Em suas origens a filosofia se exprimiu por meio da poesia e, hoje, utiliza-se do romance e do teatro. Entre um extremo e outro no tempo se insere todo tipo de veículo comunicativo: fragmentos, cartas, tratados sistemáticos etc. Independentemente do veículo, porém, a expressão filosófica sempre foi tida por obstrusa, “difícil”, confusa, consequência de querer exprimir o inexprimível. É o caso do famoso parágrafo do prefácio de Hegel à Fenomenologia do Espirito: “A verdadeira figura dentro da qual existe a verdade não pode ser senão o sistema científico desta verdade”. Não obstante a aparente rudeza expressiva, esse parágrafo foi tido como “particularmente fascinante”, pois coloca o problema do pensar filosófico vinculado intimamente à forma em que se expressa. Esta vinculação do pensamento com a expressão e da filosofia com a forma da filosofia é questão não só filosófica como, em certos instantes, a própria questão da filosofia.
A propósito da dificuldade ou facilidade do exercício filosófico, ou da profundidade e superficialidade de uma filosofia, pondera José Ferrater Mora: “Este problema apresenta, de início, um agudo perfil: trata-se de decidir se a filosofia é uma atividade que incumbe exclusivamente ao filósofo profissional ou se, pelo contrário, deve ser o patrimônio de todos os homens, pelo menos enquanto vivem dentro de uma tradição que se iniciou em boa parte com o descobrimento e, poder-se-ia dizer, com a invenção da filosofia. No primeiro caso, parece natural que o filosofar seja um árduo exercício, eriçado de termos técnicos, de problemas pavorosos e insondáveis, de patéticas questões ante as quais toda filosofia tem que ser, em última instância, uma mistagogia. No segundo, ao contrário, o filosofar viria a ser um comum e pífio pensar sobre ‘problemas importantes’, sobre ‘questões vitais’. Se no primeiro caso a filosofia se reduziria a uma ‘filosofia escolástica’, no segundo equivaleria a uma ‘filosofia da vida’. A filosofia oscilaria perpetuamente, sem acabar nunca de decidir-se, entre o Schulbegriff e o Weltbegriff de que Kant, ao falar-nos, queria justamente proteger-nos. E assim ocorre, com efeito, em grande parte: pela índole mesma de sua origem, pela última contextura dessa vida humana que se move, mesmo sem saber, no ambiente da filosofia, esta tem tanto de norma para a ação como de rigorosa ciência. A riqueza de sua tonalidade, a multiplicidade de seus interesses é primariamente a consequência deste oscilar constante entre limites que coincidem de modo cabal com os limites da vida humana. Mas isto não nos diz todavia se a filosofia tem que ser ‘superficial’ ou ‘profunda’, levemente graciosa ou aterradoramente técnica; em outros termos, ‘fácil’ ou ‘difícil’. E a questão não é precisamente inócua, não só porque uma resposta a tal pergunta esclarece por sua própria raiz a indole da filosofia, como porque só sabendo exatamente a quê ater-nos neste ponto podemos compreender um das estruturas essenciais da vida que faz filosofia e, portanto, de nossa própria vida, a de todos os homens desse vago e indeterminado, mas ao mesmo tempo concretissimo Ocidente a quem lhe coube a glória de ‘inventar’ a filosofia”.
Ora, a filosofia é, como a vida humana, e pelas mesmas razões que esta, um saber que não diz tudo o que sabe e uma norma que não enuncia tudo o que postula. Daí o saber filosófico ser sempre “profundo”, mesmo naquelas ocasiões em que parece mais claro e transparente. Precisamente naqueles instantes em que — como ocorre com o Discurso do método, de Descartes — nos parece que o filosofar adquiriu um caráter de absoluta transparência, é quando mais devemos desconfiar do que em aparência nos diz. Desconfiança que — convém destacar — não se deve tanto a uma vontade de ocultação do filósofo como ao caráter “oculto” da própria filosofia, a qual se encobre muitas vezes contra si mesma e apesar de si mesma.
Este especial caráter do saber e da norma filosóficos faz que a filosofia, mesmo sendo hirsutamente difícil, possa ser compreendida por qualquer dos homens que vivem em seu âmbito; como, ao inverso, possibilita que, por mais claro que seja seu enunciado, se oculte àqueles que, com maiores apetrechos técnicos, se aproximem dela. Todavia, é certo que a filosofia não passa de um emaranhado de palavras sem sentido? É certo que o filósofo não passa de um homem complicado de complicada expressão?
Quem responde é um autor de um dicionário de filosofia: José Ferrater Mora: “Se comparamos a habitual expressão filosófica com a literária mais à mão, percebemos, está claro, que a última possui infinitamente maior desembaraço. Pode haver sem dúvida exceções, mas a norma geral é a enunciada. Tanto é assim que naqueles casos de felicíssima agilidade expressiva por parte do filósofo nos inclinamos a crer que é, de certo modo, infiel à pura filosofia. A conclusão parece, então, óbvia: o literato é, em geral, um homem que sabe expressar-se, que inclusive converte tal faculdade em seu principal ofício; ao contrário, o filósofo é o homem de expressão desalinhada, aquele que possui quiçá ‘ideias’, mas que, por incapacidade ou por orgulho, não se ocupa de achar-lhes a expressão agradável ou adequada. Ora, nada tão falso como isto. Em rigor, ocorre exatamente o contrário: que o filósofo, e não apenas aqueles filósofos que são reconhecidos, ‘também’ como grandes escritores – um Platão, um Nietzsche, um Bergson, um Ortega y Gasset -, senão mesmo aqueles que gozam da oposta fama — talvez um Aristóteles, sem dúvida um Kant —, que todo filósofo, digo, como tal filósofo é de fato um grande e incomparável escritor. Diria mais: tem que sê-lo, ainda que não queira, pois o que se vê foiçado a expressar é sempre menos suscetível de adequada ou de bela expressão que qualquer das realidades — incluindo as paixões humanas — que se propõe descrever o literato. O que ocorre sempre é algo bem compreensível: não somente a realidade que a filosofia tem que expressar é uma realidade emi- , nen temente arisca, senão que a primeira vez que o filósofo topa com ela fica deslumbrado. Então se vê forçado a escolher, do repertório de termos que a linguagem pôs a sua disposição, aqueles que mais se aproximam ao que está intelectualmente contemplando. Daí o emprego quase abusivo das mesmas palavras para designar objetos distintos. Quando Platão, Locke, Espinosa ou Berkeley — entre os quase incontáveis aos quais tal coisa ocorreu — falam de ‘ideia’, se referem — não obstante certa última raiz comum que se pudesse encontrar — a realidades bem diferentes. Se empregam todos eles o termo ‘ideia’ não é por incapacidade de achar outros vocábulos em que melhor se reflete a realidade descrita, senão porque, efetivamente, apenas o vocábulo ‘ideia’ expressa aproximadamente o que querem significar ao utilizá-lo. Mas então ocorre o seguinte: de tal modo percebem eles mesmos sua insuficiência, que não têm outro remédio senão acumular sobre a palavra-chave as mais variadas determinações. Assim, o que poderia parecer a princípio uma incapacidade expressiva é, afinal, a mais clara consciência de que nenhum vocábulo cobre exata e cabalmente nenhuma realidade”.
Portanto, o que ocorre ao filósofo em relação com a forma de expressão de sua filosofia é alguma coisa terminante: não só pode chegar a ser um excelente escritor, senão que, enquanto seja verdadeiro filósofo e não homem que cavalga simplesmente no dorso da filosofia, tem que ser um escritor incomparável, de tal sorte que na mesma proporção em que sua expressão seja inadequada ou vazia será também inadequada e vazia sua filosofia. [LWVita]