Por mais tentador que seja derivar, por simples questão de consistência, o moderno conceito de vida das perplexidades que a filosofia moderna se autoinfligiu, seria um erro e uma grave injustiça para com a seriedade dos problemas da era moderna se os considerarmos meramente do ponto de vista do desenvolvimento das ideias. A derrota do homo faber pode ser explicável em termos da transformação inicial da física em astrofísica, das ciências naturais em uma ciência “universal” O que resta a explicar é por que essa derrota terminou com a vitória do animal laborans; por que, com a ascensão da vita activa, foi precisamente a atividade do trabalho que veio a ser promovida à mais alta posição entre as capacidades do homem; ou, em outras palavras, por que, na diversidade da condição humana, com suas várias capacidades humanas, foi precisamente a vida que predominou sobre todas as outras considerações.
O motivo pelo qual a vida se afirmou como ponto último de referência na era moderna e permaneceu como bem supremo para a sociedade moderna foi que a moderna inversão de posições ocorreu dentro da textura de uma sociedade cristã, cuja crença fundamental na sacralidade da vida sobrevivera à secularização e ao declínio geral da fé cristã, que nem mesmo chegaram a abalá-la. Em outras palavras, a moderna inversão seguiu, sem questionar, a mais significativa inversão com a qual o cristianismo irrompera no mundo antigo, uma inversão politicamente de alcance ainda maior e, pelo menos historicamente, mais duradoura que qualquer crença ou conteúdo dogmático específicos. Pois a “boa-nova” cristã da imortalidade da vida humana individual invertera a antiga relação entre o homem e o mundo, promovendo aquilo que era mais mortal, a vida humana, à posição de imortalidade ocupada até então pelo cosmo.
Historicamente, é mais que provável que a vitória da fé cristã no mundo antigo tenha se devido em grande parte a essa inversão, que trouxe esperança para aqueles que sabiam que o seu mundo estava condenado – na verdade, uma esperança além de toda esperança, visto que a nova mensagem prometia uma imortalidade pela qual eles jamais haviam ousado esperar. Essa inversão só podia ser desastrosa para a estima e a dignidade da política. A atividade política, que até então retirara sua maior inspiração da aspiração à imortalidade mundana, baixou agora ao nível de uma atividade sujeita à necessidade, destinada a remediar, de um lado, as consequências da pecaminosidade do homem, e, de outro, a atender às carências e interesses legítimos da vida terrena. Daí por diante, qualquer aspiração à imortalidade só podia ser equacionada com a vanglória; toda fama que o mundo pudesse outorgar ao homem era ilusória, uma vez que o mundo era ainda mais perecível que o homem, e uma luta pela imortalidade mundana era sem sentido, visto que a própria vida era imortal.
Foi precisamente a vida individual que passou então a ocupar a posição antes ocupada pela “vida” do corpo político, e as palavras de Paulo – de que “a morte é o prêmio do pecado” uma vez que a vida se destina a durar para sempre – ecoa as palavras de Cícero, de que a morte é a recompensa dos pecados cometidos por comunidades políticas que haviam sido construídas para durar por toda a eternidade [Cícero observa: “Civitatibus autem mors ipsa poena est (…) debet enim constituta sic esse civitas ut aeterna sit” (De re publica iii. 23). Quanto à convicção, na Antiguidade, de que um corpo político bem fundado devia ser imortal, conferir também Platão, Leis, 713, em que se recomenda aos fundadores de uma nova pólis que imitem o lado imortal do homem (hoson en hemin athanasias enest).]. É como se os antigos cristãos – pelo menos Paulo, que afinal era cidadão romano – houvessem conscientemente vazado o seu conceito de imortalidade no modelo romano, substituindo a vida política do corpo político pela vida individual. Tal como o corpo político possui uma imortalidade apenas potencial que pode ser confiscada em decorrência de transgressões políticas, também a vida individual teve confiscada certa vez, na queda de Adão, a sua imortalidade garantida, e agora, por meio de Cristo, adquiria uma vida nova, potencialmente eterna, que, no entanto, podia novamente ser perdida em uma segunda morte, mediante o pecado individual. [ArendtCH:C44]