Mais interessante do que esta estrutura do ser em geral nas categorias aristotélicas é o estudo a que agora vamos entregar-nos da estrutura da própria substância. A substância é para Aristóteles aquilo que existe, porém não somente aquilo que existe, mas aquilo que existe em unidade indissolúvel com o que é, com sua essência, não somente com sua essência, mas com seus acidentes. De modo que i substância responde primeiramente à pergunta: quem existe? A resposta é: a substância. E responde também à pergunta: isso que existe, que é? A resposta é: é um copo, ou seja um objeto que tem esta forma, esta matéria, esta finalidade, estes caracteres etc, etc. De sorte que em toda substância há esta estrutura dual de existir e de consistir, de ser no sentido existencial e de ser no sentido essencial. E esse ser em ambos sentidos Aristóteles o decompõe no par de conceitos “forma” e “matéria”. Mas não se pense, de modo algum, que a matéria corresponde à existência, e a forma corresponde à essência. Não. A matéria e a forma — é o que nos convém ir precisando — constituem indivisível, porque se a dividirmos deixa de “ser”, em qualquer sentido da palavra. A forma sem matéria “não é”. É a ideia platônica, é a essência que Aristóteles quis trazer do céu das ideias platônicas, transcendentes à terra real das coisas existentes. A forma, pois, sem matéria não tem existencialidade. Mas a matéria também não pode carecer de forma. Não podemos conceber uma matéria sem forma.
De modo que estes dois conceitos de matéria e forma não podem dividir-se metafisicamente, porque perdem todo sentido ontológico, logo que os separamos, e a substância é justamente a unidade de matéria e forma na existência individual. Por que digo existência individual? Porque para Aristóteles não há outra. Precisamente o erro platônico, segundo Aristóteles, consistiu em dar à forma, ou seja à essência, ou seja à ideia, existência. Todavia o geral não existe; o domem não existe. O que existe é este homem, Fulano, Pedro, Sócrates. O homem em geral, que é a essência do homem, é a forma que em cada homem individual se dá; mas o que existe é a união sintética de forma e matéria em “este” determinado homem, que é a substância.
O par de conceitos forma e matéria não pode, pois, cindir-se, antes na sua unidade representa exatamente a resposta mais pura à pergunta em que nós compendiamos a metafísica. Sem dúvida, a forma sem matéria, a essência, pode chegar a ser sujeito de um juízo. Podemos perguntar a nós mesmos: que é ser homem? e podemos responder: ser homem é isto, aquilo, ou outro; quer dizer, podemos tomar a humanidade, o humano, a essência do humano como sujeito de um juízo e predicar dele um certo número de predicados essenciais. Nesse sentido poderia considerar-se também a essência como substância, e Aristóteles algumas vezes faz assim, e a chama “substância segunda”, terminologia que foi depois aproveitada por S. Tomás e da qual este fez um uso perfeitamente legítimo e muito profundo. Mas esta substância segunda não tem a existência metafísica plena. O que tem existência metafísica plena é a substância primeira, que sempre é individual.
Ao par de conceitos forma–matéria corresponde também em Aristóteles este outro par de conceitos: real e possível. Mas de maneira alguma o par de conceitos real–possível coincide exatamente com o par de conceitos forma–matéria, de modo que real seja forma e possível seja matéria. Não. Sem dúvida a matéria tem possibilidade e a forma imprime realidade. Mas a matéria não tem possibilidade senão enquanto recebe forma, é um possível possível, por assim dizer; é um possível que não é possível senão enquanto está de antemão apetecendo, olhando para a forma. E do mesmo modo o real não é real senão enquanto procede do possível. Em Aristóteles, o par de conceitos real e possível tem, pois, um sentido lógico, predominantemente lógico. Do possível pode predicar-se, pois, uma coisa pelo menos: anão contradição. É muito pouco, mas enfim pode predicar-se isso do possível. Não é possível o contraditório.
No fundo dessa definição lógica da possibilidade está para Aristóteles a crença firme no postulado parmenídico, visto que esta ante-câmara do real, que é o possível, está desde já, sujeita à lei lógica da identidade do ser e do pensar.
Por último, há outro par de conceitos que também costuma corresponder aos dois pares anteriores, e é o de ato e potência. Mas também não corresponde exatamente. Sua coincidência também não é perfeita porque no par atopotência Aristóteles sublinha principalissimamente o aspecto dinâmico. Aristóteles chama “ato” ao resultado do advento ao ser; e chama “potência” à matéria, mas enquanto vai ser. A potência, pois, está com o ato na mesma relação que o possível com o real e a matéria com a forma. Mas a matéria com a forme está em uma relação estática, como contemplada desde a eternidade, metafísica. A possibilidade com a realidade está em uma relação lógica; a ausência de contradição define a possibilidade, e a transformação em substância define a realidade. Mas o par de conceitos ato–potência está em uma concepção ou intuição dinâmica, na gênese das coisas. Quando o que vemos na coisa não é o que a coisa é, e tampouco é o que da coisa pode predicar-se logicamente, mas seu advir, seu chegar a ser, sua gênese interna, então esses pares se qualificam mais propriamente de potência e de ato.
Desta maneira, e deste último ponto de vista, a substância de Aristóteles se nos apresenta sob três aspectos: primeiro, sob o aspecto ontológico, metafísico, como unidade existencial de forma e matéria; segundo, sob o aspecto lógico, como predicabilidade de um sujeito; e terceiro, sob um aspecto genético, como a atuação da potência. Este aspecto genético nos projeta a realidade, não como realidade, mas como “realização”; a substância, não como forma de uma matéria, mas como “formação”; o ato, não como um ato de uma potência, mas como “atuação”. Este sentido dinâmico que a terminação em “ão” dá aos termos de forma, realidade e ato, convertendo-os em formação, realização e atuação, oferece — creio eu — uma intuição muito profunda e muito exata daquilo que é o pensamento de Aristóteles, porque o pensamento de Aristóteles, é que cada coisa natural é o mesmo que uma coisa artificial. Assim como uma coisa artificial se explica inteiramente quando a vemos feita pelo artífice (o cântaro de barro feito pelo oleiro) e advém a ser em virtude da ação do artífice, e mais que uma coisa é uma “coisação”, assim, do mesmo modo, todas as coisas do universo devem ser contempladas sob o aspecto da fabricação. Na realidade, a estrutura do ser e a estrutura da substância culminam em Aristóteles numa teoria da realização Vamos ver agora em duas palavras quais são as estruturas dessa realização dinâmica. [Morente]