habitus

René Guénon: Guenon Coração CérebroCORAÇÃO E CÉREBRO

A luz é o símbolo mais habitual do conhecimento; é natural portanto representar pela solluz solar o conhecimento direto, isto é, intuição – intuitivo, próprio do nous – puro intelecto, e pela Lualuz lunar o reflexãoconhecimento refletido, isto é, discursivo, próprio da razão. Do mesmo modo que a Lua não pode produzir sua luz a menos que seja iluminada pelo Sol, assim também a razão não pode funcionar de maneira válida na ordem de realidade que está no seu domínio, a menos que esteja sob a garantia de princípios que a iluminam e a dirigem, e por ela recebidos do nous – intelecto superior. Existe a esse respeito um equívoco que é necessário dissipar: os filósofos modernos1 enganam-se estranhamente ao falar desses princípios como se pertencessem com exclusividade à razão, como se fossem de algum modo obra sua, quando, ao contrário, para governá-la, é preciso necessariamente que se imponham a ela, portanto que venham de um nível mais alto. Aí está um exemplo do erro racionalista e que nos permite perceber a diferença essencial existente entre o racionalismo e o verdadeiro intelecçãointelectualismo. Basta refletir um instante para compreender que um princípio, no verdadeiro sentido da palavra, e na medida em que não pode ser extraído ou deduzido de outra coisa, só é penetrável de forma imediata, portanto intuitivamente, e não poderia ser objeto de um conhecimento discursivo como o que caracteriza a razão. E para nos servirmos da terminologia escolástica, diríamos que o nous – intelecto puro é habitus principiorum enquanto que a razão é apenas habitus conclusionum2).

Uma outra consequência resulta ainda das características fundamentais do intelecto e da razão: um intuiçãoconhecimento intuitivo, por ser imediato, é necessariamente infalível em si mesmo;3 ao contrário, o erro sempre pode introduzir-se em todo conhecimento que é apenas indireto ou mediato, como no caso do conhecimento racional. E por aí também pode-se ver o quanto Descartes se enganava ao querer atribuir infalibilidade à razão. É o que Aristóteles exprime nestes termos: “Dentre os haveres4 da inteligência, em virtude dos quais alcançamos a verdade, existem aqueles que são sempre verdadeiros, e outros que podem levar ao erro. O raciocínio está neste último caso; mas o nous – intelecto está sempre conforme à verdade e nada é mais verdadeiro que o intelecto. Ora, sendo os princípios mais conhecidos do que a demonstração, e estando toda ciência acompanhada de raciocínio, o conhecimento dos princípios não é uma ciência (mas sim um modo de conhecimento superior ao conhecimento científico ou racional, e que propriamente constitui o conhecimento metafísico). Além disso, o intelecto é por si mais verdadeiro que a ciência (ou que a razão que edifica a ciência); logo, os princípios pertencem ao intelecto.”5 E, para melhor afirmar o caráter intuitivo do intelecto, Aristóteles também diz: “Os princípios não são demonstráveis, mas percebe-se diretamente a sua verdade.”6)


Filosofia
Mário Ferreira dos Santos: DO HÁBITO

O termo habitus predica-se da coisa, não enquanto esta tem algo porque isso é o que constitui propriamente o predicamento hábito, mas enquanto a coisa se há (habet) em si mesma; ou seja, como ela se há em si mesma.

A disposição é definida como o acidente facilmente móvel, que dispõe o sujeito a bem ou mal haver-se em si mesmo. Hábito e disposição diferem intrínseca e especificamente, porque uma pode ser fácil e outra difícil, assim como a opinião, por sua natureza, é fácil, enquanto a ciência é difícil, e, no obstinado, a opinião pode ser dificilmente removível, enquanto a ciência, ao contrário. O hábito pode ser ente – entitativo e operação – operativo. Ambos determinam a substância, mas o operativo determina por ordem à atividade o hábito meramente entitativo. O hábito operativo pode ser tomado estritamente ou não. O primeiro consiste, por modo de inclinação, na indeterminação da potência, que impede operar no bem ou no mal. A segunda consiste na noesisação cognoscitiva e operativa.

A potência é definida como o acidente que dispõe o sujeito a operar ou a resistir. A resistência, contudo, também é uma operação. Divide-se a potência em ativa e passiva. Ativa é a que realiza uma ação transeunte, que transita fora da potência do sujeito para algo. E passiva, a que permanece imanentemente. Assim se diz que a potência ativa é transeunte ou transitiva, e a passiva é imanente.



  1. É necessário esclarecer que, por essa expressão, entendemos aqueles que representam a modernidade – mentalidade moderna, tal como tivemos muitas vezes ocasião de definir (veja em especial nossa comunicação publicada no número de junho de 1926 (Cap. 1, Guenon Reforma Mentalidade – A REFORMA DA MENTALIDADE MODERNA). O próprio ponto de vista da filosofia moderna e sua forma especial de colocar as questões são incompatíveis com a verdadeira metafísica. 

  2. Habitus principiorum pode ser traduzido por “hábito (ou posse) dos princípios”. (N. T. 

  3. Santo Tomás de Aquino (Suma Teológica, I, q. 58, a. 5 e q. 85, a. 6) nota entretanto que o nous – intelecto pode errar na simples percepção de seu próprio objeto; mas esse erro só se produz per accidens, por causa da intervenção de uma afirmação de ordem discursiva; neste caso, em verdade, não se trata mais do nous – intelecto puro. Deve ficar claro também que a infalibilidade só se aplica à apreensão das verdades intuitivas, e não à sua formulação ou à sua tradução em termos discursivos. 

  4. Traduz-se comumente por “haveres” a palavra grega hexis, quase intraduzível em nossa língua, que corresponde de forma mais exata ao latim habitus, significando ao mesmo tempo natureza, disposição, estado, maneira de ser. 

  5. Segundos Analíticos (II, 19,100b). 

  6. Podemos também lembrar as definições de Santo Tomás de Aquino: “Ratio discursum quemdam designat, quo ex uno in aliud cognoscendum anima humana pervenit; intellectus vero simplicem et absolutam cognitionem (sine aliquo motu vel discursu, statim in prima et súbita acceptione) designare videtur.” (Razão designa um discorrer pelo qual a alma humana chega a conhecer uma coisa a partir de outra; mas intelecto parece designar um conhecimento simples e absoluto (de modo imediato, numa primeira e súbita captação, sem movimento ou discurso algum.) (De Veritate, q. XV, a. 1.