inteligência e vontade

A inteligência e vontade, que são duas potências unidas, agem igualmente, uma sobre a outra como veremos. Mas o que antes preocupa Tomás de Aquino é saber qual das duas tem a superioridade (cf. Ia Pa, q. 82, a. 3; De Verit q. 22 a. 11).

Numa primeira consideração, parece que a vontade detém este primado. Com efeito: 1. , a dignidade de uma faculdade depende, ao que parece, da dignidade de seu (objeto. Ora, o objeto da vontade, o bem, que significa o ser na sua plenitude de perfeição, e concluindo em particular o ato último de existir, é mais perfeito que o objeto da inteligência, o verdadeiro, que é mais abstrato; 2. , pondo em movimento a inteligência, a vontade parece dominá-la; tem, com efeito, por objeto o bem ou o fim que é a primeira das causas; 3. , no plano sobrenatural, fundando-nos sobre o testemunho de S. Paulo, devemos dizer que o hábito mais perfeito, a caridade, encontra-se na vontade: “maior autem horum est caritas…” Ora, convém que haja proporção entre os hábitos e as faculdades que eles determinam. A vontade, sujeito da caridade, não pode deixar de ser, portanto, a mais perfeita das potências.

Todavia, para Tomás de Aquino, absolutamente falando, a inteligência é superior à vontade (Cf. o comentário de Caetano sobre o art. citado e João de Tomás de Aquino, De Anima, q. XII a. 5). Sua argumentação pode ser condensada nestas duas fórmulas:

– Uma coisa é tanto mais elevada, quanto mais simples e mais abstrata. . . “quanto autem aliquid est simplicius et abstractius, tanto, secundum se, est nobilius et altius”.

– Ora, o objeto da inteligência é mais simples e mais absoluto que o da vontade… “Objectum enim intelectus est simplicius et magis absolutum quam objetum voluntatis.”

A primeira destas fórmulas é apenas uma aplicação da doutrina geral da imaterialidade como fundamento do conhecimento: quanto mais imaterial o modo de um objeto, tanto mais atual e perfeito, e tanto mais a potencialidade que a ele se relaciona é purificada de potencialidade e perfeita. Ora, segunda fórmula, o objeto da inteligência, que é a “quididade”, é mais abstrato e mais imaterial e, portanto, mais absoluto e mais elevado que o da ;vontade, o bem, que envolve o ser em toda a sua realidade concreta.

No De Veritate (q. 22, a. 11) Tomás de Aquino faz valer uma outra razão. Colocando-se sob o prisma do modo da geração, de onde resulta para o ato intelectual uma tomada de posse mais íntima do objeto, conclui pelo primado da faculdade de conhecer. O objeto que conhece, com efeito, torna-se presente na própria faculdade de conhecer, enquanto que o objeto que desejo permanece fora de mim. Ora, é mais digno possuir em si algo de eminente que estar relacionado do exterior com a perfeição desta coisa: “perfectius autem est… habere in se nobilitatem alterius rei, quam ad rem nobilem comparari extra se existentem”. A assimilação cognitiva é, pois, mais perfeita que a união afetiva.

Com uma perfeita lógica, no tratado da felicidade (cf. Ia, IIa, q. 3 a. 4), Tomás de Aquino deduzirá que a felicidade soberana consiste formalmente não em um ato de vontade, ou na fruição afetiva que é só uma consequência, mas no conhecimento mesmo ou na visão de Deus. A deleitação da vontade é, todavia, um acompanhamento necessário e essencial da tomada de posse, pela nossa faculdade de conhecimento, de nosso fim último.

Seria por demais longo entrar nas discussões que surgiram em torno desta questão do primado de uma ou outra de nossas faculdades espirituais. A escola escotista é pela superioridade da vontade e muitos seguem esta via. Os argumentos dados acima permanecem, contudo, em sua firmeza metafísica. Está fora de dúvida, por outro lado, que adotando este modo de ver, Tomás de Aquino foi fiel a Aristóteles que, bem claramente, em seus estudos sobre a felicidade soberana (Ética a Nic. 1, 10), dá o primado ao conhecimento, sendo o prazer um elemento de acréscimo que se junta ao ato de contemplação “como a beleza para os que estão na flor da juventude”.

Há todavia um caso em que a vontade arrebata à inteligência o primado, quando o objeto que atinge é mais elevado do que o que é captado pela inteligência. Ora, praticamente isto se realiza para todos os objetos que estão acima da alma, especialmente, para Deus; donde se conclui, para esta vida, pelo primado da caridade. Definitivamente, com Tomás de Aquino, concluir-se-á: “o amor de Deus é melhor que o conhecimento que dele se tem; pelo contrário, o conhecimento das coisas corporais é melhor que seu amor; absolutamente falando, todavia, a inteligência é mais nobre que a vontade”. (Cf. Texto XIII. Superioridade da inteligência sobre a vontade, pág. 226). [Gardeil]