para que porventura te seja perdoado o pensamento do teu coração; (At 8:22)
Estando cheios de toda a iniquidade, prostituição, malícia (kakia), avareza, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade; (Rom 1:29)
Por isso façamos a festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da maldade (kakia) e da malícia (poneria), mas com os ázimos da sinceridade e da verdade. (1Co 5:8)
Padres da Igreja — em nosso site francês
Basílio o Grande
Recebemos de Deus a tendência natural a fazer o que comanda(…). É usando convenientemente e lealmente estas forças que vivemos santamente na virtude; desviando-as de seu fim, ao contrário somos levados ao mal. Tal é, com efeito, a definição do vício: o mau e contrário aos mandamentos do Senhor, das faculdades que Deus nos deu para o bem, e tal, por consequência, a definição da virtude que Deus nos exige: o uso consciencioso destas faculdades segundo a ordem do Senhor.
João Crisóstomo
Os vícios nada mais são que a loucura.
Evagrio
Os vícios destroem as atividades naturais da alma; se toda malícia é engendrada pela inteligência, pelo poder irascível e pelo poder do desejo, e que destes poderes podemos usar bem ou mal, é logo é evidente que é pelo uso contra natureza destas partes da alma que os males nos chegam. E se assim é nada há que seja criado por Deus que seja mau.
Máximo o Confessor
Nada do que é não é mau, mas só o mal uso, por conta da negligência de nosso espírito a se cultivar segundo a natureza.
… o pecado em todas as coisas, é o mau uso.
… é na medida que usamos mau os poderes de nossa alma : desejo, ardor e razão, que os vícios nela se instalam.
O que a saúde e a doença são para o corpo do vivente (…) a virtude e o vício o são em relação à alma.
Cassiano
Todos os vícios só têm uma mesma fonte e uma origem idêntica. Mas, segundo a parte da alma, e por assim dizer, o membro que está viciado na alma, recebe os vocábulos diversos de paixões e doenças espirituais. A analogia das afeições corporais disto serve às vezes de prova. Pois, embora a causa seja única, não deixa de se diversificar em várias espécies de doenças, segundo o membro que é atingido. Se o humor pecaminoso toma a cabeça, que é como a cidadela do corpo, dá lugar à cefalgia; se invade as orelhas ou os olhos, temos a otalgia ou oftalmia; se ataca às articulações ou às extremidades das mãos, é a doença articular ou a gota das mãos; e se desce até as extremidades dos pés a afeição muda de nome para se chamar gota dos pés. Para uma mesma fonte de humor maligno, tantos vocábulos distintos quanto partes ou membros atingidos. Da mesma maneira, das coisas visíveis passando às invisíveis, podemos crer que a energia dos vícios se encontra semelhantemente localizadas nas diferentes partes e, se se pode dizer, os membros da alma. Ora os sábios aí distinguem três faculdades: a razão (logistikon), o ardor (thymikon e o desejo (epithymikon. Uma ou outra será necessariamente alterada todas as vezes que o mal nos atacar. Logo quando a paixão má toca qualquer um destes poderes, é segundo a alteração que ela aí determina, que o vício particular receba sua denominação.
Gregório do Sinai
Muitos dos que praticam os mandamentos pensam que estão seguindo o caminho espiritual. Mas ainda não alcançaram a cidade, e d fato permanecem fora dela. Pois viajam tolamente, desviando-se se perceber da via reta em vicinais, não se dando conta quão próximo os vícios são do caminho da virtude.
As virtudes cardeais são quatro: coragem, compreensão, auto–restrição e justiça. Há oito outras qualidades morais, que vão além ou aquém destas virtudes. Estas vemos como vícios e assim as chamamos; mas as pessoas não espirituais as veem como virtudes e assim as chamam.
Teodoro o Grande Asceta
Uma alma inteligente, enquanto no corpo, só tem uma tarefa: realizar sua própria finalidade. Mas posto que a energia da vontade permanece desestimulada a não ser que haja intelecção, começamos por tentar energizar noeticamente (vide noeton). A atividade noética é ou com vistas à vontade, ou mais comumente, para si mesmo assim como para vontade. Bem-aventurança — da qual qualquer vida significativa na terra é não apenas uma abertura mas uma prefiguração — é caracterizada por ambas energias: tanto intelecção e vontade, ou seja, tanto amor e prazer espiritual. Se ambas energias são supremas, ou uma superior a outra, está aberto a discussão. Por momento devemos olhar ambas como supremas. Uma chamamos contemplativa outra prática. Onde estas energias supremas são levadas em conta, uma não pode ser encontrada sem a outra. No caso das energias inferiores, seguintes a estas, cada uma pode ser encontrada singularmente. O que quer que iniba estas duas energias, ou as oponha, chamamos vício. O que quer que as estimule, ou as libere de obstáculos, chamamos virtude. Energias que brotam das virtudes são boas; aquelas que brotam de seus opostos são distorcidas e pecaminosas. A meta suprema, cuja energia, como sabemos, é um composto de intelecção e vontade, dota cada energia particular com uma forma específica, que pode ser usada seja para o bem ou o mal.
Jean-Claude Larchet
Afastando de Deus as diferentes faculdades de sua alma e de seu corpo e orientando-as para a realidade sensível, para aí encontrar a felicidade na busca incessante da saciação dos prazeres da vida terrestre, o homem fez manifestar nele as paixões, denominadas também vícios — kakia-. O homem decadente, abandonando sua identidade com Divino (“criado a imagem e semelhança de Deus”), é assim como um espelho que reflete ao inverso impulsos divinos que assim se degeneram nas paixões e vícios que o degradam e o afastam deste caminho.
Filon de Alexandria
80. Porque en la actualidad, cuando prevalecen todos los mencionados vicios y los hombres se hallan entregados a las pasiones y a los incontrolados y reprochables impulsos que no es lícito mencionar siquiera, les ha salido al encuentro el merecido castigo, sanción por sus impías costumbres. Y este castigo consiste en la dificultad para obtener las cosas necesarias. Y así, arando trabajosamente la tierra llana e irrigándola con las corrientes de fuentes y ríos, sembrando y plantando, y soportando día y noche a lo largo del año la fatiga de los trabajos de la tierra, se procuran las provisiones necesarias, aunque a veces de calidad ínfima y en cantidad no suficiente del todo. Daño que les sobreviene por muchas causas; o bien porque los torrentes de sucesivas lluvias arrasan los cultivos; o bien porque el peso del granizo se precipita en masa sobre ellos y los arrasan; o bien porque la nieve los hiela; o bien porque la violencia de los vientos los arranca de raíz, pues son muchas las maneras como el agua y el aire convierten la producción de frutos en esterilidad.
81. En cambio, si los desmedidos impulsos de las pasiones fueran apaciguados por la prudencia (sophrosyne — phronesis); y las tendencias a delinquir y las ambiciones lo fueran por la justicia; y, para decirlo en pocas palabras, si los vicios y sus infructuosas prácticas cedieran ante las virtudes y las virtuosas acciones; eliminada la guerra del interior del alma, que es verdaderamente la más terrible y penosa de las guerras; prevaleciendo la paz íntima, y brindando ella, con calmos y suaves modos, un bien reglado orden a las facultades de nuestro ser, habría esperanza de que Dios, como amante que es de la virtud, de la rectitud, y además del hombre, procurara a la especie humana los bienes sin necesidad de producirlos y al alcance de su mano; que, evidentemente, sería más fácil para Él aún proporcionar abundantemente, sin necesidad del trabajo agrícola, el producto de criaturas ya existentes, que el traer a la existencia aquellas que no existen. (NT: Es decir si fue capaz de crear a partir de lo no existente,¿cómo no lo será, con más razón aún, de hacer que lo ya existente produzca sus frutos espontáneamente, sin necesidad de cultivo?)